Notícia
2016: A pós-verdade contrariou o fim da história
O Brexit e a vitória de Trump sacudiram o mundo e abanaram a base que suporta uma ordem internacional em fase de desconstrução. Foram o triunfo da era da "pós-verdade" e a entrada em terreno desconhecido.
Os dias 23 de Junho e 8 de Novembro de 2016 terão sido os mais impactantes para a ordem internacional desde que, na noite de 9 de Novembro de 1989, o Muro de Berlim começou a ser derrubado. Primeiro foi a vitória do Brexit no referendo britânico sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia (UE), depois veio a eleição de Donald Trump como Presidente dos Estados Unidos.
Se não é novidade que o fim da história foi um óbito declarado antes do tempo, também agora não será extemporâneo antecipar que o mundo que conhecemos até 2016 não mais será o mesmo.
Depois de em 2015 a UE ter evitado, a custo, o pesadelo da saída da Grécia da Zona Euro (Grexit), a Europa acordou no dia 24 de Junho para uma realidade parecida: pela primeira vez o projecto europeu perderá um Estado-membro, por sinal um dos mais relevantes política, económica e militarmente. Menos de meio ano volvido, foi a vez de todo o mundo despertar para algo que poucos acreditavam ser possível, com Trump a chegar à liderança da "nação indispensável".
Apesar da surpresa que assaltou até os mais avisados, estes resultados eleitorais "não eram totalmente improváveis", nota Paulo Sande. O professor no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica lembra que "nas sondagens nunca houve uma diferença decisiva", para concluir que foram surpresas na medida em que "não pensámos que pudessem mesmo acontecer".
Mas aconteceram. Tendo na base causas comuns. Ambos foram potenciados pelo voto dos que encaram a globalização mais como um problema do que como uma oportunidade. Tanto a campanha dos "leavers" como a de Trump promoveram discursos proteccionistas que ecoaram junto dos "esquecidos" da mundialização. Aqueles que viram as condições de vida piorar nos últimos anos e que acreditam que as mudanças económicas e sociais produzidas lhes foram prejudiciais.
Em ambos os casos predominaram discursos populistas, com campanhas assentes em predicados anti-imigração, antiglobalização e anti-establishment. O cansaço dos eleitores face aos sistemas partidários e aos políticos foi terreno fértil para o início de uma era a que se convencionou chamar "pós-verdade", onde os factos são menos relevantes para determinar a opinião pública do que os chamados "factos alternativos", caracterizados pelo apelo às crenças de cada um. As múltiplas mentiras e mensagens xenófobas de Trump ou os milhões de libras que estariam a ser canalizados para a UE em detrimento do sistema de saúde britânico são disso perfeito exemplo. E resultaram.
"Tudo isto é a expressão do novo normal, com cada vez mais pessoas descontentes com os políticos e em que nos habituámos a viver com indefinição e incerteza política", resume Paulo Sande.
Incerteza é a única certeza
É ainda prematuro aferir as reais implicações do Brexit e da presidência Trump. Porém, já se fazem sentir algumas consequências, ainda que nem sempre em linha com as previsões mais catastrofistas.
A economia britânica não sucumbiu, embora tenha abrandado ligeiramente. Já a libra, que caiu abruptamente na noite do Brexit, recuperou parcialmente e desde então tem negociando entre 10% e 15% abaixo do dólar e do euro, contribuindo para tornar mais competitivas as exportações britânicas, o que tem impulsionado a bolsa de Londres.
No entanto, a linha dura (inclui a saída do mercado único europeu) seguida pela primeira-ministra britânica provocou divisões no seio da maioria conservadora, levando Theresa May a antecipar as eleições parlamentares para o próximo dia 8 de Junho. Só que o objectivo de reforçar nas urnas o mandato para prosseguir o "hard Brexit" poderá sair furado, já que os "tories" seguem em queda nas sondagens, podendo perder a maioria absoluta alcançada em 2015 por David Cameron. Até lá as negociações estarão em suspenso, sabendo-se de antemão que os dois anos para a conclusão da saída já estão a contar.
Do outro lado do Atlântico, Trump mostra-se incapaz de cumprir muitas das promessas: do muro na fronteira com o México à revogação do Obamacare, passando pela proibição à entrada de cidadãos oriundos de um conjunto de países de maioria muçulmana. "Há uma frente da sociedade civil e também do sistema judicial que tem bloqueado os aspectos mais reaccionários das políticas de Trump", constata Álvaro Vasconcelos, ex-director do Instituto de Estudos e Segurança da UE.
Todavia, a ameaça de desconstrução da ordem internacional vinculada à dita ideologia Trump permanece no horizonte. Desde logo porque o Presidente americano rejeita o papel messiânico dos EUA, que diz ser desfavorável à maior economia mundial. Não espantam, portanto, as reticências em relação aos diversos acordos comerciais do país e à predominância americana no âmbito da NATO.
Mas apesar de tudo, Donald Trump já concretizou alguns dos seus objectivos, o principal em matéria ambiental, revogando medidas tendentes ao cumprimento do Acordo de Paris sobre alterações climáticas e aprovando políticas de fomento da energia fóssil. E também se "assumiu como líder de uma coligação sectária de países sunitas contra o Irão numa coligação anti-iraniana", nota Álvaro Vasconcelos que, lembrando a recente intervenção na Síria, considera Trump "um isolacionista belicista". O que tendo em conta as dificuldades ao nível interno para prosseguir a sua agenda, o leva a temer que Trump "utilize a guerra para superar divisões internas". "No fundo, a ideologia Trump são retrocessos face à mundialização dos valores", conclui Vasconcelos que neste momento admite serem mais as dúvidas do que as certezas.
