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Tudo o que vem à rede é dado

Os nossos dados pessoais estão por todo o lado, e são muito rentáveis, da saúde ao comércio online. Saiba o que são big data, como nos afetam enquanto consumidores e o que podemos fazer para nos defendermos.

Kacper Pempel/Reuters
02 de Maio de 2018 às 10:25
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"Vou propor-lhe um negócio." "Sim, diga, por favor." "O senhor pode servir-se do que quiser da minha loja gratuitamente todos os meses." "Muito obrigado. A que devo tanta generosidade?" "O senhor é que é muito generoso. Preencha só este formulário, por favor. Indique nome, morada, número de telemóvel, número do cartão de cidadão, de contribuinte, e e-mail." "Desculpe, eu só queria um quilo de maçãs. Porque tenho de preencher toda esta papelada?" "Porque assim pode receber, em casa, todas as nossas promoções." "Mas não estou interessado nisso. Só queria mesmo um quilo de maçãs." "Então, boa tarde, não temos mais nada a tratar. Até à próxima."

Imagine uma ida à mercearia assim.

Não pagava nada, mas, ou deixava os seus dados pessoais com o merceeiro ou ia de mãos a abanar. A diferença entre o cliente que saiu desta loja imaginária na nossa pequena história e um internauta é ter saído muito intrigado. Provavelmente, ter-se-ia dirigido a outra loja, onde pagaria pelo que queria consumir, mas sem que lhe exigissem saber uma parte da sua vida.

Já o consumidor que faz as suas compras pela net não reage. Pode não pagar (ou despender uma quantia irrisória) pelo que consome, mas dá os seus dados de mão beijada. E desliga, feliz, o computador, à espera do produto que encomendou, ou ainda a refletir sobre os "conteúdos" que leu, viu, ouviu ou postou sem pagar um tostão. Como concede os seus dados pessoais? Basta que diga que concorda com aquele texto infindável (e ilegível) dos "termos e condições" que lhe é imposto para prosseguir. E aqui entra mais um ponto em comum com aquela insólita ida à mercearia: quem ler com atenção os termos e condições e não concordar não prossegue com a compra. "Até à próxima", dir-lhe-á o site, como aquele merceeiro da nossa história.

Se hoje somos muitos a navegar online - três mil milhões, segundo algumas estatísticas, quase metade da população mundial -, é porque aceitámos dar um conjunto vasto e preciso de informações pessoais a grandes empresas online.

Essas organizações, sejam califas das redes sociais como o Facebook, sejam sultões da tecnologia como a Google, a Apple ou a Microsoft, são autênticas bibliotecas de dados pessoais, e vendem-nas aos anunciantes. Estes, através de sofisticados algoritmos, vão direcionar a publicidade de acordo com os perfis que os nossos dados definiram. Se visitarmos, por exemplo, um site de artigos de desporto, passaremos a ver muitos anúncios deste setor específico noutros sites por onde passemos. Bem-vindos ao mundo dos big data, ou megadados.

Num rito realizado pela Deco Proinquéteste sobre privacidade na internet, 32% dos participantes afirmavam ter ouvido falar de big data. Destes, numa escala que variava de "muito" a "quase nada", apenas 6,6% se consideravam muito informados sobre o assunto. Cerca de metade (51,4%) afirmava saber "um pouco" e 28,7% consideravam saber "alguma coisa" sobre o tema. Apenas 13,3% assumiam que o que sabem é "nada ou quase nada". Note-se que estes últimos resultados foram obtidos entre os participantes que diziam já ter conhecimento do conceito. Porque, se considerarmos a amostra total dos inquiridos, mais de 68% nunca ouviram falar de big data.

Pode conferir os dados nacionais nesta ilustração.


Pergunta bem, nesta altura: e é assim tão importante saber o que são os big data? Claro, e por várias razões.

O que é preciso é saúde

E porque o importante é a saúde, comecemos por ela. Os anunciantes e as grandes multinacionais da net perceberam logo que este era, senão o primeiro, um dos grandes filões a explorar.

Aqui é preciso um cuidado redobrado: quem está doente somos nós, mas isso pode significar uma margem de lucro considerável para eles. A informação que fornece sobre si nesta matéria é altamente sensível. Não será tão inofensivo quanto o que se relatava na ida à mercearia da nossa história.

Recomendamos que não forneça informação de saúde por e-mail.  deco proteste

Imagine agora que é doente crónico e pretende contratar um seguro de saúde. Qualquer informação que dê sobre doenças - suas ou de algum parente que queira incluir -, como diabetes, problemas de tiroide ou cardiovasculares, já lhe complica o acesso a um seguro hoje.

