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10 de Janeiro de 2017 às 12:18

Mário Soares

Passei a vida a discordar de Mário Soares e da forma como confundia o PS com o regime, mas é sem problema que reconheço o seu papel na democracia portuguesa, o seu contributo para as liberdades políticas que conhecemos e o seu papel no compromisso com a Europa de que ainda hoje usufruímos.

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Nenhum homem alcança este estatuto, o de figura incontornável e fundadora, sem acasos, sem sorte, sem ligações. E de certa forma Soares teve um pouco disso tudo, conseguindo muitas vezes encontrar o tempo e o lugar certos. Mas nenhum homem alcança este estatuto, e Soares alcançou-o, sem uma estatura, uma coragem, uma convicção, singulares, desafiantes. Podemos contextualizar Soares, mas não podemos diminuir o seu papel, porque a História é sempre mais forte do que os nossos humores e simpatias.

 

Cada um saberá o que pode ou deve agradecer a Mário Soares, se é que tem ou quer fazê-lo. Eu consigo listar com facilidade aquilo que reconheço: uma oposição determinante à hegemonia política e totalitária das esquerdas radicais; uma convicção profunda de que à revolução deveria seguir-se a conciliação, e não a divisão, da sociedade portuguesa; um respeito genuíno pela liberdade e também pela liberdade religiosa e pelo papel da Igreja Católica, que não era inevitável naqueles dias - e muita gente à direita tem-se esquecido disso; uma opção inabalável pela Europa ocidental e pela democracia liberal a par de uma rejeição do modelo totalitário, disfarçado que fosse por qualquer propaganda.

 

Tudo isso, que é o Portugal moderno, que é o nosso dado adquirido, que é a liberdade em que me forjei, teve um contributo de Mário Soares, num momento em que nada disso era o mais fácil ou provável. Hoje não nos passa pela cabeça um socialismo não europeu, um socialismo não ocidental, um socialismo a namorar totalitarismos (a geringonça é outra coisa, desculpem, por má que seja), mas nada disso era tão certo a seguir à revolução, onde abundavam desculpas e pretextos, mesmo dentro do próprio PS, para não ceder ao imperialismo americano, ao direitismo da Europa, ao fascismo do capitalismo. Aliás, foi o único socialista a fazer um governo com dirigentes do meu partido, nos difíceis anos 70.

 

Mário Soares esteve certo nessas opções, e isso é muito, mesmo muito, e nesse sentido fundacional. Sim, houve outros protagonistas, ou poderiam ter sido outros os protagonistas, mas foi Soares, por circunstâncias várias, algumas que lhe eram alheias, quem desempenhou com autoridade e reconhecimento esse papel. Está na História, fica na História.

 

Nada do que aqui agradeço apaga os gigantes e traumáticos erros no processo de descolonização (e, para aqueles que os não reconhecem ou relativizam, a ausência de resposta para as consequências trágicas desse processo); nem relativiza a mais ou menos deliberada tentativa de confundir o PS com o regime, atribuindo ao seu partido e dirigentes um estatuto e uma legitimidade superiores às dos restantes partidos, uma superioridade moral por filiação, circunstância que ainda vigora e explica muitos dos chamados "double standards" a que assistimos ou episódios como o dos "Contos Proibidos"; nem esquece, mercê desse estatuto, os sinais de prepotência que foi dando ou patrocinando, não muito diferentes de muitos políticos que exercem durante anos o poder. Tudo isso faz parte de Mário Soares e fará parte da história particular de muitos de nós, mas não chegará, prevejo e não me incomodo, para lhe retirar o papel fundador que teve na nossa democracia, e que outros não tiveram porque não souberam, não puderam, ou porque tragicamente ficaram a meio dos seus percursos políticos.

 

Advogado

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