Seis meses depois de Vladimir Putin ter ordenado a invasão militar da Ucrânia, a economia da Zona Euro está a fraquejar e a encaminhar-se para uma recessão na segunda metade do ano. Em agosto, o PMI compósito dos países da moeda única caiu pelo segundo mês consecutivo, pelos aumentos no custo de vida das famílias e os constrangimentos da oferta, que penalizam a indústria.
Este indicador da S&P Global, que mede a atividade empresarial, é visto como um bom termómetro da atividade económica e, por isso, soaram os alarmes entre os analistas. “A estimativa sinaliza que a recessão começou”, frisa Jack Allen Reynolds, economista sénior da Capital Economics.
Recessão será breve e ligeira?
“É consistente com o início de uma queda do PIB”, acrescenta Jack Allen Reynolds. Os dados “apontam para uma economia em contração durante o terceiro trimestre”, frisa, por sua vez, Andrew Harker, economista da S&P Global, numa declaração. E os indicadores de confiança da Zona Euro – que caíram a pique em julho – e das principais economias europeias (Alemanha, França, Itália), que vão ser atualizados esta semana, devem reforçar a tendência, esperam os analistas.
A pesar nas decisões das empresas e das famílias está o aumento de preços. A inflação já tinha começado a crescer no pós-covid, mas a guerra na Ucrânia fez os preços galoparem nestes últimos seis meses. Em julho, o índice harmonizado de preços no consumidor atingiu 9,8% no conjunto da União Europeia (UE) e 8,9% na Zona Euro – um máximo histórico desde a criação da moeda única. No mês passado, o Banco Central Europeu (BCE) anunciou um aumento de 50 pontos-base nas suas taxas de juro (a primeira subida em 11 anos), procurando travar a inflação, e prometeu voltar a analisar a questão em setembro, consoante o andamento da economia.
Esta poderá ser a recessão mais esperada de sempre. As dúvidas sobre uma contração do PIB nos terceiro e quarto trimestres deste ano são poucas, falta saber a profundidade e duração da mesma. Para os economistas do banco UBS a Zona Euro já entrou na fase descendente e deverá entrar em recessão técnica, com dois trimestres consecutivos de variação negativa do PIB, na segunda metade deste ano. Boas notícias? Será breve e pouco cavada, dizem os autores da nota.
De acordo com as previsões do banco de investimento, os países da moeda única deverão registar uma contração de 0,1% entre julho e setembro e de 0,2% entre outubro e dezembro o que, tecnicamente, é uma recessão. A culpa, dizem, é dos preços dos produtos energéticos.
O pressuposto central é de que os preços do gás natural vão continuar a subir, mas sem necessidade de racionamento. Se tal vier a revelar-se necessário, então “o dano económico será muito pior”, antecipam. O preço dos futuros de eletricidade para a Alemanha e a França a um ano bateram máximos esta quinta-feira, ou seja, os mercados estão a antecipar um período longo de valores altos.
Mas também o Morgan Stanley aponta para o caminho da recessão na Zona Euro, antevendo o início da recessão um pouco mais à frente no ano, no quarto trimestre. Os economistas deste banco de investimento também estão mais pessimistas, esperando que os preços energéticos se mantenham elevados no início de 2023.
Segundo o FMI, um corte total do fornecimento do gás russo à Europa pode fazer com que a economia europeia estagne este ano. Mas as estimativas mais recentes apontam para uma deterioração da economia também em 2023. As quatro maiores economias da Zona Euro – Alemanha, França, Itália e Espanha – têm assistido a consecutivas revisões em baixa das taxas de crescimento.
“No curto prazo esperamos uma recessão na Europa para o inverno de 2022-2023, em resultado de falhas na energia e uma inflação alta e persistente”, aponta a Economist Intelligence Unit (EIU). Mas o inverno do próximo ano também pode ser “desafiante”, uma vez que os economistas da EIU admitem uma inflação elevada e um crescimento reduzido pelo “menos até 2024”.
As novas armas de Moscovo
A invasão da Ucrânia está longe de se confinar à ação militar. A par da ofensiva, tornou-se visível que Moscovo mantém uma grande capacidade de desestabilização política um pouco por todo o mundo, aplicando as táticas da guerra fria, embora com recurso a novas armas, como as redes sociais, e espiões metamorfoseados em oligarcas, dotados de enorme poder financeiro.
