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O direito de defesa da concorrência

A opção no espaço comunitário e nacional, hoje indiscutível, por um sistema de economia de mercado como modelo de organização económica, embora limitado em alguns aspectos por razões de interesse público e social, pressupõe a existência de liberdade de co

23 de Junho de 2005 às 11:45
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1. A opção no espaço comunitário e nacional, hoje indiscutível, por um sistema de economia de mercado como modelo de organização económica, embora limitado em alguns aspectos por razões de interesse público e social, pressupõe a existência de liberdade de concorrência. Num sistema de mercado, a orientação fundamental da actividade económica assenta nas escolhas dos vários agentes económicos baseadas numa relação de concorrência entre si. A eficiência económica depende assim da existência de um mercado que funcione de forma eficiente, equilibrada e livre.

A preservação da liberdade de concorrência, assegurando um funcionamento eficiente do mercado e uma concorrência equilibrada entre agentes económicos, é o escopo de um corpo de normas jurídicas unificado sob a designação de direito de defesa ou tutela da concorrência. No âmbito do direito interno português, o regime jurídico da concorrência está estabelecido na Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, aprovada na sequência da reestruturação operada no sector com a criação da Autoridade da Concorrência pelo Decreto-Lei n.º 10/2003, de 18 de Janeiro. Quanto ao ordenamento jurídico comunitário, as normas fundamentais nesta matéria encontram-se nos artigos 81.º a 89.º do Tratado da União Europeia. Estas regras são ainda complementadas por um conjunto relevante de legislação avulsa, em que se destaca o Regulamento (CE) n.º 139/2004 do Conselho, de 20 de Janeiro de 2004, relativo ao controlo das concentrações de empresas, e por uma riquíssima experiência administrativa e jurisprudencial de aplicação destas regras. Para um completo conhecimento e compreensão do direito da concorrência, não é possível ignorar a jurisprudência dos tribunais comunitários e o conjunto das decisões que a Comissão Europeia tem vindo a tomar ao longo dos anos. Acresce que as normas e a prática comunitárias são a matriz do direito português da concorrência.
           
Tradicionalmente, os europeus têm entendido a concorrência como um, entre vários, instrumentos para alcançar o desenvolvimento e progresso económicos e o bem-estar económico-social dos seus povos. A concorrência não é um fim em si mesma, que se deverá obter ou preservar a qualquer custo, mas um meio para alcançar um fim superior que é o desenvolvimento económico. Assim, quando os fins o justifiquem, um comportamento anticoncorrencial poderá ser autorizado, restringindo-se a concorrência, em benefício do progresso económico. É o que sucede com a admissibilidade de derrogações para as empresas que prestem serviços de interesse económico geral ou com a consagração da cláusula geral de balanço económico, prevista no art. 5.º da Lei n.º 18/2003.

2. Perante um ordenamento jurídico económico que consagra um sistema de economia de mercado e, simultaneamente, defende como princípio fundamental a coexistência dos sectores público, privado e cooperativo e social, de propriedade dos meios de produção, o direito da concorrência não pode deixar de se aplicar a todas as actividades económicas e a todos os agentes, independentemente da sua natureza. Mesmo reconhecendo a possibilidade de se estabelecerem regimes de excepção, como é o caso das empresas públicas incumbidas da gestão de serviços de interesse económico geral ou que apoiem a gestão do património do Estado, todas as entidades, sejam públicas ou privadas, têm de respeitar as regras de tutela da concorrência. Tal princípio está expressamente consignado no art. 1.º, n.º 1, da Lei n.º 18/2003 e, a título de exemplo, no art. 8.º do regime jurídico do Sector Empresarial do Estado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de Dezembro.
 
3. O direito de defesa da concorrência não se confunde com o regime da concorrência desleal. A proibição da concorrência desleal protege os agentes económicos contra comportamentos dos seus concorrentes contrários às normas e usos honestos de qualquer ramo de actividade económica, ou seja, que desrespeitem as regras de lealdade e honestidade da concorrência. Tradicionalmente associada à propriedade industrial, ainda hoje a respectiva definição consta do Código da Propriedade Industrial – art. 317.º, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 36/2003, de 5 de Março. Procura garantir-se uma situação de lealdade na relação directa e individualizada que se estabelece entre os vários sujeitos económicos. O direito de defesa da concorrência procura proteger as estruturas do mercado enquanto espaço livre de actuação dos vários agentes económicos. Defende-se a concorrência numa perspectiva global, protegendo-se o próprio mercado e não os agentes económicos individualmente considerados.