Continue a imaginar, então, um mundo em que a saúde é um serviço online, em que as seguradoras traçam perfis diferenciados dos seus clientes em função das doenças que possam ter. E, pior, das doenças que possam vir a ter. A informação genética do candidato ao seguro de saúde pode ser fundamental para o acesso ao serviço.

A seguradora pode concluir, a partir dos genes do indivíduo, que será propenso a diabetes, problemas cardíacos, um cancro específico ou outra qualquer maleita. E pode negar-lhe o acesso a um contrato. Ou, pelo menos, não cobrir uma série de problemas relacionados com essa doença.

(Des)crédito à habitação

Mas este raciocínio enviesado pode ainda dar mais saltos. Se, por exemplo, o consumidor azarado sofrer de alguma predisposição genética para uma doença crónica, a seguradora a quem tenta contratar um seguro de vida para pedir um crédito à habitação pode pôr-se a fazer contas... E a discriminá-lo, não lhe concedendo o seguro, ou cobrando-lhe valores impossíveis. Neste caso, adeus, crédito à habitação, já que o seguro de vida é, quase sempre, condição indispensável.

Recomendamos, por isso, cuidado quanto à informação que presta no momento em que tentar celebrar um contrato desta natureza. Mas, se, tal como na mercearia que imaginámos há pouco, a sua entrada no serviço depender de fornecer dados de saúde, então, estará encurralado. O princípio de que não há serviços sem fornecimento de dados, sem que isso seja pertinente (temos de os dar para receber uma encomenda, ou uma newsletter por e-mail, por exemplo), é abusivo e algo a que estaremos atentos.

App bisbilhoteiras

No reino dos big data de saúde, já nos olham, do seu trono virtual, algumas aplicações (app) tecnológicas. E "olhar" é mesmo o termo. Alguns testes ao comportamento deste tipo de software que permite controlar o estado de saúde de pacientes de risco, lançando alertas em caso de arritmias cardíacas, por exemplo, revelaram que os dados de utilizadores podem ser enviados para empresas dos EUA e da China sem que o utilizador seja tido nem achado.

Foi o que se passou com as app testadas pelo Conselho de Consumidores da Noruega, nosso congénere naquele país escandinavo. Mas o alcance do problema parece ser universal, seja qual for a app, que monitoriza a saúde em tempo real, num smartphone ou nos chamados wearables, como as pulseiras de fitness.

Pode perguntar outra vez "e que mal vem ao mundo?". Se a app é gratuita, a empresa que a desenvolveu pode pedir uma contrapartida destas, que é inofensiva...

A observação é, no mínimo, inocente. Consegue imaginar-se a fazer o seu jogging com uma pulseira de fitness e que os dados medidos (passada, ritmo cardíaco, etc.) sejam enviados, entre outras empresas, a uma seguradora? Se descobrir, depois, que o seu prémio de saúde aumentou consideravelmente sem que houvesse justificação para isso, já sabe...

Claro que há vantagens (veja a a figura do verso e o reverso da medalha ). É que na extensa família dos big data também podemos encontrar um repositório de informação médica da Google, que integra estudos científicos sobre várias doenças. E que pode ser consultado por qualquer médico, se tiver dificuldade em fazer um diagnóstico, por exemplo. Neste caso, será útil se o médico conseguir navegar entre os melhores estudos publicados.

A saúde, já vimos, é um mundo.

Tal como nós, aquela organização de consumidores escandinava recomenda, ainda, que não troquemos informação deste grau de sensibilidade por e-mail. Nem sequer com o nosso médico. E aqui já entram as questões de segurança, que darão, com certeza, rios de tinta para outros artigos.

O que se diz das apps de saúde pode estender-se a todas as aplicações para smartphones. Um estudo do Privacy Lab da Universidade de Yale (EUA) descobriu 25 "trackers" (software que permite seguir os hábitos dos internautas, de várias formas) ocultos em apps populares da Google Play, como a Uber, o Tinder, o Skype, o Twitter, o Spotify e o Snapchat.

Ou seja, uma considerável quota do mercado "capta" os nossos dados pessoais sem que disso tenhamos conhecimento. É de notar que esses "trackers" podem ser "legítimos", estão descritos nos tais termos de utilização que assinalamos ao aderirmos a determinada app, serviço, compra, etc. Ou seja, os tais termos que não lemos e que aceitamos sem qualquer reserva... Mas, além destes, há "trackers" que são uma espécie de software "espião", instalado de forma dissimulada no nosso computador e que regista, por exemplo, todas as teclas que usamos.

