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Cirque du Soleil em vias de aceitar oferta dos credores para uma recapitalização
O Cirque du Soleil Entertainment Group, que está em processo de reestruturação, deverá aceitar uma oferta de recapitalização por parte de um grupo de credores.
A companhia canadiana de artes circenses Cirque du Soleil anunciou em finais do mês passado que, devido às dificuldades financeiras que atravessava – agravadas pela pandemia de covid-19 –, tinha decidido avançar com um pedido de proteção contra credores, ao abrigo da lei de falências do Canadá.
O pedido deu entrada no tribunal superior do Quebeque e é lá que o plano de reestruturação da empresa tem estado a ser analisado.
Esta terça-feira, 14 de julho, a Bloomberg avançou, citando fontes conhecedoras do processo, que o Cirque du Soleil Entertainment Group deverá aceitar a oferta de recapitalização feita por um grupo de credores.
O comité ad hoc de credores, que representa os titulares de cerca de 760 milhões de dólares de dívida do Cirque, têm estado a preparar uma "oferta de crédito" que visa que os credores injetem pelo menos 300 milhões de dólares de novo capital na empresa, de modo a que esta possa recomeçar os seus espectáculos.
O Cirque du Soleil tem trazido nos últimos anos muitos dos seus espetáculos a Portugal, atuando normalmente entre finais de dezembro e inícios de janeiro.
A oferta deste grupo de credores será formalmente apresentada, ainda esta noite, a um comité do conselho de administração do Cirque, comentaram à Bloomberg as mesmas fontes.
A proposta, se aceite, deixará os credores de dívida garantida – a quem a empresa devia mais de 900 milhões de dólares a 31 de março – com praticamente todo o capital.
Esta oferta, no caso de avançar, substituirá uma oferta "stalking horse" (expressão usada para descrever o investidor que faz a primeira licitação e tem o direito de cobrir eventuais novas propostas no leilão que se realiza no futuro; acaba por ser um teste ao mercado para apuramento do interesse nos bens em questão) feita em junho pelos acionistas TPG, Fosun e Caisse de Dépôt et Placement du Québec.
Se for aprovada pelo comité do "board" do Cirque, a oferta dos credores seguirá a 17 de julho para avaliação no tribunal.
Um caso de estudo
O Cirque du Soleil tem sido sucessivamente apontado como um exemplo de empreendedorismo e inovação em obras recentes. É citado, por exemplo, nos livros "A estratégia Oceano Azul", de W. Chan Kim e Renée Mauborgne e "Mavericks at work ", de Polly LaBarre e William C. Taylor.
"Criado como um grupo de artistas de rua em 1984, o Cirque tornou-se uma marca de entretenimento global. A ascensão do Cirque já foi aclamada em incontáveis perfis empresariais publicados em revistas de economia, num extenso ensaio da Harvard Business Review e até em casos de estudo apresentados por professores dos dois lados do Atlântico nos cursos de MBA", refere "Mavericks at work".
O fascínio é fácil de compreender. O fundador do Cirque, Guy Laliberté, criou um negócio fabulosamente bem sucedido ao reinventar o próprio conceito de circo, dizem Polly LaBarre e William C. Taylor. "Não há dúvida de que o Cirque foi pioneiro numa estratégia de negócio verdadeiramente original. Mas você não conseguirá compreender o desempenho de negócio desta empresa se não compreender a sua abordagem junto dos próprios artistas. Os seus espectáculos transformaram-se em obras de arte magistrais, em larga medida porque o Cirque dominou a arte e a ciência de pesquisar, avaliar e recrutar o mais atractivo talento disponível. Estabelece uma ligação explícita entre as pessoas que atrai e o produto que oferece, entre a forma como faz negócio e quem convida para fazer parte desse negócio".
No Cirque, ir à procura - antes de ser necessário - implica projectar uma larga teia, refere "Mavericks at work". Os membros do departamento de casting percorrem o mundo, sem descanso, à procura de artistas empolgantes e invulgares. Fazem entre 20 e 40 viagens por ano para destinos tão diversos como os ginásios da Europa de Leste, as favelas do Brasil e os yurts da Mongólia. Também assistem a uma variedade incrível de competições desportivas, sem perderem festivais de artes dramáticas e eventos culturais, nem visitas a escolas de circo.
Em "A Estratégia Oceano Azul", que defende que se deve desbravar terreno inovador em vez de se tentar ultrapassar a concorrência, o primeiro capítulo é dedicado ao Cirque du Soleil. "Guy Laliberté já tocou acordeão, fez equilibrismo sobre andas e cuspiu fogo. Actualmente é o presidente executivo do Cirque du Soleil, uma das maiores exportações culturais do Canadá. Criado em 1984 por um grupo de artistas de rua (...), o Cirque du Soleil atingiu um nível de receitas que demorou mais de um século a ser alcançado pelo campeão mundial da indústria circense, o Ringling Bros. and Barnum & Bailey", dizem os autores.
O Cirque du Soleil não concorreu com o Ringling Bros. and Barnum & Bailey. "Em vez disso, criou um novo espaço de mercado não disputado que tornou a concorrência irrelevante" e atraiu um grupo completamente novo de visitantes: "adultos e clientes corporativos preparados para pagar um preço muito acima do praticado nos circos tradicionais, a troco de uma experiência lúdica sem precedentes".
E alcançou sucesso porque os seus responsáveis perceberam que as empresas, para terem um futuro bem sucedido, devem parar de competir umas com as outras. A única forma de bater a concorrência é deixar de tentar bater a concorrência, salientam os autores.
Ao derrubar as barreiras do mercado teatral e circense, o Cirque du Soleil passou a compreender melhor não apenas os clientes do circo mas também aqueles que não eram visita habitual: os adultos que iam ao teatro.
Ao contrário dos espectáculos circenses tradicionais, com uma série de números não interligados, cada criação do Cirque du Soleil obedece a um tema e enredo, assemelhando-se de alguma forma a uma apresentação teatral.
Os espectáculos do Cirque também apresentam danças abstractas e espirituais, uma ideia que provém do teatro e do ballet.
Ao introduzir estes novos elementos, o Cirque du Soleil criou espectáculos mais sofisticados. A companhia fixou os preços dos seus bilhetes tendo como referência estratégica os preços praticados no teatro, aumentando-os fortemente face aos da indústria circense. Assim, estabelece o preço das suas produções com vista a captar os adultos habituados aos preços praticados no teatro.
"Será que o Cirque du Soleil é realmente um circo, depois de ter eliminado, reduzido, incrementado e criado tantas coisas? Ou será um teatro? E se for um teatro, de que género será? Será um espectáculo da Broadway, uma ópera, um ballet? Isso é algo que não está claro. O Cirque du Soleil reconstruiu elementos pertencentes a todas estas alternativas, por isso acaba por ser simultaneamente um pouco de tudo mas também não chega a ser nada disso na íntegra", sublinham Polly LaBarre e William C. Taylor na sua obra.
Agora, a braços com uma dívida que quase chega aos mil milhões de dólares, resta ver se o Cirque sobreviverá à sua prova mais dura.