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Theranos queria revolucionar o mercado da saúde mas deixou a nu as fragilidades de Silicon Valley

Uma carismática e jovem fundadora defendia que a ciência desenvolvida pela startup que criou ia revolucionar o mercado de testes de sangue e diagnósticos. Anos depois, a história terminou em tribunal e com uma condenação por fraude.

Bloomberg
04 de Janeiro de 2022 às 13:52
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Apenas algumas gotas de sangue bastam para assegurar mais de duas centenas de exames de sangue - assim era o "pitch" da startup Theranos, fundada em 2003 pela carismática norte-americana Elizabeth Holmes. Num mercado como os Estados Unidos, onde o acesso a cuidados de saúde não está ao alcance de todos, a Theranos floresceu e Holmes tornou-se numa estrela em Silicon Valley, para muitos a meca da inovação e empreendedorismo.

Sucederam-se as capas de revistas - da Forbes à Fortune ou à Inc. - onde o "uniforme" da camisola preta de gola alta reforçava a narrativa daquela que já era descrita como "a próxima Steve Jobs". E a atenção da imprensa chegava também devido aos fartos investimentos feitos na companhia - ao longo dos anos de estrelato, a Theranos contabilizou 945 milhões de dólares em investimento, mais de 837,7 milhões de euros à atual conversão.

Mas a história de Elizabeth Holmes, hoje com 37 anos, não terminou com a tal revolução no mercado da saúde, mas sim no banco dos réus. A Theranos foi encerrada em 2018, depois de toda a narrativa da empresa cair por terra, após vários anos de investigações.

Já em 2022, após um julgamento recheado de contratempos, que se arrastou durante três meses e ao fim de sete dias de deliberação entre os jurados, Elizabeth Holmes foi considerada culpada de defraudar os investidores da Theranos. O júri do tribunal de San José, na Califórnia, considerou que Holmes terá induzido os investidores em erro relativamente às competências da tecnologia da empresa, acusando-a ainda de conspiração com o antigo presidente e diretor de operações da Theranos, Ramesh Balwani, com quem Holmes namorou ao longo de dez anos.

O julgamento chegou ao fim com Holmes como culpada em quatro das onze acusações que enfrentava, que poderão representar até vinte anos de prisão, embora seja expectável que a norte-americana veja o tempo de prisão reduzido. Holmes enfrentava ainda outro tipo de acusações, nomeadamente duas acusações por fraude a pacientes e conspiração para defraudar doentes. Em ambos os casos foi considerada inocente. Já em outras três acusações, o júri não ocnseguiu ainda chegar a uma decisão.

De acordo com a imprensa internacional, o júri decidiu de forma unânime que Holmes teria conhecimento de que a informação que estava a prestar aos investidores e aos pacientes podia induzir em erro.

Como surgiu a Theranos?
Em 2003, quando tinha 19 anos e era uma estudante na prestigiada Universidade de Stanford, Elizabeth Holmes fundou a Theranos. A empresa de biotecnologia queria revolucionar a área dos testes de sangue, ao desenvolver pequenos dispositivos de diagnóstico, chamados Edison Machine.

A comparar com a indústria na altura, a Edison prometia ser mais rápida nos diagnósticos, já que apenas algumas gotas de sangue poderiam servir para assegurar mais de duas centenas de testes. Além disso, ao serem mais pequenas, estas máquinas de diagnóstico também poderiam ser mais baratas do que a concorrência.

Na base desta empresa estaria a própria história de Elizabeth Holmes que, tal como milhões de pessoas, também dizia ter medo de agulhas, situação que terá servido de inspiração à criação da Theranos.

A Theranos foi criada ainda durante o seu segundo ano de estudos em Stanford e, com o desenvolvimento e atenção dada à empresa, Holmes desistiu da faculdade. O "pico" da empresa chegaria dez anos depois, em 2013. Um ano depois, a empresa estava já avaliada em nove mil milhões de dólares (quase 8 mil milhões de euros). 

Quem investiu na companhia?
A Theranos arrecadou cerca de 950 milhões de dólares em investimentos, embora os dados compilados pela plataforma Crunchbase apontem para um valor ainda mais elevado, na ordem dos 1.300 milhões de dólares. No período áureo da companhia, sucederam-se os investimentos de milhões, vindos de nomes conhecidos do panorama do empreendedorismo e não só.

Logo em 2004, um ano após ter sido criada, a empresa recebeu um financiamento de 500 milhões numa ronda seed liderada pela Draper Fisher Jurvetson, agora chamada Threshold VC, uma empresa de venture capital que investe em startups numa fase inicial. Curiosamente, Tim Draper, o rosto mais conhecido da Draper Fisher Jurvetson, manteve-se como um acérrimo defensor da Theranos até ao fim da empresa.

Em fevereiro de 2005, era a vez de o magnata dos media Ruper Murdoch, dono da News Corp, a organização responsável por dezenas de meios de comunicação, como o britânico The Times ou o norte-americano Wall Street Journal, investir na Theranos. Liderou na altura uma ronda série A de 5,8 milhões de financiamento na companhia de Holmes. Larry Ellison, fundador e CEO da gigante Oracle, também integrou a lista de investidore da Theranos.

Depois de o investimento de Murdoch atrair atenções, em 2010 a Theranos conquistava um parceiro de relevo na indústria em que queria operar. A Walgreens, a gigante das farmácias nos Estados Unidos, recorreu à startup para instalar centros de testes de sangue em várias lojas da empresa. Mais tarde, a relação acabaria por azedar, resultando num processo movido pela Walgreens contra a Theranos, com a gigante a querer recuperar os 140 milhões que teria investido na companhia, revelou o Wall Street Journal. As empresas acabaram por chegar a um acordo, que envolveu o pagamento de 30 milhões de dólares.

