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Silicon Valley não pode ignorar que a ética faz parte da inovação

Apaixonámo-nos pelas suas ferramentas e serviços – compramos convenientemente na Amazon, socializamos alegremente no Facebook e confiamos plenamente no Google quando precisamos de qualquer informação – e só agora começamos a perceber que a paixão não é isenta de efeitos colaterais. Assumindo-se como berço do bem, da criatividade e da conexão total, Silicon Valley está cada vez mais ganancioso e arrogante. E está mais do que na altura de começar a comportar-se eticamente, tal como se exige às demais indústrias. As universidades finalmente perceberam esta urgência e estão a apostar na ética para formar a nova geração de cientistas da computação

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"No fundo, Silicon Valley está cheio de pretensos idealistas, socialmente estranhos, que trabalham obsessivamente durante longas horas e que estão convencidos que só eles estão certos e o resto do mundo está errado"

Mellissa Schilling, professora de Gestão na Stern School of Business e autora de Quirky: The Remarkable Story of the Traits, Foibles, and Genius of Breakthrough Innovators Who Changed the World

Em 2017, Franklin Foer, ex-editor da revista The New Republic e actualmente jornalista na revista The Atlantic, escreveu o livro World Without Mind: The Existential Threat of Big Tech, o qual alertava para uma "ameaça existencial" protagonizada pelas quatro gigantes tecnológicas – Google, Amazon, Facebook e Apple (esta última a menos perniciosa, a seu ver), as quais foram igualmente responsáveis por uma total revolução no que respeita a quem controla o conhecimento e a informação, entre outras coisas.

Todavia e apesar de estas empresas terem realmente revolucionado a forma como fazemos compras, socializamos e encontramos informação, tornando as nossas vidas muito mais fáceis, pelo caminho foram também corroendo a nossa autonomia e individualidade, sendo esta a tese principal do livro de Foer.

E, apesar de diabolizar exageradamente os "fins" dos quatro titãs da tecnologia, em alguns casos Foer não deixa de ter razão. O que a princípio parecia ser o melhor do mundo, acabou por nos influenciar mediante formas subtis e sem preocupação aparente sobre um conjunto variado de questões éticas. Como afirmou o autor numa longa entrevista, "se considerarmos os dados como um raio x da nossa alma, é uma janela para as nossas mentes que está nas mãos dessas empresas. E é um raio x extremamente poderoso para se ter na mão porque quantomais se ‘compreende’ alguém, mais fácil é manipulá-lo".

O livro de Foer estava praticamente terminado quando vieram a lume as notícias sobre a suposta ligação da Rússia com a equipa que trabalhou na campanha de Trump para as eleições americanas de 2016, o que o obrigou a fazer alguns acrescentos. Mas e na verdade, alguns dos temas que fizeram manchete em 2017 e agora em 2018, serviram-lhe de análise antecipada: o que o jornalista defende é que à medida que estas empresas se foram expandindo, assumindo-se a si mesmas como as campeãs da individualidade e do pluralismo, os seus algoritmos levaram-nos à conformidade e à destruição da nossa privacidade. Por um lado, "produziram uma cultura instável e estreita de desinformação que nos colocou num caminho para um mundo sem contemplação, pensamento autónomo ou introspecção solitária. Um mundo sem mente", pode ler-se no livro. Por outro, e apesar de as suas tecnologias constituírem um "monumento à criatividade humana", acabaram "por se colocar entre nós e a realidade, funcionando como um poderoso filtro para chegarmos às notícias e à informação".

Uma outra ideia reflectida no livro de Foer tem a ver com o conceito de "rede", o qual define como "o maior fetiche de Silicon Valley", traduzido por uma procura incessante de colectivismo. Para o autor e jornalista, a ideia obsessiva para a criação de uma espécie de consciência global acabou por abafar completamente o individualismo. E esse colectivismo que funcionava como um ideal – a rede que conecta e une todos igualitariamente – acabou por se transformar numa luta sem tréguas para ganhar dinheiro, ou não sejam todos os fundadores e CEOs destes gigantes detentores de algumas das maiores fortunas do mundo.

Mas o maior problema é que o seu crescimento desmesurado não foi acompanhado por normas éticas adequadas e essa é uma preocupação que, finalmente, parece estar a ocupar a mente dos responsáveis pela formação da próxima geração de cientistas de computação. De acordo com a Code.org, cerca de meio milhão de alunos deverão ser treinados, pelas grandes universidades de tradição tecnológica, na mais óbvia disciplina que deve acompanhar qualquer disrupção civilizacional: sim, a ética está já e vai passar, de forma crescente, a constar dos currículos de instituições de ensino como Harvard, o MIT, a Universidade de Stanford, entre outras, numa tentativa de se evitar os mesmos erros que, até agora, têm manchado a reputação de Silicon Valley. Mas tal não será tarefa fácil no ecossistema tecnológico mais famoso do mundo.

