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Uma partilha que dá vida à herança do cante

Nasceu em Serpa, cresceu e fez-se adulto com o cante alentejano. Em Paris, viu-o ser consagrado Património Imaterial da Humanidade. Hoje, Francisco Torrão partilha a sua herança com os mais jovens.

31 de Janeiro de 2017 às 00:01
Sara Matos
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São 69 anos de vida e outros quase tantos de cante, aqueles que Francisco Torrão, filho de Serpa, como os seus pais, transporta consigo. Esteve em Paris no dia em que a sua arte se tornou Património Imaterial da Humanidade. Tem disso orgulho, claro está. Tal como o tem do seu percurso musical, que também meteu baterias e guitarras à mistura. Hoje, reformado da Função Pública, continua a dar vida à arte dos cantadores alentejanos. E a dar-lhe futuro, porque partilha com as gerações mais jovens da cidade de Beja a herança que recebeu.

Composto por menos jovens e mais jovens, o grupo reúne-se em círculo. Mestre Torrão dá o tom. Uma voz grave ergue-se e abre caminho ao som poderoso das vozes conjugadas dos Cantadores do Desassossego. Ouve-se o cante alentejano, arrancado da terra, mas também da alma, tal a delicadeza das palavras que os homens entoam. É noite de ensaio. Uma noite fria que um pequeno aquecedor serve para ajudar a ignorar.

A moda chega ao fim. Francisco Torrão dá indicações aos tempos de entrada dos cantadores. Fazem uma pausam. Discutem o alinhamento do próximo espectáculo em que vão participar. Um espectáculo solidário, para ajudar a reconstruir um forno comunitário conhecido em Beja como o Forno da Ti Bia Gadelha, a antiga proprietária [a actuação teve lugar a 26 de Janeiro], onde outros artistas ligados à cidade e ao Alentejo e outros dois grupos de cante da cidade também marcam presença. Tal como o mestre, que a todos ensina. Como já antes fazia, na sua terra, onde até 2014 dirigiu o Grupo Coral da Casa do Povo de Serpa.

De Serpa até Paris

Foi na vila de Serpa, hoje cidade, que, por influência de seu pai, mestre Torrão deu os primeiros passos na música, aos 6 anos. Inicialmente o cante, de que não mais se afastou. Era um tempo em que, no regresso do trabalho, os homens reuniam-se na taberna para beber o copo de vinho, acompanhado do pão com toucinho, chouriço ou azeitonas, para depois libertarem as vozes de cantadores.

[Ser Património Imaterial da Humanidade] veio dar outro dinamismo ao cante alentejano.  Francisco Torrão
Presidente da Confraria do Cante

Já na juventude, fundou também um conjunto musical, inspirado nos Shadows, mas que não enjeitava os clássicos franceses que na altura passavam na rádio. Eram os "Ala 4". Foram até chamados à televisão, para darem a conhecer o que valiam. Júlio Isidro ou Artur Agostinho foram seus anfitriões.

Uma das vezes, desafiaram-nos mesmo a cantar uma moda acompanhado por guitarras e pela bateria. Aos "Ala 4", a crítica regional caiu-lhes em cima: "Estão a dar cabo do cante alentejano". Não deram, como se sabe. E Francisco Torrão continua a não dar. Contribuiu até para que chegasse a Património Imaterial da Humanidade, integrando a comissão executiva da candidatura.
 
Os novos do cante

Francisco Raposo, 17 anos, estudante, no 8.º grau do Conservatório de Beja, trompetista, jogador de futebol nos juniores do Sporting de Ferreira do Alentejo, é um desses exemplos de que o cante alentejano tem seguidores entre os mais jovens e será preservado pelas novas gerações. É membro de um grupo de cante alentejano composto por 25 rapazes com idades entre os 15 e os 17, que dá pelo nome de Os Discípulos. Acrescente-se, discípulos de mestre Torrão, o ensaiador desta geração a que o seu neto, amigo de Francisco, também pertence.

O jovem Francisco lembra que o cante sempre esteve presente na sua família. E acrescenta que o facto de esta tradição cultural alentejana ter obtido o estatuto de Património Imaterial da Humanidade reforçou o seu empenho em manter-se membro de um grupo de cantadores. Já lá vão quatro anos.

O objectivo [da nova geração de cantadores] é tentar manter a tradição ao máximo. fRANCISCO rAPOSO
Estudante, membro do grupo de cante Os Discípulos

É um grupo que, curiosamente, se desmultiplica entre a escola – frequentam o 11.º e o 12.º ano – e também, maioritariamente, pela prática do futebol num dos clubes de Beja, o Despertar.

"O objectivo é tentar manter a tradição ao máximo", afirma Francisco, que admite que, num futuro próximo, será difícil conjugar o ensino universitário com este percurso de cantador.

É um desafio para si e para os outros "Discípulos", mas podem ser factores decisivos o gosto que têm pelo que fazem e os incentivos que vão chegando sempre que os vêem e ouvem nas frequentes vezes que actuam por esse país fora, ou quando são chamados a mostrar o que valem nas principais estações de televisão: "‘Continuem que vocês são o futuro do cante’". E da herança do mestre. E de Beja. E do seu património.
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