Entretanto surgiu uma nova liderança na Europa, com a vitória de Emmanuel Macron nas presidenciais francesas. Um evento que os dois analistas consultados pelo Negócios esperam que possa constituir uma "corrente de abertura" capaz de mitigar o risco de desagregação iniciado com o Brexit e reforçado pela vitória de Trump.
Se não é novidade que o fim da história foi um óbito declarado antes do tempo, também agora não será extemporâneo antecipar que o mundo que conhecemos até 2016 não mais será o mesmo.
Apesar da surpresa que assaltou até os mais avisados, estes resultados eleitorais "não eram totalmente improváveis", nota Paulo Sande. O professor no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica lembra que "nas sondagens nunca houve uma diferença decisiva", para concluir que foram surpresas na medida em que "não pensámos que pudessem mesmo acontecer".
Mas aconteceram. Tendo na base causas comuns. Ambos foram potenciados pelo voto dos que encaram a globalização mais como um problema do que como uma oportunidade. Tanto a campanha dos "leavers" como a de Trump promoveram discursos proteccionistas que ecoaram junto dos "esquecidos" da mundialização. Aqueles que viram as condições de vida piorar nos últimos anos e que acreditam que as mudanças económicas e sociais produzidas lhes foram prejudiciais.
Em ambos os casos predominaram discursos populistas, com campanhas assentes em predicados anti-imigração, antiglobalização e anti-establishment. O cansaço dos eleitores face aos sistemas partidários e aos políticos foi terreno fértil para o início de uma era a que se convencionou chamar "pós-verdade", onde os factos são menos relevantes para determinar a opinião pública do que os chamados "factos alternativos", caracterizados pelo apelo às crenças de cada um. As múltiplas mentiras e mensagens xenófobas de Trump ou os milhões de libras que estariam a ser canalizados para a UE em detrimento do sistema de saúde britânico são disso perfeito exemplo. E resultaram.
"Tudo isto é a expressão do novo normal, com cada vez mais pessoas descontentes com os políticos e em que nos habituámos a viver com indefinição e incerteza política", resume Paulo Sande.
Incerteza é a única certeza
É ainda prematuro aferir as reais implicações do Brexit e da presidência Trump. Porém, já se fazem sentir algumas consequências, ainda que nem sempre em linha com as previsões mais catastrofistas.
A economia britânica não sucumbiu, embora tenha abrandado ligeiramente. Já a libra, que caiu abruptamente na noite do Brexit, recuperou parcialmente e desde então tem negociando entre 10% e 15% abaixo do dólar e do euro, contribuindo para tornar mais competitivas as exportações britânicas, o que tem impulsionado a bolsa de Londres.
No entanto, a linha dura (inclui a saída do mercado único europeu) seguida pela primeira-ministra britânica provocou divisões no seio da maioria conservadora, levando Theresa May a antecipar as eleições parlamentares para o próximo dia 8 de Junho. Só que o objectivo de reforçar nas urnas o mandato para prosseguir o "hard Brexit" poderá sair furado, já que os "tories" seguem em queda nas sondagens, podendo perder a maioria absoluta alcançada em 2015 por David Cameron. Até lá as negociações estarão em suspenso, sabendo-se de antemão que os dois anos para a conclusão da saída já estão a contar.
Do outro lado do Atlântico, Trump mostra-se incapaz de cumprir muitas das promessas: do muro na fronteira com o México à revogação do Obamacare, passando pela proibição à entrada de cidadãos oriundos de um conjunto de países de maioria muçulmana. "Há uma frente da sociedade civil e também do sistema judicial que tem bloqueado os aspectos mais reaccionários das políticas de Trump", constata Álvaro Vasconcelos, ex-director do Instituto de Estudos e Segurança da UE.
Todavia, a ameaça de desconstrução da ordem internacional vinculada à dita ideologia Trump permanece no horizonte. Desde logo porque o Presidente americano rejeita o papel messiânico dos EUA, que diz ser desfavorável à maior economia mundial. Não espantam, portanto, as reticências em relação aos diversos acordos comerciais do país e à predominância americana no âmbito da NATO.
Mas apesar de tudo, Donald Trump já concretizou alguns dos seus objectivos, o principal em matéria ambiental, revogando medidas tendentes ao cumprimento do Acordo de Paris sobre alterações climáticas e aprovando políticas de fomento da energia fóssil. E também se "assumiu como líder de uma coligação sectária de países sunitas contra o Irão numa coligação anti-iraniana", nota Álvaro Vasconcelos que, lembrando a recente intervenção na Síria, considera Trump "um isolacionista belicista". O que tendo em conta as dificuldades ao nível interno para prosseguir a sua agenda, o leva a temer que Trump "utilize a guerra para superar divisões internas". "No fundo, a ideologia Trump são retrocessos face à mundialização dos valores", conclui Vasconcelos que neste momento admite serem mais as dúvidas do que as certezas.
Entretanto surgiu uma nova liderança na Europa, com a vitória de Emmanuel Macron nas presidenciais francesas. Um evento que os dois analistas consultados pelo Negócios esperam que possa constituir uma "corrente de abertura" capaz de mitigar o risco de desagregação iniciado com o Brexit e reforçado pela vitória de Trump.