A demissão do primeiro-ministro italiano é um exemplo deste tipo de atuação. Mario Draghi foi um dos impulsionadores, na União Europeia, das sanções à Rússia e demitiu-se depois de ter perdido o apoio parlamentar da Liga Norte de Matteo Salvini.
Em julho, o jornal La Stampa revelou a existência de supostos contactos entre um assessor de Salvini e um funcionário da Embaixada russa em Roma, durante os quais foi abordada uma possível saída dos ministros pertencentes ao partido de extrema-direita do Executivo italiano. Salvini desmentiu qualquer envolvimento russo mas é um admirador confesso de Putin e em tempos fez-se fotografar na Praça Vermelha, em Moscovo, envergando uma T-shirt com a efígie do Presidente russo.
A capacidade da Rússia para manipular as opiniões públicas através das redes sociais, que se tornou notória com a eleição de Donald Trump, poderá já ter acontecido em outras ocasiões. Por exemplo, dando apoio aos defensores do “Brexit”, uma forma de enfraquecer a União Europeia, ou contribuindo para a saída de Boris Johnson que as autoridades russas classificaram como “palhaço estúpido” por armar a Ucrânia na guerra contra a Rússia.
O apoio de Moscovo a Marine Le Pen e à extrema-direita francesa é outra evidência que vem de longe e há mesmo quem aposte na Frente Nacional para que esta possa desencadear um “Frexit”, isto é um “Brexit” à francesa. Le Pen ainda não conseguiu este desiderato mas o seu crescimento nas eleições de junho deram mais força às narrativas anti-UE e enfraqueceram o Presidente gaulês, Emmanuel Macron, também ele um forte opositor de Putin.
Alguém acredita que 24 de fevereiro, data escolhida pelo Presidente russo para a invasão da Ucrânia, terá sido um mero acaso? Na realidade, tratou-se de um acaso minuciosamente preparado, levando em consideração a situação de transição que se vivia na Alemanha com a saída de cena da todo-poderosa Angela Merkel e tomada de posse do novo chanceler, Olaf Scholz, a iniciar um processo de afirmação política.
Energia no centro do palco
A perspetiva de um corte total do gás russo na segunda metade do ano está a suscitar preocupações a nível mundial, mas sobretudo na Europa, relativamente à escassez do combustível, mas também quanto a uma subida ainda mais elevada dos preços.
E a maior economia europeia, a Alemanha, está no centro da tempestade, com a crise energética (a somar à crise climática, visível na seca que o país atravessa, com impacto na navegação do Danúbio) e uma quebra no comércio internacional a travar a sua base industrial. O crescimento económico abrandou no segundo trimestre e é provável que fique negativo nos próximos meses (os dados serão atualizados esta semana). “Será necessário um milagre económico para a Alemanha não cair em recessão na segunda metade do ano”, disse Carsten Brzeski, do banco holandês ING, numa nota recente.
Recorde-se que a Rússia forneceu mais de metade do gás natural consumido pela Alemanha em 2020 e um terço de todo o petróleo. Com a guerra, o Kremlin tem reduzido o fornecimento, apontando para problemas técnicos no gasoduto Nord Stream I.
Hoje os preços do gás são estratosféricos e com eles arrastam os da eletricidade por toda a Europa, neste momento a custar nos mercados grossistas largas centenas de euros (quase a chegar aos milhares) em vários países, da Alemanha à França, da Itália ao Reino Unido, .
Portugal é uma das poucas exceções à regra, tal como Espanha. Juntos conseguiram junto de Bruxelas aprovar o mecanismo ibérico, que, durante um ano, lhes garante preços controlados no gás e, por consequências, na eletricidade. Falta ainda saber quem pagará a fatura desta exceção ibérica e o que acontece depois, quando o mecanismo acabar, ao fim de um ano. Isso logo se verá.
No gás, Lisboa e Madrid não dependem da Rússia. Isto porque nunca avançou o eternamente adiado projeto de construção de um gasoduto através dos Pirenéus (aquele mesmo que o chanceler alemão Olav Scholz quer agora que se construa em tempo recorde, apesar da oposição férrea de França).
A chamada “guerra do gás” fez já várias vítimas, com a Rússia a cortar mesmo o fornecimento a 100% a vários países europeus e a reduzir para metade o fluxo de gás natural que chega à Alemanha via gasoduto Nord Stream1. Pior: de 31 de agosto a 2 de setembro, a Rússia vai encerrar o gasoduto para manutenção, fazendo soar todos os alarmes. A Alemanha já avisou: se a Rússia fechar a torneira, o país só tem gás suficiente para três meses. Mesmo com as reservas ideais a 95%, o que ainda não se verifica neste momento.