Uma fraude de milhões
2015 marcou o início do fim da Theranos, primeiro na comunidade científica e, mais tarde, nos meios de comunicação social.

Em fevereiro, John Ioannidis, professor de Stanford, escrevia no Journal of the American medical Association que a investigação médica da Theranos não tinha sido revista pelos pares. Neste tipo de situação, a base científica é analisada por outras pessoas da área, para avaliar a qualidade dos dados em causa.

Meses depois, era a vez de um professor da Universidade de Toronto vir a público concluir, após análise dos dados da Theranos, que "a maioria das premissas da companhia eram exageradas".

Em outubro de 2015, uma série de reportagens do Wall Street Journal acabaria por expor a companhia, avançando falhas nas máquinas Edison, que não estariam a disponibilizar ao público resultados fiáveis. Pelo meio, a empresa estaria ainda a usar máquinas tradicionais para assegurar os testes.

Após vir a público a série do Wall Street Journal, todas as interações entre o regulador norte-americano da área dos medicamentos e alimentação, a FDA, e a Theranos foram passadas a pente fino. Em 2012, por exemplo, esta entidade já teria recebido um pedido vindo do Departamento da Defesa para analisar os dispositivos de testes da Theranos.

Alguns meses após a publicação da reportagem do WSJ, em abril de 2016, era a vez de a Theranos enfrentar uma investigação por parte da norte-americana SEC, desta feita pela relação com os investidores. Sem negar ou admitir as acusações, Elizabeth Holmes chegou a acordo com a SEC, aceitando pagar uma coima de meio milhão de dólares.

Em 2016, a empresa acabaria por encerrar as operações nos laboratórios e ainda despedir cerca de 40% dos trabalhadores que estavam alocados ao desenvolvimento das Edison Machines.

Depois de diversos processos e investigações nos anos seguintes, a empresa chegou ao fim em setembro de 2018, quinze anos após ter sido fundada.

Um julgamento recheados de contratempos
O julgamento da outrora "estrela" do empreendedorismo, que teve início em setembro de 2021, arrastou-se durante meses, depois de ter sido adiado devido à chegada da pandemia de covid-19 e também pela gravidez de Elizabeth Holmes. Inicialmente, a seleção dos jurados estava prevista para julho de 2020 e o arranque do julgamento para agosto de 2020.

Já após os atrasos e adiamentos, o julgamento ficou ainda marcado por diversos contratempos, desde a dança de cadeiras entre jurados ou até por falta de água no tribunal de San José, resultante do rebentamento de um cano nas redondezas. O incidente aconteceu no final de outubro, obrigando a um adiamento da audição de testemunhas.

O julgamento envolveu mais de duas centenas de testemunhas, num "desfile" de executivos de empresas como a rede de farmácias Walgreens ou da Safeway, passando ainda por James Mattis, o antigo secretário da Defesa dos Estados Unidos, que teve um lugar no "board" da Theranos.

E, numa considerável diferença neste tipo de julgamentos por fraude, Holmes escolheu prestar declarações ao longo de sete dias e tentar defender-se das acusações. De acordo com a Bloomberg, essa situação obrigou a antiga empreendedora a admitir a responsabilidade por alguns erros da empresa, mas vincando que não teria tido como objetivo enganar ninguém.

Depois deste julgamento de Elizabeth Holmes, seguir-se-á o julgamento do antigo presidente da Theranos e antigo namorado de Holmes, Ramesh Balwani, marcado para fevereiro de 2022. Durante os depoimentos, Holmes acusou Balwani de a ter violado quando ainda era uma estudante em Stanford e de, ao longo dos anos, a relação de uma década entre os dois ter sido pautada por situações de abuso verbal e sexual. No depoimento, Holmes defendeu que a conturbada relação teve uma "profunda e incalculável influência na sua vida".

Até aqui, Balwani tem defendido ser inocente, tanto no que diz respeito às acusações de fraude aos investidores como nos abusos descritos por Elizabeth Holmes.

Dos documentários à adaptação ao cinema
A ascensão e queda de Holmes já rendeu documentários, livros e podcasts onde é retratada a história da empresa. O jornalista John Carreyrou, que em 2015 assinou a investigação da Theranos no Wall Street Journal, lançou um livro sobre o tema em 2018, no mesmo ano em que a empresa chegou oficialmente ao fim.

As dúvidas sobre o carisma e personalidade de Elizabeth Holmes têm gerado tema de conversa ao longo dos anos. Uma das perguntas mais recorrentes em torno desta figura da empreendedora que abandonou Stanford está ligada à voz. Ao longo das diversas apresentações e conferências que fez nos tempos de estrelato da Theranos, Holmes ficou associada a uma voz grave. E, até hoje, continuam as dúvidas sobre se esta seria mesmo o tom de voz real da jovem empreendedora.

De acordo com alguns ex-empregados da Theranos, a voz mais grave da fundadora da empresa de diagnóstico poderia ser uma estratégia para se afirmar na indústria tecnológica, ainda dominada pelo sexo masculino. A escolha de indumentária na altura das recorrentes aparições da fundadora da Theranos também tentava recordar a figura de Steve Jobs, associado à inovação e ao carisma à frente da Apple.

Curiosamente, a adaptação feita pelo realizador Adam McKay do livro do jornalista John Carreyrou, num filme com o título "Bad Blood", vai fazer parte do catálogo da Apple Original Films. Nesta película, que contará o apogeu e queda da Theranos, Elizabeth Holmes será interpretada por Jennifer Lawrence.
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