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"Secos e molhados" deram liberdade sindical à PSP e 30 anos depois há 17 sindicatos

Três décadas após a manifestação conhecida por "secos e molhados" foram muitos os direitos conquistados pelos polícias, inclusive a liberdade sindical que permitiu que hoje existam 17 sindicatos na PSP para um efetivo de cerca de 20 mil elementos.

António Pedro Santos/Lusa
20 de Abril de 2019 às 09:13
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A 21 de abril de 1989, os polícias manifestaram-se para exigir sobretudo liberdade sindical, uma folga semanal, transparência na justiça disciplinar com direito de defesa, melhores vencimentos e instalações.

 

A manifestação acabou com confrontos com o Corpo de Intervenção da Polícia de Segurança Pública a lançar jatos de água e a usar bastões para dispersar o protesto dos polícias, na praça do Comércio, em Lisboa, enquanto os seis agentes da delegação que estava dentro do Ministério da Administração Interna para entregar um caderno reivindicativo acabaram detidos.

 

Na altura, os polícias não podiam sindicalizar-se, existindo ilegalmente a Associação Pró-Sindical da PSP, que mais tarde veio a constituir-se na Associação Sindical dos Profissionais da Polícia (ASPP/PSP).

 

Um ano após a manifestação dos "secos e molhados", e já com o Governo PS liderado por António Guterres, foi aprovada a lei do associativismo da PSP e só em 2002 a lei do sindicalismo.

 

Atualmente, num universo de cerca de 20 mil polícias, existem 17 sindicatos na polícia com cerca de quatro mil dirigentes e delegados que, em 2017, tiveram mais de 36 mil dias de folga.

 

Segundo dados disponibilizados pela direção nacional da PSP à Lusa, há sindicatos com o mesmo número de associados e de dirigentes e delegados sindicais, existindo ainda duas estruturas com 26 e 37 associados.

 

Para limitar os créditos sindicais na PSP o Governo aprovou há mais de dois anos uma nova lei que regula o exercício da liberdade sindical da PSP, estando atualmente na Assembleia da República em apreciação na comissão da especialidade.

 

A proposta de lei necessita de maioria de mais de dois terços para ser aprovada no parlamento, tendo o PS e PSD preparado um texto de substituição.

 

Em declarações à Lusa, o presidente do maior sindicato da PSP considerou necessário rever a lei sindical, observando que se "nada for feito será um prejuízo para os polícias".

 

"Chegou-se a este ponto que é completamente ridículo [número elevado de sindicatos] e até um desrespeito para com os polícias que fizeram os 'secos e molhados'", disse Paulo Rodrigues, sublinhando que foi conseguido "um instrumento importante", que depois não foi aproveitado.

 

O presidente da ASPP referiu também que "não foi com este objetivo" que os polícias lutaram há 30 anos pela liberdade sindical, mas sim pela criação de um sindicato que tivesse força "para pressionar o Governo e a própria instituição PSP".

 

Paulo Rodrigues frisou que "há uma descredibilização dos sindicatos da PSP devido ao seu número", uma "proliferação" que "criou instabilidade, reduziu peso negocial e tirou forças aos sindicatos".

 

O sindicalista criticou também o facto de muitas estruturas terem sido criadas para "defender questões pessoais".

 

Passados 30 anos dos "secos e molhados", Paulo Rodrigues considera este movimento "muito importante" pelos direitos alcançados e pela "grande mudança" de mentalidades na PSP, passando a existir "uma maior abertura da polícia à sociedade".

 

No entanto, ressalvou que "muitos dos problemas ainda se mantém", como "uma certa desvalorização" do trabalho das polícias e perseguição sindical.

 

"Hoje temos oficiais de polícia a gerir a instituição, mas continua a haver os mesmos tiques que existiam há 30 anos, nomeadamente perseguição sindical", precisou.

 

Por sua vez, o presidente do Sindicato dos Profissionais da Polícia (SPP/PSP) disse à Lusa que "muita coisa" mudou em 30 anos, nomeadamente horários, folgas, que passaram a ser semanais em vez de quinzenais, e maior abertura.