Para os especialistas, esta é “uma situação inédita na história da energia, no último século, é uma crise estrutural”. Bruxelas já avisou: “O inverno está a chegar”. E mandou todos os países pouparem 15% no consumo de gás (7% na Península Ibérica, mais uma exceção). Onze países da UE dependem em mais de 80% nos seus abastecimentos de gás da Rússia e estão expostos a situações climáticas mais extremas.
Ou seja, o risco de empresas fecharem e famílias passarem frio em países como a Alemanha, Finlândia, Áustria, Holanda, Hungria, Bulgária, países bálticos, Finlândia (dependentes do gás russo vindo por gasoduto) é real. Se o inverno for seco, sem vento, e com temperaturas muito frias, a situação será ainda mais crítica. E Portugal? Apesar de várias vezes especialistas garantirem que por cá não vai faltar gás no próximo inverno, “em termos de preços não vamos mesmo escapar ao tsunami” que está por vir.
O impacto nas empresas nacionais
Os setores de consumo intensivo de energia foram atingidos pela escalada dos preços do gás e da eletricidade, que nalguns casos subiram dez vezes. Associações setoriais estão apreensivas, avisam que há empresas que podem fechar e pedem mais apoios.
METALURGIA ESTÁ A PAGAR OITO VEZES MAIS DE GÁS
As empresas metalúrgicas estão hoje a pagar oito vezes mais de gás do que pagavam. "As que aderiram às compras de grupo promovidas pela AIMMAP pagavam 20 euros o MW/hora e agora estão a pagar 160", afirma Rafael Campos Pereira, vice-presidente executivo da associação, frisando que até maio as empresas ainda beneficiaram da iniciativa, mas "com estes aumentos brutais antevemos que no último trimestre tenham muitas dificuldades". Até agora "conseguiram acomodar o aumento dos custos com matérias-primas, energia e salários nos preços de venda", que subiram 20% a 30%, adianta, acrescentando que no mercado doméstico já se sente alguma retração. "Estamos inquietos com o que pode vir a acontecer", diz.
FECHO IMINENTE DE 50 EMPRESAS DE CERÂMICA
O problema da vertiginosa subida do preço do gás natural coloca o setor cerâmico nacional à beira do colapso. "O aumento do preço foi de entre cinco e 10 vezes. Um caso concreto: nos últimos seis meses, uma empresa que tinha uma fatura mensal de 500 mil euros passou para 2,5 milhões de euros", sinalizou o presidente da associação do setor (Apicer). E deixou o alerta: "Há situações muito difíceis. Em setembro, algumas podem fechar em definitivo. Estimamos que possam vir a parar umas 50 por razões ligadas ao aumento do preço do gás natural." Em vez do "insuficiente" apoio estatal de 400 mil euros, José Luís Sequeira defende a atribuição de um subsídio que cubra 75% do aumento do preço.
INDÚSTRIA DE COMPONENTES AUTO VAI "FALAR COM O MINISTRO"
Com custos de energia que nalguns casos triplicaram, a indústria dos componentes para a indústria automóvel foi obrigada a "diminuir significativamente a margem", lamenta o presidente da associação do setor, a AFIA. José Couto explica que os clientes "não aceitam reduções de preços", o que obrigou os fornecedores a absorverem os custos acrescidos. "Esse foi o maior impacto", afirma, acrescentando que as perspetivas não são otimistas: a seca agrava a produção energética, e por isso está "muito preocupado com o próximo ano". O setor usa sobretudo eletricidade, e o apoio estatal é para as indústrias dependentes do gás, algo que José Couto defende que tem de ser alterado: "Teremos de olhar para os custos da eletricidade", alerta.
SUBIDA VERTIGINOSA DO JETFUEL AMEAÇA RETOMA DA AVIAÇÃO
A aviação foi um dos setores que mais sofreram com aumentos vertiginosos no preço dos combustíveis. Para travar a forte subida desta despesa, as transportadoras aumentaram os preços das tarifas. Além disso, a aviação também sofreu restrições no tráfego aéreo. Com o encerramento do espaço aéreo ucraniano parou o tráfego de 3,3% do total de passageiros europeus e de 0,8% do tráfego mundial. A Rússia fechou o espaço aéreo a 40 países que também baniram as companhias russas. O país representa 5,2% do total do tráfego mundial, sendo utilizado por 24,2 milhões de passageiros. Sendo este um dos principais acessos à Ásia, as transportadoras foram forçadas a seguir novas rotas aumentando, entre uma e cinco horas, o tempo de voo entre a Europa e a Ásia.
