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O paradoxo da estupidez na economia do conhecimento

Conhecimento, aprendizagem, talento, pensamento crítico, inovação, criatividade: todas estas palavras são mais do que comuns na literatura obrigatória das escolas de negócios, nos relatórios publicados pelas consultoras e nos discursos proferidos por políticos de todo o mundo. Mas a triste realidade parece apontar exactamente para o seu oposto: as organizações da actualidade prezam a obediência, a ingenuidade, o conformismo, níveis reduzidos de pensamento crítico e de reflexão, sendo igualmente adversas ao pensamento independente. Porque é mais fácil manter o status quo e porque pensar dá muito trabalho

Helena Oliveira - Portal VER helena.oliveira@ver.pt 19 de Novembro de 2017 às 13:00

Depois de várias semanas de notícias e reportagens sobre o quão avançada está a inteligência humana, a qual foi até capaz de criar uma sua "sucedânea" artificial, mas potencialmente mais poderosa do que aquela que levou milhões de anos a ser aprimorada – a nossa – não deixa de ser uma inevitabilidade olharmos à nossa volta e questionarmos se, ao invés, a humanidade não está antes a atravessar uma crise de estupidez.

Com tantos progressos, estudos "avançados", inovações, empresas "do futuro", realidades mais estranhas que a própria ficção científica, novos modelos de negócio, talentos e a "geração mais bem preparada da História", certo seria podermos afirmar que a denominada economia e/ou sociedade do conhecimento está bem e recomenda-se. Mas a verdade é que não é bem assim e os exemplos multiplicam-se todos os dias, tal como acontece com os actos mais abrangentes da estupidez humana.

O fenómeno tem vindo a ser objecto de estudo – sim, como todos – mas dois professores de comportamento organizacional em particular dedicaram uma década das suas vidas a tentar compreender por que motivo "empresas ‘espertas repletas de pessoas ‘espertas’ continuam a fazer coisas estúpidas". A mesma questão poderá estender-se ao comportamento de muitas outras organizações, instituições – como as universidades – e até – ou sobretudo – aos próprios governos. Mats Alvesson e Andre Spicer são os autores do livro The Stupidity Paradox: The Power and Pitfalls of Functional Stupidity at Work, o qual, não sendo novo – foi publicado em Junho de 2016 – parece fazer cada vez mais sentido. E foi por isso que o VER decidiu analisar as principais teses nele elaboradas para tentar partilhar com os seus leitores esta estupidez – paradoxal – na era em que o conhecimento atingiu patamares jamais imaginados. E o resultado é o de que qualquer semelhança com a realidade não é pura coincidência. Vejamos porquê.

Há já vários anos que nos fomos habituando a ouvir – e a interiorizar – o que o pai da gestão previa em 1992 num dos seus muitos famosos artigos escritos para a Harvard Business Review: a ideia de que na (outrora) nova sociedade, "o conhecimento é o recurso primordial para os indivíduos e para a economia no geral". Assim, e trinta anos depois de Peter Drucker ter "anunciado" esta nova era do conhecimento, continua viva, mais do que nunca, a premissa de que para sermos competitivos, temos de ser espertos (ou inteligentes), que devemos ser trabalhadores do conhecimento, a trabalhar em empresas de conhecimento intensivo, as quais, por seu turno, fazem lucrar a economia, também ela do conhecimento. Os governos gastam quantias significativas a tentar criar estas mesmas economias do conhecimento, as empresas gabam-se dos seus níveis superiores de inteligência colectiva e os indivíduos passam décadas das suas vidas a aprimorar os seus curricula vitae e a acená-los como meio caminho andado para o sucesso.

Todavia e como defendem os dois autores acima citados, este intelecto colectivo não parece ter reflexo nas muitas organizações que fizeram parte da sua pesquisa: "muito do que se passa nestas organizações foi descrito – e na maioria das vezes pelos próprios trabalhadores que as integram – como ‘estúpido", afirmam, indo ainda mais longe e assegurando que "longe de serem de ‘conhecimento intensivo’, muitas das mais reconhecidas organizações da actualidade se transformarem em engenhos de estupidez". E acrescentam: "testemunhámos, em inúmeras ocasiões, pessoas espertas que, ao começarem a trabalhar, simplesmente param de pensar e começam a fazer coisas estúpidas" e "começámo-nos a questionar seriamente por que motivo é que estas organizações, que realmente contratam pessoas inteligentes, poderiam encorajar tamanha estupidez".

Depois de vários debates acesos, os autores concluíram que estas mesmas organizações espertas, com pessoas espertas portadoras de QI elevados e qualificações impressionantes, fazem coisas estúpidas porque, simplesmente, funciona – pelo menos a curto prazo. Ao evitar um pensamento criterioso, é muito mais fácil as pessoas limitarem-se simplesmente a fazer o seu trabalho, fazer muitas perguntas apenas serve para aborrecer os outros, nomeadamente as chefias, sendo ainda motivo de distracção, e nada é mais libertador do que seguir o rebanho e sentir que a ele se pertence.