© DR

A alma perdida do Vale


Faz do mundo um local melhor. Não causes mal algum. Não provoques danos. Move-te depressa. ‘Quebra’ coisas. Falha depressa, falha muitas vezes.


Estes são alguns dos mantras (que soam muito melhor em inglês, sem dúvida) que têm acompanhado, desde há muitas décadas, o famoso Silicon Valley (SV), sede das grandes empresas de tecnologia e de inúmeras start-ups. E, depois da novela sem fim à vista protagonizada pelo Facebook e pela Cambridge Analytica, o Vale tem mais um mantra: desenvolve primeiro e pede desculpas depois.

Afogados que estamos em notícias sobre o infeliz comportamento da maior plataforma social online, não é nossa pretensão escavar mais sobre o assunto e apontarmos o dedo à tremenda ausência de ética que envolve todo o caso. Mas, e face aos muitos erros que os actores de SV têm cometido ao longo dos últimos anos – disseminação de desinformação, as famosas fake news, brechas de segurança sem limites, a venda de dados privados sem o consentimento dos consumidores, a actividade não controlada por redes de propaganda, assaltos à privacidade e à democracia, proliferação de discursos de ódio, entre um sem número de outros delitos – a confiança do público começa a sofrer uma enorme erosão face àquele que foi durante muito tempo encarado como o berço de ideias para um sociedade mais justa, livre, conectada, virtuosa e até altruísta.

A confiança digital tem sofrido alguns abalos, mas o caso do Facebook veio provocar um inevitável terramoto e despertar muitas pessoas, pela primeira vez, para a morte da privacidade, visto que os nossos dados são utilizados para finalidades que conhecemos e consentimos, mas também para uma miríade de outros inimagináveis fins. Mas e na verdade, a questão da privacidade é apenas um lado da ausência de ética que caracteriza os grandes gigantes tecnológicos, os quais começaram por nos fazer apaixonar pelas suas ferramentas e serviços – fazemos compras da forma mais conveniente na Amazon, socializamos alegremente no Facebook e confiamos plenamente no Google quando precisamos de qualquer que seja a informação – mas que agora parecem saber mais sobre as nossas preferências do que nós mesmos, contribuem para isolar em vez de unir, dificultam o pensamento livre, entre outros efeitos colaterais com os quais – e sem dúvida – pactuamos.

Adicionalmente, não nos podemos esquecer que Silicon Valley e os gigantes que o habitam sempre gostaram de se assumir como uma força para o bem. Mas parece ter chegado a altura em que as evidências começam a mostrar o contrário.

Numa extensa reportagem realizada pela revista Fortune em 2016 exactamente sobre o clima de ausência de ética que parece pautar SV – com inúmeros exemplos de start-ups mal comportadas, referia-se que apesar de nenhuma indústria ser imune à fraude, "Silicon Valley sempre se viu a si mesma como uma excepção virtuosa, um local onde nerdsaltruístas toleram o capitalismo só para fazerem do mundo um local melhor. De repente, o Vale está tão desonesto e ganancioso como o resto do mundo dos negócios".

Os observadores da indústria afirmam também que se alguns fundadores se transformam em bons CEOs, o mesmo não acontece com muitos outros, o que acaba por ser um subproduto da própria cultura de Silicon Valley, onde toda a gente idolatra os engenheiros, os designers e os inventores enquanto os gestores são relegados para segundo plano e não são respeitados. "Temos uma epidemia de má gestão", afirma um partnerde uma empresa de capital de risco citado no mesmo artigo da Fortune, acrescentando também que o que faz o mau comportamento mais provável é o facto de as pessoas serem jovens e inexperientes. E, sublinha, quando se dá a pessoas inexperientes o controlo de gigantescas pilhas de dinheiro, lhes dizem que a tradição é para ser ignorada, que quebrar as regras é "normal" no "seu" ambiente de criatividade e singularidade, não é difícil imaginar o que pode acontecer a seguir.

Uma apreciação similar faz o The New York Times sobre o "caminho escorregadio" do Vale e das empresas ali sedeadas. "Enquanto qualquer que seja a indústria se confronta com dilemas morais, Silicon Valley é uma outra órbita. O dinheiro que se ganha na tecnologia é colossal; os mais bem pagos actores de Hollywood, por exemplo, recebem menos do que engenheiros do nível mais baixo durante uma oferta pública inicial [IPO, na sigla em inglês] de uma empresa de tecnologia", assegura. E refere também o facto de muitas das start-ups serem, geralmente, geridas por "miúdos-maravilha" que não têm a experiência de vida necessária para perceber que a suas acções podem ter consequências severas, sendo que estes jovens fundadores (que cresceram a idolatrar Steve Jobs) estão mais preocupados em ganhar do que em qualquer outra coisa.


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