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Miguel Reale Júnior: "Há factos e fundamentos para afastar Dilma"

Dilma Rousseff prevaricou à frente da Petrobras e violou depois a lei das finanças públicas e a Constituição com danos enormes para o país. Quem o sustenta é Miguel Reale Júnior, um dos mais respeitados juristas do Brasil, antigo ministro da Justiça e co-autor do mais recente pedido de "impeachment".

03 de Novembro de 2015 às 00:01
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É um dos mais respeitados juristas do Brasil, antigo ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso, que esteve por detrás do processo de "impeachment" que forçou à renúncia de Collor, em 2002.  "Falámos" com Miguel Reale Júnior ao longo da última semana – por email. 


O que o levou a envolver-se neste pedido de destituição da Presidente Dilma?
 Em Maio realizei para os partidos da oposição um estudo sobre afrontas à lei de responsabilidade fiscal que redundou numa representação ao Procurador-geral da República por crimes que estão previstos quer no Código Penal quer na lei de "impeachment". Agora que houve o desejo da oposição de aderir ao pedido de "impeachment" interposto por Hélio Bicudo e Janaína Paschoal, chegou-se à conclusão de que havia a necessidade de acrescer dados que constavam já de estudos por mim realizados, inclusive em relação ao mandato de Dilma de 2015. Neste instante, eu trouxe a minha contribuição.  
 
Quais são em concreto os crimes imputados à Presidente?
Tentando simplificar, há três conjuntos de actos ilegais. Há decretos que foram assinados pela Presidente para destinar a diversos órgãos verbas não autorizadas pela lei orçamental, portanto sem lastro, e decorrentes de movimentos financeiros que passaram por cima do Congresso, em desrespeito ao que dispõe também a Constituição.

A democracia corre risco com a corrupção deslavada, mas não com a limpeza do terreno". "Maldita a Nação em que o voto popular se constitui em cidadela da impunidade.
Miguel Reale Júnior
advogado e ex-ministro da justiça do Brasil 


Há ainda empréstimos contraídos com entidades financeiras do próprio Estado – Banco do Brasil, Caixa Económica Federal, BNDES – para financiar programas do Governo, como o Minha Casa, e até mesmo empresas com juros subsidiados e em quantias volumosas, cerca de 40 mil milhões de reais. Mais uma vez, houve despesas que não foram contabilizadas, transformando-se o que era, de facto, dívida em excedente primário. Com isso, iludiram-se todos os agentes económicos, apresentaram-se as finanças como hígidas quando estavam deficitárias, não tendo sido atempadamente decidida qualquer medida de contenção de gastos ou de redução dos benefícios fiscais, o que levou o Estado a uma situação deficitária, com a decorrente estagnação e inflação que vemos hoje na economia. 


E em relação ao passado de gestora?
Essa é a última categoria de crime: ao não determinar a apuração de ilegalidades na Petrobras, da qual foi presidente do Conselho de Administração durante dez anos, Dilma cometeu também crime de responsabilidade contra a probidade na Administração.  Até agora, e só na Petrobras, os desvios superam seis mil milhões de reais, segundo o balanço da própria estatal. Ora, não saber, a Presidente da República, que vultosas quantias em dinheiro foram desviadas dos cofres públicos do Governo Federal e que parte significativa desses recursos foi directamente para as contas de seu partido é decorrente de sua omissão em cumprir com seus deveres mínimos de gestora e de candidata responsável pela arrecadação e despesa da sua campanha. Perante os factos conhecidos no transcorrer dos últimos anos, a sua omissão é, com toda evidência, dolosa. Dilma prevaricou, de forma clara e objectiva, e temos hoje factos e fundamentos para o afastamento da Presidente.
 
Já deram entrada no Congresso duas dezenas de pedidos de "impeachment" e nada aconteceu. Acredita que agora vai ser diferente?
É difícil saber. Nada é previsível na política brasileira a não ser a falta de previsão. A posição de Eduardo Cunha [presidente do Congresso, suspeito de esconder contas bancárias na Suíça e também de envolvimento no escândalo de corrupção ligado à Petrobras] varia cada dia, conforme a posição de Marte em relação a Vénus.

Os crimes referem-se também ao actual mandato ou apenas ao anterior?
As "pedaladas", ou seja, o Tesouro a viver graças a empréstimos não contabilizados de bancos públicos, ocorreram de 2013 a 2014 e também em 2015. De todos os modos, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e da própria Câmara dos Deputados reconhece que se pode julgar no plano ético-político actos do mandato anterior com base no princípio da moralidade. Esse é um valor essencial à República: um detentor de cargo político (legislativo ou executivo) deve e pode ser processado por faltas ético-políticas praticadas num mandato anterior.
 
Se vier a ser aprovado um "impeachment" com base em irregularidades nas contas da campanha eleitoral de 2014, além de Dilma cairá o vice-presidente, Michel Temer?
O "impeachment" limita-se à Presidente. Se julgado procedente, assume o vice [do PMDB].
 