Mats Alvesson e Andre Spicer concluíram ainda, e antes de deitarem mãos à sua obra (inicialmente o seu trabalho de pesquisa foi publicado num paper) que se a estupidez a curto prazo até poderia funcionar, em termos de períodos de tempo mais duradouros, a mesma criaria, inevitavelmente, problemas sérios. E foi assim que decidiram mergulhar no chamado "paradoxo da estupidez funcional" e facilmente identificável. Para tal, basta encontrar três constantes que definem as empresas que sofrem desta maleita: as pessoas não perguntam nem conferem justificações relativamente a um "trabalho em acção", optando por utilizar expressões como "que se dane, vamos lá fazer isto"; não reflectem sobre as premissas subjacentes ao que tem de ser feito e não pensam nas implicações a longo prazo das suas acções. Se nota alguma semelhança com o que se passa na sua empresa, continue a ler este artigo. Caso contrário, continue a lê-lo na mesma porque a estupidez veste-se das mais inimagináveis roupagens.


A aversão ao pensamento independente


Conhecimento, aprendizagem, talento, pensamento crítico, inovação, criatividade: todas estas palavras são mais do que comuns na literatura obrigatória das escolas de negócios, nos relatórios publicados pelas consultoras e nos discursos proferidos por políticos de todo o mundo.

Nas organizações e optando propositadamente pelos pomposos títulos em inglês que abundam já no nosso léxico nacional, existem os "chief knowledge officers", os "cognitive engineers", os "data alchemists" e os "innovation sherpas". Como escrevem os autores, para encontrar um almejado lugar ao sol nas empresas de "conhecimento intensivo", os jovens são aconselhados – auto obrigando-se – a cada vez mais anos – e dispendiosos – de educação académica e a passar por "experiências" que servem para enriquecer as suas vidas para se tornarem "talentos" contratáveis pelas empresas que os procuram. Os autores são sarcásticos o suficiente para darem como exemplo CVs de jovens que "ganham vantagem por terem construído poços no Uganda (empreendedorismo), por terem trabalhado num café em Brooklyn (gestão de serviços), por terem tirado fotocópias em bancos de investimento de Londres (analistas) e por terem ensinado crianças a fazerem ski numa qualquer estância de Inverno (liderança) ".

Os governos gastam quantias significativas a tentar criar estas mesmas economias do conhecimento, as empresas gabam-se dos seus níveis superiores de inteligência colectiva e os indivíduos passam décadas das suas vidas a aprimorar os seus curricula vitae e a acená-los como meio caminho andado para o sucesso


Perante todas estas palavras comuns mas, e para os autores, ocas de significado, o suposto enfatizar do conhecimento, da racionalidade, do talento, da inovação e da aprendizagem contínua transforma-se, em muitas organizações, num cultivar de obediência, ingenuidade, conformismo, baixos níveis de pensamento crítico e de reflexão, o que permite às mesmas, um funcionamento "suave", na medida em que as pessoas evitam a ansiedade normalmente associada a responsabilidades mais alargadas, limitando-se a seguir o status quohabitual. A aversão ao pensamento independente é, também, uma característica destas mesmas organizações.

Para os autores, o que é ainda mais estranho não se resume ao facto de pessoas inteligentes e com elevadas qualificações se limitarem a aceitar ideias estúpidas, mas sim a triste realidade de estas ideias "funcionarem", pelo menos a curto prazo, tanto no caminho trilhado pela própria empresa, como na forma que os indivíduos encontram para irem construindo as suas carreiras.

Adicionalmente, ideias insensatas servem também para que as organizações e os indivíduos que nelas trabalham se sintam bem e projectem uma boa imagem para o exterior. Por exemplo, e a seguir à crise do subprime, muitos foram os bancos que resolveram, entusiasticamente, levar a cabo cursos de ética ou aprimorar o que denominaram como "liderança autêntica". Os responsáveis por estas ideias que funcionam mais como "show off" – uma das características também incluídas na estupidez funcional – do que de forma efectiva – simplesmente pensaram que ao se "reconectarem" com os seus "valores interiores", seria simples auto dotarem-se de mais ética e aumentarem a performance organizacional em simultâneo. Como exemplificam os autores, e apesar de a ideia parecer muito bonita no papel, muitos dos participantes – na sua maioria executivos sénior – consideraram a iniciativa ou como "intrusiva"ou como "uma perda de tempo", ou ambas. O que Mats Alvesson e Andre Spicer pretendem dizer é que o facto de participarem numa iniciativa desta natureza – e em tantas outras similares – não contribui em nada para se "ganhar valores" mas para as pessoas se sentirem um pouquinho melhor consigo próprias.

Adicionalmente, acrescentam, as pessoas acabam por ser recompensadas por terem a aparência certa, os valores certos e as atitudes certas. Ou seja, os indivíduos que se recusaram a participar nestes "cursos de ética" acabaram por ser considerados como "desvios à norma" e por não se enquadrarem neste tipo de cultura organizacional repleto de boas intenções. E mesmo que os bancos, enquanto um todo, tenham beneficiado destas iniciativas – mostrando aos media, aos políticos e aos reguladores que estavam a "enfrentar o problema", independentemente da sua eficácia, a verdade é que o objectivo final foi cumprido: não só geraram uma boa imagem para o exterior, como fizeram acreditar que os seus empregados estavam mais comprometidos com os tais valores em falta.



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