COMBUSTÍVEIS IMPACTAM NA LOGÍSTICA DAS PAPELEIRAS
Para além da energia elétrica, o setor da pasta e do papel sente o impacto que o aumento do preço dos combustíveis tem tido "em todas as operações logísticas, quer a montante das indústrias (com impactos nos custos da madeira) quer a jusante (com impactos no escoamento dos produtos, nomeadamente para exportação)", diz Francisco Gomes da Silva. De acordo com o diretor-geral da Celpa, as empresas têm procurado incorporar os acréscimos de custos através de ganhos de eficiência, mas também já subiram os preços de venda, ainda que Gomes da Silva faça notar que parte dos aumentos se deve à recuperação da procura, na sequência do fecho de unidades industriais, o que a guerra na Europa ainda veio acentuar.
AGRICULTURA E RETALHO TAMBÉM SOFREM
Para os agricultores, 2022 tem sido um ano “terrível”, diz Pedro Santos da CNA. A confederação lembra que, desde janeiro, grande parte do país está em seca, pelo que a conjugação de fatores – a guerra, o clima e os incêndios – tem contribuído para meses ”muito complicados”, com produtores a passar dificuldades. O aumento do custo da energia e combustíveis afeta diretamente várias fases da produção, mas também os custos mais elevados nas rações e fertilizantes (que em casos “triplicaram”) contribuíram para uma crise onde as perspetivas futuras são, também “preocupantes”. Um balanço semelhante é feito por Luís Mira, da Confederação dos Agricultores de Portugal. Do lado do retalho, a APED aponta o aumento dos custos da energia, que teve consequências. Em relação aos produtos, depois da pressão e de alguma escassez na área dos cereais, o ajustamento foi-se fazendo e a oferta e os preços “tendem a estabilizar”.
Capital sai da Rússia e procura novas paragens
O conflito gerou uma vaga de sanções económicas e financeiras pela União Europeia (UE) e pelos Estados Unidos com o propósito de isolar o regime de Vladimir Putin e os oligarcas que o circundam. Mas para onde foi este dinheiro? Ninguém sabe ao certo, mas uma das hipóteses mais fortes é uma cidade a que os russos chamam “Dubaisk”.
A primeira pista vem do mercado imobiliário, que assistiu a “uma rápida recuperação” no Dubai, adianta Mubashira Khwaja, diretor de investimento da abrdn. Nick Robinson, da mesma firma de investimento londrina, completa que a Rússia era um mercado em que os investidores estavam muito expostos às “commodities” e é por isso natural que regiões como o “Médio Oriente ou a América Latina” sejam alternativas naturais quando a Rússia deixa de estar entre as opções.
Dados da Dealogic consultados pelo Negócios reforçam esta perspetiva. Enquanto nos mercados acionistas mundiais tanto o volume como o valor das transações realizadas diminuíram desde antes da guerra, noutras regiões do globo – como, por exemplo, o Médio Oriente – as transações em bolsa aumentaram desde o início da guerra na Ucrânia. A tendência contrária ao resto do mundo indica que esta pode ser uma zona de escolha para os capitais que deixaram de ser negociados em terreno de Putin.
De forma ainda mais localizada, o mercado financeiro do Dubai (DFM) registou uma subida de 75% no valor negociado em bolsa e os investidores estrangeiros contabilizaram quase metade das transações realizadas.
O movimento não é exclusivo do mercado de capitais. Num artigo publicado em junho, o The New York Times analisava cerca de dois mil voos de oligarcas russos, nos meses a seguir ao início da guerra, e concluiu que se estavam a deslocar para a Ásia central e Médio Oriente, em particular o Dubai.
Mais uma vez, houve um destino de preferência, que com um sotaque ligeiramente arranhado soa qualquer coisa como “Dubaisk”. Até o russo Roman Abramovich, agora nacionalizado português, estacionou o seu iate no país. E não são os únicos: até mesmo empresas russas estão a procurar estas geografias.