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A "fuga do inferno" do Daesh contada na primeira pessoa
Embriagada pela propaganda do auto-proclamado Estado islâmico, aos 33 anos foi para a Síria levando consigo o filho de quatro. Conseguiu escapar ao fim de dois meses. Agora conta tudo na primeira pessoa, com um nome que não é o dela. O medo ainda sobrevive.
"Mergulhada na noite do Daesh - confissão de uma arrependida" é o título (tradução livre) do livro que acaba de ser publicado por Sophie Kasiki, nome fictício que esta mãe francesa, agora com 34 anos, usa por medo de represálias depois de se ter tornado numa das raras mulheres ocidentais que foram para Raqqa, a capital do auto-proclamado Estado islâmico, e que conseguiram voltar para contar o que viveram. "Uma viagem ao inferno", resume.
Nascida na República do Congo, Sophie tinha nove anos quando foi enviada pela família para viver com a irmã mais velha, perto de Paris, após a morte da sua mãe. O desaparecimento prematuro do seu "anjo da guarda" abriu-lhe um "buraco no coração" que mesmo um casamento feliz e a maternidade não conseguiram fechar, conta. Foi enquanto trabalhava como assistente social para ajudar famílias de imigrantes, principalmente nos subúrbios da capital francesa, que, sem falar à família nem ao marido, decidiu converter-se ao islamismo, acreditando que essa nova fé preencheria o vazio que sentia na sua vida. Foi nesse processo que se cruzou com três homens muçulmanos, dez anos mais jovens, a quem chama "les petits" (os mais pequenos) e que passa a tratar como se fossem os seus irmãos mais jovens.
Em 20 de Fevereiro de 2015, Kasiki disse ao marido que ia trabalhar num orfanato em Istambul por algumas semanas e que levaria o filho de ambos. Em vez disso, tomou a rota "jihadi" e entrou na Síria. Instalada em Raqqa, a realidade da vida diária rapidamente se revelou muito diferente do "paraíso" descrito pelos três amigos. Não podia sair sozinha, quando o fizesse tinha de ir coberta da cabeça aos pés e teve de entregar o seu passaporte. Começou por trabalhar na maternidade da cidade, tendo ficado chocada com as condições precárias, mas sobretudo com a indiferença perante o sofrimento dos pacientes, e com a hierarquia na cidade, liderada por "combatentes estrangeiros arrogantes". O apartamento onde a instalaram tinha sido apressadamente abandonado por seus proprietários sírios e os canários engaiolados que aí permaneceram serviram como uma metáfora cada vez mais potente - para ela e para o seu filho.
Conta Sophie que levou dez dias para acordar do que descreve como "torpor paralisante" e para perceber o seu erro terrível. Os "monstros" queriam agora levar o seu filho para ser educado na mesquita. "Eu pedi para voltar para casa. Todos os dias, dizia que sentia falta da minha família e que o meu filho precisava de ver o pai. Primeiro, vieram com desculpas; de seguida, vieram as ameaças. Disseram que eu era uma mulher sozinha com uma criança e eu não poderia ir a qualquer lugar, que se eu tentasse fugir seria apedrejada ou morta".
Conseguiu escapar devido a uma sequência de felizes coincidências e de uma cadeia de solidariedade que começou com uma mãe síria, que arriscou as vidas dos seus ao abrigá-los, e que envolveu ainda um combatente da oposição síria, mobilizado pelo marido de Sophie através de contactos feitos a partir de França. Dois meses depois, saíram da Síria. Na noite de 24 de Abril de 2015, Kasiki e o filho, escondido sob a sua burka, atravessavam de moto a fronteira para a Turquia.
À chegada a Paris, foi interrogada por agentes dos serviços secretos e ficou detida durante dois meses. Hoje, ela e o marido tentam a reconciliação, mas Sophie ainda enfrenta a possibilidade de ser acusada do rapto do filho de ambos. "Agora tenho de impedir que outras pessoas sejam atraídas para este horror. O que posso dizer? Não vá."