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Eugénio Fonseca: "Somos um país preconceituoso relativamente à pobreza"

Não falta solidariedade em Portugal, mas as solicitações são tantas que as pessoas começam a ficar cansadas, alerta o presidente da Cáritas Portuguesa. E isso é tanto mais preocupante quanto estamos a entrar num novo ciclo de pobreza.

30 de Novembro de 2012 às 00:01
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Portugal tem de ter uma postura diferente perante a pobreza, num momento em que o País caminha para tempos difíceis e em que, garante Eugénio Fonseca, "temos já mais de 20% de pobres". O responsável pela Cáritas portuguesa aponta o dedo aos políticos que, diz, "não conhecem a vida concreta" e sustenta "o perfil do pobre está a mudar" e que nunca antes se viu tanta pobreza envergonhada, de pessoas que já não conseguem lutar pelos seus direitos.

A sociedade está solidária na adversidade?

Somos um país solidário, mas às vezes um pouco preconceituoso relativamente à pobreza. Instalou-se uma certa cultura que nos leva a ver no pobre a culpa exclusiva da sua situação. Veja todo o debate que se fez à volta do RSI [Rendimento Social de Inserção]. É paradigmático do que é a opinião generalizada. O pobre é pobre porque não quer trabalhar, quer viver à custa do Estado, é subsídio-dependente. Isto não ajuda a luta contra a pobreza. É impossível alguém querer ser pobre e tudo tem uma história. Às vezes, na resiliência da própria vida, as pessoas criaram mecanismos de defesa e tornaram aquilo quase um modo de vida. É aquela pobreza em que já não há nada a perder, em que a pessoa já perdeu o sentido da sua dignidade e auto-estima. E em que é essa a herança que transmitiram aos filhos, como se fosse uma fatalidade. E a sociedade olha-os como os malandros, como aqueles que não querem fazer nada.

E pouco faz para os ajudar...

Sim, porque estigmatiza-os e culpabiliza-os pela situação em que se encontram. Mas o perfil do pobre mudou e há uma coisa que temos de salvaguardar, fundamental para não cair na tal situação da pobreza já estrutural: a pessoa gostar de si e achar que não merece ser pobre. Porque hoje, pode estar-se numa situação favorável e de repente cair na pobreza. São os três "D". Desemprego, divórcio e doença. Sou testemunha de vidas que se desmoronaram assim. Sempre me custou políticos com responsabilidade que não percebem isto. São pessoas que não conhecem a vida concreta. Deviam estar mais no contacto com as pessoas, no contacto directo. Não fazer só isso nos tempos eleitorais, conhecerem casos e histórias de vida, irem ao encontro das pessoas.

E para eles, os casos de que fala são as excepções?

Vamos às estatísticas. Quando arrancámos para a crise, em 2008, tínhamos 17,9% de taxa de pobreza em Portugal, pessoas a viver com menos de 300 euros mês. Dantes tínhamos até 20%. E há pessoas que são tão pobres, tão pobres, como os sem-abrigo, que não entram nas estatísticas. Destes 17,9%, mais de 20% eram trabalhadores por conta de outrem, o que significa que os seus salários não eram suficientes para as despesas que tinham. A partir do próximo ano vamos sentir cada vez mais isso. Vamos ter empregados pobres. Outra percentagem considerável, perto também dos 20%, eram idosos. Sabe o que fez baixar para os 17,9%? Foi o RSI e o complemento solidário para idosos.

Como comenta as críticas que se faziam ao RSI?

A média de distribuição do rendimento mínimo pelas pessoas era baixa e nunca foi para as pessoas saírem da pobreza, mas aliviava a agressividade da pobreza. As pessoas deixaram de vir pedir o pão ou o leite, controlavam a sua vidinha por ali e para o erário público eram trocos. Mas havia a tal estigmatização. Apesar de a medida sempre ter tudo a obrigatoriedade dos planos de inserção, o problema é que os técnicos no terrenos não os agilizavam. Quem fosse apanhado em fraude saía e quem ao fim de três propostas de trabalho não aceitasse também saía. Mas estigmatizou-se tudo isto, relativamente ao pobre, aos ciganos, e isso é muito injusto.

