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Música vai passar a ouvir-se cada vez mais de phones e em casa
Um relatório do Godman Sachs mostra que, apesar dos concertos ao vivo irem recuperar a sua força dentro de dois anos, a preponderância do streaming vai acelerar no pós-covid. A Apple chegou-se à frente e comprou a NextVR, uma startup especializada em experiências de realidade virtual.
O confinamento decretado pelos governos em todo o mundo, para impedir a propagação da covid-19, acelerou o processo de mudança na forma como as pessoas passaram a consumir. O comércio online ganhou força e os serviços de "streaming" foram reis e senhores da quarentena. Numa indústria altamente afetada pelo novo coronavírus, os discos continuaram a girar, mas em casa, e os concertos continuam a ser feitos, mas vistos através de um ecrã.
Um relatório do Goldman Sachs mostra que a indústria musical, em todo o mundo terá uma quebra de 25% nas receitas totais, em 2020. Mas esse declínio ganha outros contornos nas receitas com os concertos ao vivo: vão afundar 75% este ano. Em contraciclo, estão as empresas de "streaming" musical, onde se espera um aumento de 18% nas receitas.
Aquilo que esta crise de saúde, que rapidamente se traduziu em recessão económica, nos tirou com uma mão – os concertos e os eventos ao vivo – deu-nos com outra – facilidade no acesso a concertos e eventos através dos ecrãs. E é para aqui, que segundo o estudo do banco norte-americano, estamos a caminhar com mais força.
"Esperamos que esta crise atual vá contribuir para acelerar a mudança de paradigma da música offline para a música online, que tem contribuído para o crescimento dos subscritores de serviços ‘streaming’; para aumentar a resiliência da promoção artística através das redes sociais; e aumentar as receitas através do merchandising e dos live 'streaming'", pode ler-se na nota.
A antever esta rápida mudança, a Apple anunciou na semana passada a compra da startup NextVR, uma empresa criada em 2009, especializada realidade virtual, e que nos últimos anos tem estado na linha frente na transmissão de eventos online, como concertos.
Para já, estima-se que a fabricantes de iPhones vá fazer uso desta start-up para desenvolver os óculos de realidade virtual. Com estes óculos, que estão também a ser testados por tecnológicas como o Facebook, a Microsoft ou a Sony, o utilizador poderá passar a assistir a um concerto, na sua sala, como se de hologramas se tratasse.
O rei da quarenta: o streaming
No primeiro trimestre deste ano, as maiores empresas de "streaming" têm esfregado as mãos com o aumento de receitas e novos subscritores.
O serviço de "streaming" da Universal Music Group teve uma subida de 16,5% nas receitas entre janeiro e março. O Spotify reportou um aumento de 6 milhões de subscritores do serviço premium e conta agora com 130 milhões de utilizadores pagantes. A Sony Music anunciou um aumento de 27,5% do "streaming", enquanto que as gravações de novos discos caíram 2,8%, em termos homólogos, no mesmo período. A Apple Music prepara-se para atingir um recorde histórico nas suas receitas no segundo trimestre fiscal, que termina a 28 de março. A Amazon Music contava com 55 milhões de subscritores em janeiro deste ano, ainda antes da pandemia.
O futuro aponta para uma preponderância ainda maior dos serviços de "streaming" ao invés, por exemplo, dos discos físicos, cujas vendas deverão desaparecer na próxima década - mesmo o mercado de vinil, que estava a ganhar força desde 2007 -, segundo o Goldman Sachs.
Contudo, os analistas do Goldman Sachs acreditam que "o crescimento da indústria a longo-prazo não será afetado, e a procura por concertos ao vivo e eventos vai crescer após o período de covid-19. Esperamos que em 2030, as receitas totais da indústria totalizem os 142 mil milhões de dólares, comparando com os 77 mil milhões de 2019".
"Com o tempo, acreditamos que os consumidores estarão ansiosos para voltar a concertos e festivais. Não prevemos uma mudança estrutural permanente dos eventos físicos ao vivo para o ‘streaming’. Na verdade, vemos o crescimento deste conceito como algo complementar", acrescentaram os analistas.
Mas enquanto não são possíveis ajuntamentos públicos, os artistas vão aproveitando para inovar na forma como continuam a manter a proximidade com os fãs. Um exemplo disso nesta quarentena é o rapper norte-americano Travis Scott, que fez uma pequena "digressão" pelo jogo Fortnite. O seu primeiro concerto foi visto por mais de 12 milhões de jogadores em simultâneo.
E, segundo o Goldman Sachs, a sua popularidade nas redes sociais, como o Instagram, aumentou, assim como o número de pessoas que ouviram as suas músicas nas plataformas digitais, como o Spotify.
Que implicações teria esta mudança para a cultura?
O agente musical João Vaz Silva, que gere músicos como Bruno Pernadas, Benjamim, Noiserv ou Afonso Cabral, através da JVS Booking, diz ao Negócios que apesar de esta ferramenta ser mais acessível, "não parece que seja uma alternativa viável a longo prazo para a sustentabilidade da cultura e da própria economia, pois estão intimamente ligados".
Apesar da vaga de concertos e festivais de música realizados através das redes sociais, como o Festival Eu Fico Em Casa, que reuniu 78 artistas portugueses no Instagram, são poucos os que geram receitas para os artistas em questão. As iniciativas para ajudar os artistas têm crescido nos últimos dias, mas apenas através de doações voluntárias.
Entre os artistas que gere, João Vaz Silva admite que entre março e setembro deste ano foram cancelados ou adiados mais de 30 concertos, o que "para uma estrutura de pequena dimensão como esta, trata-se de um impacto enorme que afeta a empresa e muitos artistas e técnicos que dependem da sua faturação regular para subsistir".
Atualmente, o governo decidiu que não haverá festivais de música este verão em Portugal até, pelo menos, 30 de setembro deste ano.
No livro "Music 2.0", escrito ainda em 2008, o autor norte-americano Gerd Leonhard, defendia que o futuro da distribuição da música passaria por uma teoria apelidada de "Music Like Water" (ou teoria Bowie, uma vez que a ideia surgiu após uma entrevista ao cantor ao New York Times). Esta teoria defendia que a música deixa de ser um produto para se tornar num bem de fluxo gratuito, como a água.
Entre os pontos que defendia, Leonhard sublinhava um "sistema de preços líquidos", com "subscrições, associações a variados tipos de conteúdo, taxas multicanal e multi-acesso e inúmeros serviços que possam acrescentar valor", com o objetivo de descentralizar uma indústria que se centrava em poucos grandes "players".