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Volkswagen: os podres que faltavam contar
Lançado há poucas semanas por Jack Ewing – o jornalista do The New York Times que acompanhou, passo a passo, todos os inenarráveis momentos do escândalo das emissões da Volkswagen – o livro que narra, com pormenor, um dos maiores escândalos corporativos de sempre, é de reflexão obrigatória. E não porque nesta gigantesca fraude a motivação tenha sido a “habitual” – ganhar dinheiro – mas sim, e de acordo com o autor, porque na sua génese está algo que é comum em muitas grandes empresas: a cultura do “impossível não existe” e o peso que a mesma tem nos empregados e, consequentemente e neste caso, na reputação das organizações. Se a lição foi aprendida? O autor tem grandes dúvidas… e não é o único
Corria a Primavera de 2013 e tal como quaisquer outras equipas académicas, um grupo de estudantes da Universidade de West Virginia tinha em mãos um projecto, com um parco orçamento (para os parâmetros das unidades de investigação deste tipo de universidades) de 70 mil dólares: testar as emissões do Jetta – um famoso modelo da Volkswagen – no que respeita aos óxidos de nitrogénio, uma família de gases que podem causar asma, bronquite e ataques cardíacos ao mesmo tempo que contribuem para o aquecimento global e para a criação do "nevoeiro" urbano". E foi a partir de um aparentemente simples projecto universitário que se desencadeou aquele que é agora conhecido como um dos maiores escândalos corporativos de sempre.
O que ainda restava saber desta história é devidamente narrada num novo livro, com pormenor e recorrendo ainda ao universo rico da Volkswagen – que nasceu da vontade de Hitler de proporcionar a compra de um veículo para "todos" os cidadãos do Terceiro Reich. A produção do famoso Beatle , criado em 1934 por Ferdinand Porsche, acabou entretanto por ser adiada devido aos valores mais altos que se levantaram face à guerra, contribuindo as equipas que nele iriam trabalhar para a produção militar, empregando mão-de-obra judia forçada. Todavia, e como a história, por mais cruel que se apresente, tem também revezes "humoristas", o famoso "Carocha", nascido do fascismo acabaria por se transformar num fenómeno improvável de contracultura, impondo-se mais tarde ao mundo como um símbolo da paz e como um exemplo de um carro "honesto": reza a história que foi este o adjectivo que serviu de inspiração para a estratégia publicitária da agência DDB que, sobre a liderança do lendário Bill Bernbach, viria a produzir os primeiros anúncios da Volkswagen, absolutamente simples e geniais, não escondendo a "feiura" do carro, mas conseguindo uma ligação emocional única com os consumidores e, por conseguinte, o estatuto de marca de confiança que, até Setembro de 2015, conseguiu manter.
Papel importante nos seus 80 anos de história teve também, para o bem e para o mal, a família Porsche, sendo que o neto de Porsche, Ferdinand Piëche é também personagem principal neste novo livro, tanto no que diz respeito ao seu carácter de engenheiro visionário, como também enquanto responsável pela cultura "impossível não existe", que acabaria por marcar a performance interna do gigante de automóveis e constituir-se como uma das grandes responsáveis pelo escândalo que se lhe seguiu.
Mas e voltando ao livro que foi oficialmente publicado a 23 de Maio último, escrito pelo jornalista do The New York Times, Jack Ewing, o qual seguiu a indecência da empresa alemã desde o início do "incidente das emissões" e intitulado "Faster, Higher, Farther: The Volkswagen Scandal", o mesmo revela novos detalhes não só do escândalo ético que abalou a empresa, ma de uma conspiração alargada e devidamente cozinhada no interior do gigante automóvel para esconder o facto de que os seus automóveis tinham sido concebidos para enganar os reguladores. Aliás e para muitos observadores, o maior pecado da VW não foi o de cometer fraude nos seus denominados "dispositivos manipulados", mas sim por ter levado quase três anos a negar o (mau) feito e a mentir, enganar e a tentar "atirar areia para os olhos" dos reguladores de todas as instâncias legais que começaram a seguir o caso. Com base em vários artigos, entrevistas do autor e, em particular, sobre um resumo que escreveu sobre o próprio livro no The New York Times, o VER tenta reconstruir, de forma cronológica, os principais atentados à ética que cabem neste caso. E que são muitos e de ordem variada.