E os cortes no RSI estão agora a contribuir para fazer crescer novamente a taxa de pobreza?

Sim, mas tem sobretudo a ver com o desemprego. Nós hoje já somos mais do que 20% de pobres, primeiro porque já há mais de 16% de desempregados. Há os desencantados do mercado de trabalho, que já não estão no centro de emprego. Nós temos já mais de um milhão de desempregados, não são os 870 mil que o INE falava.

A Caritas encontra muita pobreza escondida?

Essa decorre da estigmatização dos pobres. Se aceitássemos a pobreza como algo que é decorrente de uma injustiça social, que é exterior à pessoa... A nossa postura perante a pobreza tem de ser outra. Tive um caso de uma professora que ficou desempregada, que esgotou os subsídios, e sugeri-lhe que se candidatasse ao RSI. "Isso não faço", respondeu-me a chorar. E não faz porquê, se isso é um direito seu? Não faz porque senão fica logo rotulada , do lado daqueles que não fazem nada. Porque se tornou uma esmola que o Estado dá aos bem comportados. Como se todos nós o fossemos. Os do rendimento mínimo lesavam o Estado. E aqueles que fogem aos impostos? Dói-me na alma.

Falta-nos uma cultura de solidariedade?

Neste aspecto falta, mas em geral o povo português é solidário e nós Cáritas temos provas disso, naquilo a que chamamos a solidariedade imediata. Perante uma catástrofe, perante um aperto, as pessoas reagem. E a comunicação social tem um papel muito importante. Mas não temos a cultura de as pessoas, por iniciativa própria, fazem contributos, algumas fazem, mas não temos a intensidade que vemos por exemplo na Caritas de França ou de Espanha.

Trabalham em articulação com o Estado?

As Caritas que são IPSS, tem apoios públicos. Mas para ajudar as pessoas a pagar a renda da casa, a luz ou a água, aí o Estado não dá nada. Temos neste momento uma operação internacional, "Dez milhões de Estrelas", em que convidamos as pessoas a adquirir uma pequena vela, por um euro, para na noite de Natal porem na janela. Com o valor recolhido, fazemos acção social. No ano passado vendemos 500 mil, este ano gostávamos de ter tantas como os números oficiais de desempregados, os tais 870 mil. As pessoas costumam ser solidárias, mas acredito que começam a ficar cansadas, tantos são os apelos. E isso é perigoso, porque o Estado não tem investido nada aqui.

A crise obrigou-vos já a reforçar a presença no terreno?

Muito. O nosso problema é que o volume de casos e a força desses casos é maior do que a nossa capacidade de encontrar recursos. Já não conseguimos responder a toda a gente e de forma completa.

Já estão a dizer às pessoas que não conseguem ajudar?

Se a pessoa nos vem dizer que tem fome, que tem uma ordem judicial para ir para a rua, nós não voltamos costas a ninguém. Muita gente pede ajuda para pagar a renda. Já nos apareceram casos para ajudar a pagar o IMI, para as casas não serem penhoradas pelas Finanças. Neste momento estamos reduzidos às acções passivas, a matar a fome, a aguentar a ajuda das pessoas. Há também algum cansaço entre os nossos voluntários, que não vêem depois as tais saídas. Gostaríamos de fazer mais, de criar postos de trabalho, como já temos feito, de rasgar horizontes.

Temos um Natal difícil pela frente?

Sem dúvida. É também a oportunidade de viver a sério o Natal, porque o excesso de consumismo também o descaracterizava, mas quando é forçado é dor. E vai haver muita casa a sofrer. E o Natal aconteceu para nos fazer acreditar num mundo mais justo, que outro mundo é possível, de paz, justiça, solidariedade. O Natal é esperança, mas, para muitos, este Natal não vai trazer essa boa nova. Por isso a importância da solidariedade.