Dilma e Lula têm publicamente chamado de "golpistas" aos que defendem haver razões para "impeachment". Como encara estas acusações?
Fernando Collor de Mello dizia a mesma coisa. O "impeachment" é um mecanismo previsto na Constituição, em lei própria e deve passar pela Câmara dos Deputados e pelo Senado com maioria  de dois terços. O PT apresentou diversos pedidos de "impeachment" em face de Fernando  Henrique Cardoso. Nelson Jobim [ex-deputado e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal] ao proferir parecer no "impeachment" de Collor dizia: "Maldita a Nação em que o voto popular se constitui em cidadela da impunidade."
 
Lula ameaçou convocar o "Exército de Stédile". É fogo de pólvora seca ou o ex-presidente ainda será capaz de mobilizar a rua para tentar travar acções judiciais contra ele?
Lula deve-se preocupar em justificar as acusações que hoje surgem contra seus familiares e contra si mesmo.

Em Portugal houve clamor, mas a sociedade e as instituições não quebraram com a detenção de um ex-primeiro-ministro. Acha que a sociedade brasileira aguentaria o embate de ver Lula detido?
Não há motivo para se santificar quem disseminou a legitimidade de ser esperto, causando imenso dano à nossa forma de ser macunaímico [Macunaíma é o herói sem carácter criado pelo poeta Mário de Andrade, que simboliza a esperteza no limite da ilicitude].


Como é que a Lava Jato conseguiu chegar tão longe? É reflexo de um avanço na modernização dos meios ao dispor da justiça (incluindo a delação premiada) ou de uma deriva justicialista no país?
O espírito de corpo da Polícia Federal e o preparo do Ministério Público têm sido fundamentais. Além do mais, tivemos um Judiciário que compreendeu se tratar de uma sofisticada organização criminosa que misturava directores de estatais, senadores, deputados, dirigentes partidários visando não apenas seu enriquecimento, mas a perenidade no poder, mantida com fábulas de dinheiro.


A democracia brasileira está em risco?

Não há risco algum.

Porque está tão confiante?
Confio diante das pacíficas manifestações, de ruas com milhões de pessoas sem qualquer violência. Já estamos escaldados com anos de ditadura. A democracia corre risco com a corrupção deslavada, mas não com a limpeza do terreno.
O PT não é mais a estrela ética. Lula empolgou, especialmente intelectuais estrangeiros, por ser um operário no poder. Muitos brasileiros, no entanto, sabiam do jogo sujo que se jogava por detrás. Hoje o Brasil e o resto do mundo percebe que foi na verdade uma busca desonesta de manutenção do poder e a sua popularidade cai a cada dia.
 
Haverá hoje mais argumentos para defender um regime parlamentar, em vez de presidencialista, mesmo sabendo que suspeitas de corrupção são tão ou mais abundantes no Congresso?
Como diz Fernando Henrique Cardoso, não adianta apenas mudar a pessoa. O presidencialismo de coligação ou de cooptação facilita o "toma lá, dá cá". Mas a reforma do sistema eleitoral e do sistema de governo não prospera há muitos anos. Talvez possa ajudar a mudar a mentalidade a adopção de um "programa de compliance", um programa de governança e de conduta ética para os partidos políticos que os force a assumir a responsabilidade de prevenir e descobrir os desvios de seus membros, seja na obtenção do poder como no exercício do poder. Deve-se buscar uma cultura de honestidade na política, que é o que milhões de pessoas nas ruas exigem.

Há quem receie que o avanço nas investigações seja contido pelas instâncias judiciais superiores. Hélio Bicudo, por exemplo, já disse que o Supremo Tribunal Federal (composto por juízes nomeados pelo governo) "faz o que o PT quer". Partilha dessa opinião?
Não acredito em aparelhamento do Judiciário. Veja-se o que sucedeu com o Mensalão e o que ocorre hoje com o Petrolão.  No Mensalão, políticos, ministros e empresários foram condenados. Hoje empresários foram presos e condenados, e muitas prisões foram confirmadas pelos tribunais superiores.

O facto de ministros [juízes do Supremo] terem sido indicados pelos governos do PT não os alinharam em favor da impunidade dos governantes petistas. Não temo conluio do Supremo com a impunidade. Há uma Polícia Federal independente, um Ministério Público independente e forte e um Judiciário responsável. 

Perfil: Sem papas na língua
Lutou contra a ditadura  com a mesma frontalidade com que, aos 71 anos, luta hoje contra a corrupção porque no fim da linha considera estar o mesmo objectivo: a defesa da democracia. Miguel Reale Júnior, advogado e professor titular de Direito Penal na Universidade de São Paulo, é um dos mais respeitados juristas brasileiros, como fora seu pai. Foi assessor da Presidência da Assembleia Nacional Constituinte e presidiu à Comissão encarregada da análise da responsabilidade do Estado face aos mortos e desaparecidos políticos durante o regime militar.

Militante do PSDB, maior partido da oposição, em 2002 assumiu a pasta da Justiça durante o mandato de Fernando Henrique Cardoso. Dez anos antes havia sido um dos principais responsáveis pelo processo de "impeachment" que levou à renúncia do então presidente Fernando Collor de Mello (hoje senador). Miguel Reale Júnior é agora co-autor da mais recente e robusta petição de destituição da Presidente, que assina com Hélio Bicudo, 93 anos, fundador do Partido dos Trabalhadores de Lula e de Dilma.   
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