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Violação da Concorrência - A Lei Comunitária

A legislação europeia que protege a concorrência é aplicada pela Comissão, mas também é aplicada pelas Autoridades Nacionais para a Concorrência e pelos tribunais nacionais.

29 de Setembro de 2005 às 13:42
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Existirá um mecanismo jurídico sistematizado e funcional que acautele o bom funcionamento do grande mercado europeu? Think Big! O enquadramento legislativo de protecção da concorrência pensa «grande». São invariavelmente envolvidas grandes quotas de mercado, grandes empresas, muito dinheiro a ganhar com a prevaricação et pour causegrandes quantias de dinheiro a cobrar sob a forma de sanção económica. Se não fosse assim, este assunto provavelmente não interessaria a ninguém. A análise recente de BEARDSLEY e FARREL (2005, Mckinsey Quarterly n.º2) chama a nossa atenção para os perigos da ‘espectacularidade’ dos valores recentemente atingidos pelas sanções neste domínio. Na opinião dos mesmos, a questão das multas coloca o legislador numa posição extremamente difícil: as regras e os parâmetros de protecção ao consumidor têm que ser eficazes, mas há limites que, se ultrapassados, tornam o jogo de mercado demasiado caro para as empresas. De maneira muito controversa afirmam ainda que sanções excessivamente altas desencorajam o apoio à inovação por parte das empresas e podem levar à estagnação de sectores de empresa, ora consignados à investigação.

Esta suposta relação entre multas e inovação não é imediatamente aparente para a maioria dos economistas. Mais certo é que a ameaça de cobrança de montantes elevados condicione comportamentalmente empresas que estejam a considerar reposicionarem- se no mercado, e que queiram jogar a um nível mais arrojado. Quanto valem os pecados de um Cartel? Acreditámos em tempos que os 90 Milhões de Euros atingidos pela multa dirigida em 1998 à Volkswagen SG (por não permitir vendas de distribuidores italianos a clientes alemães ou austríacos) representariam um recorde. Corria o ano de 2001 quando deram que falar os 20 milhões de Euros cobrados à Michelin por agressividade excessiva nas cláusulas impostas aos revendedores de pneus. A sanção era forte mas não era cáustica e muitos pensaram que as sanções iriam convergir em baixa para valores mais aceitáveis do que aqueles atingidos no caso Volkswagen.

Contrariando todas as previsões, nesse mesmo ano quebraram-se todos os tabus que refreavam a Comissão Europeia e os juízes do Tribunal de Justiça ao calcular sanções económicas: a Comissão Europeia multou oito empresas (entre as quais a Hoffman-La Roche) em mais de 800 milhões de Euros. Tinha sido provado que as vitaminas que regularmente consumimos nos cereais, nas bolachas e nas bebidas, que são adicionadas à comida para animais e utilizadas na elaboração de produtos farmacêuticos e cosmética, custaram demasiado ao consumidor durante 10 anos em virtude de um cartel bem organizado que mantinha os preços ficticiamente altos. Este caso das vitaminas quase faz parecer insignificante quer a soma de 168 milhões de Euros aplicada coercivamente à Nintendoe a sete distribuidores oficiais quando se descobriu que as video-consolas eram (organizadamente) até 65% mais baratas no Reino Unido do que na Alemanha ou na Holanda, quer o celebérrimo montante de 497 milhões de Euros aplicado à Microsoft em 2004 por impor vendas ligadas. Europeu ou Nacional, qual é qual? Por vezes esquecemo-nos de que montantes astronómicos de dinheiro são conceitos em certa medida abstractos para o público europeu. Quantias como aquelas que referimos rompem tabus e tectos conhecidos pelo ordenamento interno dos Estados- Membros: as somas envolvidas são demasiado elevadas para serem compreendidas e assimiláveis até pelas grandes empresas dos vários países da União.

A quantificação dos montantes a cobrar nestes casos é calculado com base numa regra supranacional (europeia) que se aplica a todos os Estados membros. A sanção pode atingir até 10% do volume de vendas da empresa (turnover)atingido durante o ano anterior àquele em que a infracção foi cometida. Para as autoridades comunitárias, é indiscutível e nem sequer é problemático que se trata de uma sanção económica cuja razão de ser está ancorada à protecção do mercado em que a empresa prevaricadora está inserida. Já para as autoridades nacionais a incumbência de proteger o mercado é mais difícil. A legislação europeia que protege a concorrência é aplicada pela Comissão, mas também é aplicada pelas Autoridades Nacionais para a Concorrência e pelos tribunais nacionais. A nível interno esta tarefa implica um esforço notável: agências reguladoras e tribunais de cada país da União têm de ser capazes de pensar ‘europeu’ também.