Não se nota mais solidariedade precisamente por ser Natal?

Também é preciso ter cuidado porque no Natal, e isso não é de agora, há o perigo de fazermos tanto, tanto, acções às vezes até descontroladas e descoordenadas, que enchemos as casas de algumas famílias de tudo e outras, os tais envergonhados, ficam sem nada. Fazem-se muitas ceias, às quais vão aqueles que já conseguem sair de casa e expor a sua situação. Os outros ficam em casa. Eu quando dou o cabaz de Natal, vou directamente à casa das pessoas, sem máquina fotográfica. Tenho tido duelos com empresas que dizem que só dão se juntarmos os pobres para depois receberem e serem fotografados.

É a diferença entre solidariedade e caridadezinha?

É. E é a questão do marketing social. Mas não é preciso expor as pessoas. Elas até podem depois escrever uma carta a agradecer, mas sem ir lá a sua cara.

Têm muitas empresas a querer ajudar ou também ai notam alguma redução?

Já nos aparecerem várias, mas algumas com estas exigências, de dar directamente às pessoas. E isso não aceitamos. Querem que desloquemos as pessoas em grupo para irem receber os cabazes de Natal. Isso não fazemos. Até porque depois quem vai são aqueles que já perderam a sua dignidade e que vão a todas. Os outros, os envergonhados, não recebem nada. E o perigo do Natal é muitas vezes esse. Os pobres de hoje são diferentes, estamos a falar de professores, juristas, arquitectos, gente que trabalhou na função publica, não estamos a falar daqueles que já nasceram pobres. Por outro lado, para alguns o Natal é só o Natal, para nós o Natal são 365 dias. Há quem se esqueça que depois há o 26 de Dezembro.

E no próximo ano teremos um Orçamento do Estado (OE) que traz muitas restrições. Acha que o Estado está a demitir-se das suas funções sociais?

Está a valorizar-se excessivamente o pagamento da dívida nos prazos que foram irrealisticamente determinados. Não quero crer que haja insensibilidade por parte do Governo às questões sociais, mas esta fobia que se entranhou de termos que cumprir exemplarmente as metas estabelecias, que foram altas de mais para a realidade concreta do nosso pais, leva à tomada de medidas que inevitavelmente continuam a secundarizar as pessoas.

Que estão cada vez mais desprotegidas?

Pede-se de mais a uma determinada classe, não se tem repartido o esforço e isso redunda numa desprotecção social, com retirada altamente lesiva de direitos sociais aos que já são tão vulneráveis. Tanto mais que sabemos que a superação da pobreza nos últimos anos teve muito a ver com essa protecção social.

E estamos a regredir?

Sem dúvida. Estamos novamente a entrar num ciclo de pobreza com taxas altamente preocupantes, e uma relação muito directa com o desemprego.

Diria que o Estado está a secundarizar as pessoas?

Não as está a valorizar, na medida em que a sua preocupação tem sido o défice. Admito que tenha uma preocupação mais a longo prazo. Aceito que não podíamos continuar na situação em que nos encontrávamos, com tamanha dependência do exterior. Reconheço que estas medidas, a longo prazo, darão uma sustentabilidade económica maior ao nosso País. Mas agora há pessoas que estão a ser esquecidas. Relegadas para um estado de privação total que acarreta muitas vezes a indignidade humana. E não sei se isso tem de ser inevitável. Era urgente repensarmos as metas estabelecidas pelo memorando e, sem pôr em causa o pagamento da dívida, renegociá-la, em termos de prazos e de juros. Por outro lado, gostava de ver uma Europa mais solidária. A Europa não nasceu para isto, nasceu para a coesão, mas subalterniza alguns para valorizar outros, que se consideram os grandes donos da Europa só porque têm economias fortes.

