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23 de Outubro de 2017 às 20:45

Do oportunismo ao aproveitamento político

Mas de onde vem esta estratégia, afinal, que tem dominado o panorama das esquerdas unidas? De onde vem esta tentativa de acantonar a oposição, de deslegitimar as suas opiniões, de desqualificar os seus rostos?

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De onde vem esta estratégia de classificar como "aproveitamento político" qualquer tomada de posição mais forte da oposição? De onde vem esta teoria de que há uma oposição mal-intencionada, desonesta, a perturbar um Governo que dá o seu melhor, que apenas procura o bem do país? De onde vem esta ideia de que há uma oposição que merece ser exposta como indigna, intrusa?

 

Porque é esse o clima que vivemos, em que o Governo, sempre apoiado nos seus extremos parceiros, usa e abusa da acusação de "aproveitamento político", desqualificando a oposição, quando não mesmo gozando, como se o mero ato de perguntar ou questionar fosse um abuso, como se a existência de opiniões distintas fosse um atrevimento, como se a oposição só pudesse existir domesticada.

 

Mas de onde vem esta estratégia, afinal, que tem dominado o panorama das esquerdas unidas? De onde vem esta tentativa de acantonar a oposição, de deslegitimar as suas opiniões, de desqualificar os seus rostos?

 

Basta recuar a 2005 e a José Sócrates. Foi ele quem inaugurou esta estratégia. Na altura, a expressão era "oportunismo político" e foi usada vezes sem conta. Agora a expressão é "aproveitamento político", mas a estratégia é a mesma, executada tal qual, com a mesma sobranceria de quem se acha único intérprete do interesse nacional, com a mesma arrogância de quem acha que na oposição só está gente que merece ser denunciada, com a mesma soberba de quem não aceita a sindicância.

 

São muitos os sinais que apontam para a repetição da estratégia. Basta ver a forma como António Costa trata Passos Coelho, por exemplo, em gozo, para júbilo dos deputados socialistas que aplaudem tudo, como antes aplaudiam Sócrates nos seus malabarismos ilusionistas. Basta ver a forma como António Costa procura não responder a nada, não se responsabilizar por nada, coisa aliás visível nos incêndios deste ano. É que deslegitimar a oposição tem este efeito: autoriza a que se não responda.

 

É normal que esta estratégia tenha voltado porque ela provou ser eficaz durante muitos anos e quase todos os que a executaram continuam no Governo e comungam da ideia de que o seu projeto para o país foi posto em causa por um ignominioso chumbo do PEC IV.

 

Conheço a refutação deste meu artigo. Que exagero, que não existe propósito de deslegitimação, que estou a ver coisas onde elas não existem. Conheço a refutação porque a ouvi nos tempos de Sócrates, sabendo nós hoje que até a blogues pagos ele recorreu para desqualificar os seus oponentes. Quem vai refutar são os mesmos que não viam e não reparavam na forma de atuação política de Sócrates (realço com especial vigor que é dessa, só dessa, que falo), os mesmos que agora se espantam com a absurda forma de Sócrates se defender do indefensável quando a forma absurda de se defender é exatamente igual à que antes aplaudiam em gáudio. 

 

Há um enorme mundo de diferenças entre José Sócrates e António Costa. Mas esta estratégia não nasce tanto das idiossincrasias de cada um deles, mas, isso sim, da convicção, que é fundadora no PS, de que os socialistas, pela sua história e legitimidade, se confundem com o regime, com a democracia; é por isso que qualquer ataque ao PS é um ataque ao regime, qualquer ataque ao PS é contra o interesse público, qualquer dúvida sobre a atuação do PS é um atrevimento. Quem se mete com o PS leva, lembram-se? O autor da frase, em defesa de Sócrates, é ainda ministro.

 

A tese do aproveitamento político é, ela sim, uma tática de puro aproveitamento político, destinada a condicionar, amedrontar, limitar a oposição. A última coisa que a oposição pode fazer é comprar essa tese, tendo medo de agir ou cumprir a sua função.

 

Advogado

 

Este artigo está em conformidade com o novo acordo ortográfico

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