Dá-se a circunstância de que nem todos os Estados membros sentem, por razões culturais e com esta intensidade, o conceito da protecção do mercado a qualquer custo. Como consequência do enquadramento que descrevemos existe por vezes muita impulsividade na qualificação de uma situação concreta em termos da sua relevância nacional ou europeia. O conjunto de casos que elencámos, devido à notoriedade das empresas envolvidas, é conhecido do grande público. Estes episódios (de aplicação de sanções) regeram-se segundo procedimentos bastante claros e dentro de âmbitos onde a visibilidade das empresas é incontornável. Em mais do que uma situação as próprias empresas até notificaram a Comissão Europeia das próprias intenções. Existem no entanto situações menos evidentes ligadas a operações mais pequenas e com dimensões mais singelas, onde aumenta exponencialmente o grau de dificuldade da análise da própria relevância.

Há pouco tempo debrucei-me sobre um episódio ocorrido em meados dos anos 90, que alguém aventou tratar-se de uma Ajuda dissimulada de Portugal a uma empresa nacional, com relevância europeia. Os casos típicos das Ajudas de Estado tratam geralmente de transferências financeiras do Estado para empresas nacionais públicas ou privadas. Existe, no entanto, um âmbito menos discutido que diz respeito às actuações do Estado, que protegem empresas ou sectores determinados, nomeadamente por via legislativa, «sem que tal protecção inculque para as finanças públicas, directa ou indirectamente, qualquer prejuízo»

1 É tal o grau de opacidade vivido durante este tipo de operações que, nestas situações, mais do que nas outras mencionadas, é vital que funcione o mecanismo institucional de esclarecimento de dúvidas do juiz nacional confrontado com uma queixa contra o respectivo Estado por violação dos artigos 87º- 89º do TCE, ou de qualquer outra disposição do direito comunitário: o artigo 234.ºTCE. Baptizado com o nome de Reenvio Prejudicial, o artigo 234. º do TCE dispõe que sempre que uma questão sobre a interpretação ou alcance do direito comunitário seja suscitada perante o juiz nacional, esse pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal de Justiça (TJ) que sobre ela se pronuncie. O Reenvio Prejudicial é o derradeiro recurso do interprete. Pressupõe que o Tribunal de Justiça esteja permanentemente disponível para nos ouvir e para nos esclarecer as entrelinhas do grande acervo jurídico que é o direito europeu. Em 1995, um juiz português dirigiu uma questão ao TJ perguntando se seria qualificável como «Ajuda de Estado» a circunstância do Estado português em 1995 via Decreto-Lei (de 1958) emprestar a máquina pública de cobrança de dívidas tributárias a umbanco privado comercial com a finalidade de este último executar mais agilmente eventuais demandáveis nos tribunais»

2. Embora muitos académicos pensassem que o TJ iria rejeitar liminarmente o caso por falta de dimensão europeia, o TJ respondeu que não se iria ocupar dessa questão porque as informações sobre o enquadramento legislativo e factual fornecidas pelo juiz nacional nessa ocasião eram insuficientes. O juiz português não se conformou e em 1997 (ainda corria o processo em Portugal) volta a suspender o processo português e repete a pergunta feita em 1995 ao TJ. O TJ voltou a responder que não responderia ao tenaz magistrado português pelas mesmas razões que aduzira na decisão de 1995 acrescentando que teria que conhecer as incumbências e a missão do Banco X além de conhecer empormenor o modo através do qual o Banco X tinha sido constituído.

3 A sentença portuguesa, que também é bastante opaca, protegeu os clientes do Banco ao afirmar que «não existia fundamento legal que justifique a atribuição à sociedade exequente (Banco) do privilégio de ver as suas dívidas cobradas de acordo com o ritual processual estabelecido no Código de Processo Tributário (sistema público) para as execuções.» 4 É dificil explicar o que se passou verdadeiramente. O «fundamento legal» pode ter faltado por vicissitudes próprias do direito português (por exemplo o Decreto-Lei de 1958 já não estava em vigor), ou o «fundamento legal» (que era aparentemente o Decreto-Lei de 1958) poderá ter sido desaplicado, pelo juiz nacional, no caso concreto, por incompatibilidade com ao artigos 87º a 89º do TCE. O juiz nacional foi extremamente contido nas explicações que deu sobre a própria decisão, foi tão contido que ainda hoje tenho dificuldade em compreendê-la. Por sua vez a resposta do Tribunal de Justiça traduz claramente uma das fragilidades do sistema europeu: nem sempre as instâncias supranacionais ajudam suficientemente as autoridades nacionais Seria excelente poder afirmar (com um mínimo de honestidade) que o mecanismo de protecção do mercado europeu é cabal. O mecanismo jurídico sistematizado e existente parece-me funcional para os casos em que os pressupostos são facilmente enquadráveis nas disposições legais. Já em relação a situações que se posicionam no fio da navalha, é necessária uma muito maior ententeinstitucional. Saber descrever regras é mais fácil do que vivêlas de forma adequada.

1. Martins 2001, Auxílios de Estado, Principia, pag.202

2. Par 3 do Acórdão do TJ C-326-95.

3. Acórdão do TJ C-66/97

4. Caso 152/A/94 Trib. Cível da Comarca de Lisboa

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