O Estado social já não é o mesmo?

Quando se fazem restrições como as que se tem feito e este Governo acompanha, com cortes na saúde, educação e protecção social, estamos a mexer na coluna vertebral do estado social. Não faz sentido uma democracia sem a coesão social. E o factor de construção da coesão social é darmos solidez ao Estado social

O Governo está a preparar uma redefinição das funções do Estado. O que mais o preocupa?

É preciso repensar o Estado social, mas não para lhe retirar funções. Talvez tenhamos de pensar em termos da sua sustentabilidade, porque eu defendo a diferenciação positiva na utilização daquilo que são os serviços do estado social.

Que cada um pague segundo as suas posses?

Que haja universalidade no acesso aos serviços, mas que as contrapartidas por parte daqueles que usufruem sejam diferentes. Quem puder contribuir para a sustentabilidade do Estado social deve faze-lo na proporção dos rendimentos que tem. Deve ser gratuito para quem não possa. Porque receio muito que nesta refundação resultem efeitos catastróficos: quem tem bons rendimentos vai optar por uma protecção social privada, com todas as condições, e contribui para ela, deixando de contribuir para o Estado social universal, enfraquecendo o estado social dos cidadãos com menos possibilidades, a quem vai ser prestada menor qualidade nos serviços. Vamos ter uma sociedade estratificada, com cidadãos de primeira e cidadãos de segunda. O que vai acontecer com este OE é um verdadeiro pavor. Vai mais uma vez penalizar aqueles que auferem menos rendimentos enquanto outros continuam escandalosamente, a fugir ao Fisco e fora do sistema.

Foi isso que disse quando foi recebido pelos representantes da troika?

Falámos disto, da destruição da classe média. E isso quase que dão como inevitável, no sentido de que se tem de se ir buscar recursos, os pobres não têm, os ricos não querem dar, então é À classe média que é mais fácil de ir buscar, pelos impostos directos. Percebi que a lógica é esta, é a tal pressa em se pagar a dívida.

Não encontrou, portanto, grandes preocupações sociais.

Não. Reconheço que a longo prazo as consequências podem ser positivas, mas estamos de tal modo a destruir pessoas, que no longo prazo já não as temos galvanizadas para acreditar no país e colaborarem para a competitividade. Por outro lado, este é o pior momento para se iniciar uma coisa destas. É uma pressão muito grande. O debate está confinado ao Parlamento e este é um tema que interessa a todos, não se criou a dinâmica de envolver as forças vivas neste processo. Para a Igreja, o Estado social é intocável e não pode ser questionado em termos daquilo que é a universalidade dos direitos das pessoas. Teremos de pensar, isso sim, é o modo como o Estado social vai funcionar. Ai tudo bem. Mas faze-lo de uma forma serena e não sobre pressão.

 

 

O que é a Cáritas

Instituição oficial da Conferência Episcopal Portuguesa para a promoção e dinamização da acção social da Igreja, a Cáritas está espalhada pelo Mundo. Por cá há 20 Cáritas diocesanas e vários grupos locais que todos os dias contactam, no terreno, com famílias que passam necessidades e que cada vez acorrem mais e em maior número aos seus serviços.

Em Portugal é dirigida, desde 1999, por Eugénio Fonseca, 55 anos, ligado desde sempre à Cáritas Diocesana de Setúbal e, segundo o próprio, "a prova de que a pobreza não é uma fatalidade". Filho de uma família pobre, pai pescador e mãe operária na indústria conserveira de Setúbal, contrariou a tradição e nem ele nem o irmão mais velho não enveredaram por um destino ligado ao mar.  "Nunca passámos fome, mas também nunca tivemos livros próprios", recorda. O irmão "foi o primeiro engenheiro electrotécnico do bairro" onde viviam, Eugénio Fonseca fez Ciências Religiosas. Hoje, afirma com visível orgulho: "Não somos pobres".

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