Os primeiros alertas laranja
Com início em 2013, e depois de um ano a estudar os motores a diesel "limpos" da Volkswagen, os alunos e professores do Center for Alternative Fuels, Engines and Emissions, da Universidade de West Virginia publicaram um relatório perturbador (neste momento, a publicação "final" está acessível no respectivo site), o qual expunha um comportamento "estranho" no software associado às emissões produzidas pelo modelo em causa, o Jetta Station Wagon. O relatório, enviado para a sede do Grupo, em Wolfsburg, na Alemanha, foi lido por Bernd Gottweiss, responsável pela área de segurança de produto da gigante alemã e, supostamente enviado, num resumo de uma página e em conjunto com informações mais detalhadas, a Martin Winterkorn, o CEO da VW e que o deveria ler durante o fim-de-semana.
De acordo com o autor do livro, Gottweiss reportou ao responsável máximo da empresa que o Volkswagen Jetta analisado pela equipa da Universidade de West Virginia estava a emitir entre 15 a 35 vezes mais das quantidades permitidas de óxidos de nitrogénio em testes na estrada, o mesmo acontecendo com a carrinha Volkswagen Passat, com valores cinco a 18 vezes superiores ao limites estabelecidos. Os mesmos carros, contudo, tinham passado nos testes feitos nos laboratórios da própria Volkswagen.
Como adianta ainda Jack Ewing, Gotweiss escreveu ainda: "Não é possível dar uma explicação minuciosa às autoridades sobre o dramático aumento das emissões de NOX [termo técnico para os óxidos de nitrogénio] (…) sendo de presumir que estas irão de seguida investigar os sistemas da VW para determinar se implementámos um sistema de detecção de testes na unidade de controlo do motor [o que viria a constituir o famoso e malfadado ‘dispositivo manipulado’)". Por outras palavras, o "defeat device", colocado em milhões de carros movidos a gasóleo tinha a capacidade de modificar a "performance dos motores no mundo real" conseguindo "sentir" que os mesmos se encontravam em ambientes de testes em laboratório e, engenhosamente, alterar os níveis de emissões para os valores aceitáveis.
Apesar do memorando de Gottweiss ter alertado para um aviso claro à "mais elevada" gestão de topo de que seria um enorme risco para a VW ser apanhada neste incumprimento e de a própria empresa não negar que o CEO Winterkorn o tenha recebido, a empresa insistiu sempre, já em tribunal, que não existem provas de que Winterkorn tenha lido o memorando, o qual estava "misturado" num conjunto alargado de outros documentos.
E é neste ponto que o pecado da Volkswagen começa a tomar contornos mais graves. À semelhança de outros gigantes que foram apanhados em fraudes ou em situações ilícitas, se a Volkswagen tivesse sido, nesta altura, honesta o suficiente com as autoridades americanas assumindo o erro, a sua reputação e finanças poderiam ter sofrido um bom abalo, mas não o terramoto cheio de réplicas que se lhe seguiu e que acabou por ser extremamente devastador. Casos similares indicam que a empresa seria obrigada a retirar do seu bolso algumas centenas de milhões de dólares e o caso teria, muito provavelmente, ficado por aí. E não em quase 24 mil milhões de dólares, como alegam algumas estimativas, nenhuma delas ainda considerada fiel.
A cultura do "impossível não existe"
Num artigo publicado pela CBS News nas vésperas do lançamento do livro e citando o próprio Jack Ewing, pode ler-se: "o factor que mais distingue o escândalo das emissões da Volkswagen face a outros escândalos corporativos reside no facto de o mesmo ‘não ter sido motivado pelo dinheiro’". E, acrescenta: "se olharmos para os grandes escândalos da banca, o que geralmente aconteceu foram pessoas que estavam a tentar atingir bónus astronómicos apenas para ganhar dinheiro",diz, afirmando que no caso do gigante automóvel, este estava apenas a tentar defender a sua quota de mercado e "penso, a tentar atingir as expectativas que a gestão de topo tinha estabelecido para os seus empregados, sendo que aqueles que acabaram por ser responsabilizados estavam apenas a tentar segurar os seus empregos".
A visão de Ewing apresentada neste novo livro sobre a "grande conspiração" que acabou por fazer parte de todo o processo de fraude que levaria a empresa a bater com o nariz no chão em Setembro de 2015, está em muito relacionada com um dos grandes problemas éticos que se apresentam a muitas das grandes organizações: a incrível pressão feita pelos executivos do topo para que se alcancem resultados, muitas vezes, humanamente impossíveis de serem atingidos mas, e mesmo assim, de "alcance obrigatório seja através de que meios for".
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