Por outro lado, o direito de defesa da concorrência também não se confunde com as normas que proíbem as práticas individuais restritivas da concorrência. A proibição destas práticas está hoje autonomizada e consta do Decreto-Lei n.º 370/93, de 29 de Outubro (alterado pelos Decretos-Lei n.º 140/98, de 16 de Maio, e n.º 10/2003, de 18 de Janeiro). Como refere o preâmbulo do referido diploma, tais práticas «constituem comportamentos menos transparentes embora sem efeitos graves a nível de concorrência». Mais uma vez, está em causa a actuação individual de agentes económicos, menos transparente e ilícita, mas que não põe em causa o normal e regular funcionamento do mercado em termos globais. Entre essas práticas encontram-se a «aplicação de preços ou de condições de venda discriminatórios», a «venda com prejuízo», a «recusa de venda de bens ou de prestação de serviços» e as «práticas negociais abusivas». A título de exemplo, o art. 4.º proíbe a recusa de venda de bens ou de prestação de serviços ainda que daí não resulte prejuízo para o regular abastecimento do mercado.

Os comportamentos descritos no parágrafo anterior podem, no entanto, quando afectem a concorrência no mercado, constituir práticas restritivas da concorrência, proibidas em sede de direito de defesa da concorrência. O âmbito de aplicação de um (práticas individuais) ou outro (tutela da concorrência) conjunto de normas depende assim da amplitude dos efeitos de tais comportamentos.

4. Fazendo um enquadramento geral, os principais institutos do direito português de defesa da concorrência são a proibição das coligações de empresas, a proibição do abuso de posição dominante, a proibição do abuso de dependência económica, o controlo das concentrações de empresas e o regime dos auxílios de Estado.

4. 1. A proibição das coligações de empresas constituiu o núcleo original do direito da concorrência. Estas coligações podem assumir vários modelos, tipificando a lei os acordos entre empresas, as decisões de associações de empresas e as práticas concertadas. As coligações são consideradas ilícitas, qualquer que seja a forma que revistam, quando tenham por objecto ou como efeito impedir, falsear ou restringir de forma sensível a concorrência num determinado mercado. Exemplos de práticas anticoncorrenciais são, entre outras, a fixação artificial de preços, a repartição de mercados ou a criação de barreiras artificias no acesso aos mercados. Enquadra-se no âmbito da proibição das coligações proibidas, a discussão a que se tem assistido recentemente em Portugal acerca do livre funcionamento do mercado dos combustíveis, apontando-se para a eventual existência de cartelização na fixação dos respectivos preços.

4. 2. As empresas que detenham uma posição dominante num determinado mercado não a poderão utilizar para impedir, falsear ou restringir a concorrência. Caso o façam, essa utilização é considerada abusiva, sendo consequentemente sancionada. Com este instituto, não se pretende atacar de per si a existência de uma posição dominante mas unicamente a utilização abusiva que dela faça o seu titular. Entende-se que uma empresa tem posição dominante quando não sofre concorrência significativa ou assume preponderância relativamente aos seus concorrentes. A lei actual abandonou as presunções de posição dominante baseadas nas quotas de mercado que existiam na lei anterior. À luz desta lei, presumia-se que uma empresa tinha posição dominante quando era titular de uma quota de mercado igual ou superior a 30%. Actualmente, a lei não estabelece qualquer critério quantitativo para definir posição dominante. Exemplo paradigmático de abuso de posição dominante foi o comportamento adoptado pela Microsoft e que foi alvo de intervenção por parte das autoridades norte-americanas de defesa da concorrência.
 
4. 3. Quando afecte o funcionamento do mercado ou a estrutura da concorrência, é sancionada a utilização abusiva, por parte da entidade dominante, de uma relação de dependência económica existente entre dois sujeitos económicos. Existe dependência económica quando uma empresa não disponha, relativamente a outra empresa sua fornecedora ou cliente, de alternativa equivalente. Entende-se que não há alternativa equivalente quando o fornecimento do bem em causa é assegurado por um número restrito de empresas e a empresa dependente não pode obter condições comerciais idênticas por parte de outros parceiros comerciais em tempo razoável. À semelhança do que sucede com os outros institutos, a exploração de uma relação de dependência económica só é relevante em sede de direito de defesa da concorrência quando tenha impacto sobre o regular funcionamento do mercado.

