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Miguel Cintra condenado a 18 meses de prisão com pena suspensa (act2)
O primeiro arguido a ser julgado em Portugal por alegados crimes de abuso de informação privilegiada foi condenado a 18 meses de prisão com pena suspensa por três anos e até ser cumprido o pagamento de 499 mil euros, disse a juíza.
Miguel Cintra foi ainda condenado a pagar 120 dias de multa no valor diário de 295 euros por dia, o que perfaz 35,4 mil euros.
A pena de prisão de Miguel Cintra fica assim suspensa até ser pago pelo arguido 499 mil euros, a ser distribuído em partes iguais por quatro instituições de caridade. A saber: Liga Portuguesa Contra o Cancro, Associação Cais, Refúgio Aboim Ascensão (assistência a órfãos) e Casa São Vicente de Paula. Este montante terá que ser pago até 180 dias do fim da decisão sobre o recurso.
O filho do ex-presidente do Sporting terá ainda que desembolsar 10 dias de taxas de justiça.
«Viveu-se hoje um momento histórico», afirmou fonte oficial da Comisssão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) quando contactada pelo Negocios.pt. A mesma fonte escusou-se a fazer mais declarações sobre a matéria.
Miguel Cintra recorre da decisãoA advogada de defesa, no final da leitura da sentença disse aos jornalistas que vai recorrer da decisão, afirmando que o seu cliente não teve conhecimento das negociações antes de 30 de Outubro de 1996.
O filho do empresário José Sousa Cintra era suspeito de ter utilizado, em 1996, a informação privilegiada da negociação da venda da companhia das águas Vidago entre seu pai e o grupo Jerónimo Martins [JMAR].
O arguido comprou entre 18 de Julho a 31 de Outubro, 379.976 acções pelo valor de 4,165 milhões de euros tendo, com a venda na oferta pública de aquisição lançada pela distribuidora liderada por Soares dos Santos, realizado uma mais-valia de 4,004 milhões de euros.
No dia 30 de Outubro, o arguido admitiu que acordou verbalmente vender na OPA à JM a um preço definido.
Miguel Cintra foi, até ao momento, o único suspeito de crimes de «insider trading», em Portugal, a ir à barra dos tribunais.
Argumentos de aplicação da penaFicou provado que a Jerónimo Martins tinha interesse no sector das águas e, que em finais de Julho, Soares dos Santos, presidente da distribuidora, propôs a José Sousa Cintra a compra da companhia e que este respondeu que «não constituía problema que os restantes accionistas venderiam as suas acções caso ele vendesse».
A juíza justifica a pena por acreditar que o arguido «sabia das intenções de seu pai (em vender a Vidago), tendo acompanhado as negociações e sabendo das iniciativas destes (JM e José Sousa Cintra)».
É neste sentido que a juíza sublinha que, portanto, a informação sobre a venda da Vidago «não era um rumor ou mera informação vaga».
Durante a leitura da sentença, a juíza acrescentou ainda que «Miguel Cintra sabia também que, no caso de compra, a JM tinha que lançar uma OPA e que o preço da oferta nunca seria inferior à cotação média dos últimos seis meses».
Com esta informação, Miguel Cintra «apercebeu-se que poderia vir a ganhar muito dinheiro se as acções viessem a ser vendidas a um preço superior. Embora já tivesse uma posição relevante (11,43%), decidiu comprar mais tendo em vista ganhar mais dinheiro», proferiu.
«Agiu de forma livre para unicamente obter lucro», destacou diversas vezes na leitura da sentença.
Mais, a juíza declara que Miguel Cintra «sabia do preço da OPA e sabia que era uma informação confidencial».
Juíza rejeita argumentos da defesaA juíza rejeitou o argumento do arguido e da defesa de que as compras tinham resultado de pedidos de alguns administradores da Vidago para Miguel Cintra reforçar na Vidago e de que tinha sido «feliz coincidência» o reforço em simultâneo às negociação entre seu pai e a JM.
«O argumento de reforçar na companhia (para liderar a empresa) não faz qualquer sentido», uma vez que Miguel Cintra, depois das aquisições ficou com cerca de 23%, ainda abaixo da posição maioritária de seu pai.
Um dos factos que levou à Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) à investigar e a levar o processo a tribunal foi o contratualização de um empréstimo bancário com o Banco Pinto e Sotto Mayor no valor de 4,5 milhões de euros para comprar acções na Vidago.
O risco do empréstimo em que Miguel Cintra deu de penhor as acções compradas em 18 de Julho à Metalgest e ao Banco Privado Português (BPP) que totalizavam 8,9% do capital da Vidago fazia antever que o arguido tinha conhecimento de interesse comprador.
O arguido justificou em tribunal as compras pelo facto de ter «disponibilidade financeira», situação incomportável com a celebração daquele contrato, acrescentou a juíza.
Estes argumentos não são credíveis «numa lógica de inteligência mínima», referiu a mesma fonte.
Informação «price sensitive»Este primeiro julgamento de crimes de abuso de informação privilegiada também serviu para esclarecer conceitos e fazer jurisprudência.
Citando legislação italiana, a juíza afirmou que informação privilegiada é toda a «informação que não seja pública, com carácter preciso e susceptível de alterar as cotações de mercado («price sensitive»).
Não se exige, segundo esclareceu que, «seja uma informação certa, mas uma informação relevante, algo de objectivo», adiantou a mesma fonte acrescentando que «não se exige uma certeza e também não pode ser uma mera suspeita».
A defesa argumentou que Miguel Cintra não tinha informação precisa do negócio, tendo Ponce de Leão, administrador financeiro da JM na altura dos acontecimentos, afirmado que em Outubro o negócio estava para não se concretizar.
Para a juíza, a decisão não pode ter em conta elementos tão limitados. «Seria tão limitado (utilizar o argumento de informação exacta) que se tornaria quase impossível o preenchimento destes requisitos» no julgamento destes casos.
Enquadramento jurídicoMiguel Cintra, incorria numa pena máxima de dois anos de prisão e a acusação tinha exigido uma pena de prisão de um a dois anos, segundo o Código de Valores Mobiliários de 1991. A juíza não aplicou a pena máxima, devido à inexistência de incidentes criminais do arguido, à sua sociabilização e personalidade.
Mas também não aplicou a pena mínima exigida pela acusação, «devido à gravidade das circunstâncias» e para dar «um exemplo» ao mercado de capitais que este tipo de crimes podem ser punidos com penas de prisão e multas.
A multa aplicável poderia ter ido até 180 dias.
A advogada de defesa, Isabel Duarte, nas alegações finais pronunciadas em tribunal, invocou a Lei da Amnistia de 1999 que «procede a um ano de perdão na pena para um crime como este».
Este também será um dos argumento da defesa no processo de recurso que vai para o Tribunal da Relação, no prazo de 15 dias, a contar de 15 de Setembro, altura em que findam as férias judiciais.
Por Bárbara Leite