Este expediente pode servir para descobrir passwords de acesso a e-mails, a redes sociais, ou até ao homebanking. A equipa da universidade americana assinala que os "trackers" encontrados são uma pequena amostra dos 86 identificados pelo projeto Exodus Privacy, uma organização francesa sem fins lucrativos que se tem dedicado a descodificar este software nas apps da Google Play. E reforça que se trata de software "escondido", mas que se destina a analisar o comportamento dos utilizadores através de geolocalização, para direcionar publicidade.

GPS para anunciantes

A geolocalização é, aliás, outra peça-chave no universo dos big data. Consegue-se através de sistemas de GPS, cujo software tem ligação direta a satélites. É claro que o sistema dá jeito para nos orientarmos em viagens de carro para sítios que não conhecemos. Mas também pode servir para conhecer os nossos hábitos, os lugares onde costumamos ir e até com quem estamos (os nossos próximos também estarão ligados a GPS).

Até aqui, parece não vir mal ao mundo. Mas e se as seguradoras conseguirem traçar um perfil do condutor com base na velocidade média a que circula, calculando, por exemplo, quanto tempo demora a chegar de uma portagem à seguinte, num trajeto em autoestrada? Podemos defender-nos não usando GPS. Mas imagine, por fim, que a companhia de seguros o exige para contratar uma apólice... Seremos, como diz Timothy Garton Ash, um bando de pássaros com anilhas eletrónicas estudados à distância por especialistas de aves?

O historiador britânico não tem dúvidas na resposta: "Hoje, todos nós somos pombos anilhados."

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O estudo da deco proteste

Entre maio e junho de 2017, a Deco Proteste realizou o estudo sobre privacidade na internet e recebeu um total de 879 respostas válidas. Os resultados foram ponderados de forma a serem proporcionais à população nacional de utilizadores da internet. Os dados espelham as opiniões e as experiências dos inquiridos.

DADOS DE DUAS FACES

BIG DATA
Não há bela sem senão.
Alguns exemplos 




A salvação de um doente pode estar à distância de um clique

A Google já é conhecida por não limitar a sua atividade ao desenvolvimento de "simples" motores de busca. Entre muitos outros projetos, o gigante da informática tem um índice de artigos científicos publicados em várias áreas, entre as quais a saúde, que podem ser uma ajuda a um médico em caso de dificuldade de estabelecer um diagnóstico.

Sai um "cookie" para a mesa do lado...
A política de "cookies" (que servem, de facto, para gravar dados com as nossas características e preferências) pode ser usada no bom sentido. Se vários internautas pesquisarem, a dada altura do ano, por "gripe" no Google, as autoridades de saúde podem mobilizar mais meios e campanhas para combater um surto.

Consigo saber onde estás,em caso de emergência
Fundamental para uma política de big data, a geolocalização por GPS permite que encontremos o caminho mais curto em direção a locais desconhecidos ou que nos localizem, através do smartphone, em caso de emergência, seja por acidente ou catástrofe natural (neste último caso, desde que haja rede...).





Saúde: diz-me os teus genes,farei o teu diagnóstico
Dados partilhados de doenças ou de tendências para maleitas?
Só com muita cautela... O risco de um perfil genético determinar o acesso a um seguro de saúde, por exemplo, é alto. As apps de monitorização do estado de saúde que usamos em smartphones também podem ser uma forte arma de exclusão à contratação de um seguro de saúde.

... mas o "cookie" pode ser amargo
A mesma pesquisa por gripe feita, por exemplo, em janeiro, nos países do Hemisfério Norte, pode conduzir a uma revoada de anúncios em e-mails, em contas do Facebook ou noutras redes sociais. Porquê?
Justamente, porque os nossos dados são partilhados entre empresas para estas (e outras) ocasiões.

Consigo saber onde estás sempre, com quem falas, por onde andas
Basta abrir o Google no nosso smartphone para ele pedir para "utilizar localização precisa".
Para quê? É esta a pergunta de um (ou vários) milhão de dólares: sabendo onde estamos, as empresas conseguem determinar comportamentos e hábitos de consumo. A partir daí, podem dirigir os seus anúncios de maneira mais precisa. Mas também sabemos que guardam informação pessoal valiosíssima, que podem vir a transacionar com outras empresas. 



Este artigo foi redigido ao abrigo do novo acordo ortográfico.


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