 4. 4. Um dos riscos mais fortes para o regular funcionamento dos mercados resulta do fenómeno da concentração de empresas. A concentração dos sujeitos económicos permite a formação de posições dominantes potencial e tendencialmente geradoras de comportamentos anticoncorrencias. Por forma a controlar e, em último caso, evitar a formação destas posições de domínio, as concentrações relevantes de empresas estão sujeitas a notificação prévia às autoridades competentes e só poderão concretizar-se em face de uma decisão de não oposição por parte das mesmas autoridades. Ao contrário do que sucede com a figura do abuso de posição dominante, ataca-se directamente uma posição dominante, evitando a sua formação, independentemente da adopção em concreto de comportamentos anticoncorrenciais. Cai no âmbito deste instituto a investigação actualmente em curso, por parte da Autoridade da Concorrência, à proposta de aquisição do Grupo Lusomundo Serviços por parte da Controlinveste.
 

São consideradas operações de concentração as operações de fusão de empresas anteriormente independentes entre si e as operações de aquisição do controlo de empresas. No âmbito da aquisição de controlo, inclui-se, entre outras situações, a criação ou aquisição de uma empresa comum e a aquisição de direitos sobre a parte ou totalidade dos activos de uma empresa. A legislação interna considera relevantes, e portanto sujeitas a notificação prévia, as operações de concentração que em consequência da sua realização criem ou reforcem uma quota de mercado superior a 30% ou em que o conjunto das empresas envolvidas tenha um volume de negócios anual em Portugal superior a 150 milhões de euros, desde que, pelo menos, duas destas empresas tenham um volume individual de negócios superior a 2 milhões de euros.
 
As operações de concentração deverão ser apreciadas pela autoridade competente (Autoridade da Concorrência) «com o objectivo de determinar os seus efeitos sobre a estrutura da concorrência, tendo em conta a necessidade de preservar e desenvolver, no interesse dos consumidores intermédios e finais, uma concorrência efectiva no mercado nacional» – art. 12.º, n.º1, da Lei n.º 18/2003. Uma operação de concentração deve ser proibida quando crie ou reforce uma posição dominante da qual possam resultar entraves significativos para a concorrência efectiva no mercado. Nalguns casos, a decisão de autorização da operação de concentração pode ser subordinada, por parte da autoridade competente, ao cumprimento de determinadas condições e/ou ainda ser sujeita a certas restrições.
 
4. 5. Por último, aparece-nos o instituto dos auxílios de Estado, o qual assume particular relevância num ambiente económico de grande interdependência entre as empresas e as entidades públicas, como é o caso português. Só são permitidos os auxílios concedidos pelo Estado ou outras entidades públicas a empresas quando estes não afectem ou restrinjam de forma significativa a concorrência no mercado. Portugal apresenta já um histórico de relevo quanto à aplicação de tais regras, sobretudo por parte das autoridades comunitárias – como sejam a análise e decisão dos casos EPAC, Autoeuropa, TAP ou RTP/SIC/TVI.

A função accionista de entidades públicas, ou seja, a participação de entidades públicas no capital de empresas tem também sido considerada no âmbito da figura dos auxílios públicos. Assim, do ponto de vista da defesa da concorrência, uma entidade pública só pode participar no capital de uma empresa se e na medida em que actuar como um accionista privado (perante circunstâncias idênticas). Por outro lado, à luz deste instituto, assumem particular importância os fluxos financeiros existentes entre as entidades públicas e as empresas, na medida em que não se encontram abrangidas pela proibição os montantes pagos a título de indemnizações compensatórias. Para este efeito, é fundamental o regime estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 148/2003, de 11 de Junho, relativo à transparência das relações financeiras entre as entidades públicas e certas empresas.

5. Finalmente, ainda que formalmente separado do direito da concorrência, mas essencial quanto à transparência de funcionamento dos mercados e das relações entre as entidades públicas e as empresas, são fundamentais as normas relativas aos mercados públicos, ou seja, à aquisição de bens ou serviços por parte das entidades públicas. Recorde-se a este propósito a polémica recente gerada pelas declarações do anterior Bastonário da Ordem dos Advogados acerca da contratação de serviços jurídicos por parte de entidades públicas.

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