 

Com a liberdade sindical, passou existir "poder de intervenção e de denúncia", disse Mário Andrade.

 

No entanto, o presidente do segundo maior sindicato criticou as alterações à lei sindical, frisando que os "sucessivos governos não regulamentaram de forma séria" o sindicalismo na PSP e agora o parlamento quer aprovar uma lei "excessivamente restritiva".

A razão estava na praça

 

Há 30 anos uma manifestação de polícias foi reprimida com bastonadas, cães e canhões de água, ficando conhecida como "secos e molhados". Um "seco" e um "molhado" voltaram juntos à praça do Comércio e disseram que quem ganhou foi a PSP.

 

O 21 de abril de 1989 no centro de Lisboa está ainda hoje na memória de muitos polícias, especialmente as "imagens" dos canhões de água a tentar dispersar a manifestação. Nunca os canhões tinham sido usados contra pessoas, nunca mais os canhões foram usados contra pessoas.

 

Álvaro Marçal, 59 anos, entrou para a PSP em 1983 e esteve no Corpo de Intervenção (CI) até 1990 (foi expulso por causa da manifestação).

 

Em entrevista à Agência Lusa diz que nunca no seu tempo foram usados canhões de água, uma informação que o dirigente sindical Paulo Rodrigues precisa: os canhões de água da PSP só foram usados uma vez, contra a própria PSP.

 

O dia da água foi também dos cães e das bastonadas, por parte do CI, mas foi também de angústia e tensão. Marçal estava no CI, com ordens para bater, e diz que nunca mais viveu um momento de tanta tensão.

 

Há 30 anos os polícias queriam criar uma Associação Socioprofissional da PSP (ASP-PSP), que seria o embrião da Associação Pró-Sindical da PSP, hoje Associação Sindical dos Profissionais da Polícia.

 

Reunidos na Voz do Operário, em Lisboa, dirigiram-se depois, fardados, para o Ministério da Administração Interna para apoiar seis colegas que iam entregar uma moção ao Governo. Alberto Filipe, também 59 anos, integrava o grupo.

 

Álvaro Marçal e Alberto Filipe voltaram agora ao local para lembrar à Lusa o Terreiro do Paço, as angústias e os sentimentos de há 30 anos.

 

Era uma sexta-feira e o alarido começou cedo nas rádios, a destacar a "reunião histórica" de polícias e da eventual marcha até ao MAI, recorda Álvaro Marçal. No CI "havia um ambiente de silêncio", especialmente por parte dos que faziam parte do movimento a favor da associação socioprofissional, acrescenta Álvaro Marçal, também ele um dirigente do movimento então liderado pelo subchefe José Carreira.

 

Na Praça do Comércio lembra o ambiente de tensão vivido dentro do CI, onde se admitia o absurdo de serem chamados para ir ao Terreiro do Paço fazer não sabiam o quê. Marçal estava de serviço, era o comandante da primeira secção do Pelotão de Alerta Máximo, de elevada prontidão. E à hora de almoço, com os noticiários, aumentou a tensão, até porque Álvaro Marçal não tinha informações sobre o que se passava no exterior.

 

À tarde, como temiam, conta Marçal com emoção, o CI formou "o maior dispositivo de ordem pública" de que se lembra, até com colegas que não faziam parte do dispositivo operacional. E saíram para o Terreiro do Paço, a calçada da Ajuda cheia de viaturas, a tensão a aumentar dentro delas. "No trajeto não falávamos, olhávamos para o chão, um silencio pesado. Foi um trajeto muito difícil".

 

Naquela tarde de sexta-feira o CI tinha "a perfeita noção" de que tudo aquilo era "excessivo e desnecessário". E quando se concentrou na praça do Município, perto da praça do Comércio, foi o povo que os foi provocar, fazendo sinais de vitória.

 

"Para nós, que estávamos dentro das carrinhas, tudo aquilo era uma pressão verdadeiramente incrível. Não me lembro na minha vida de estar perante um momento tão tenso",

 

Por esta altura Alberto Filipe já descia do salão da Voz do Operário, no bairro da Graça, em direção à praça do Comércio. Era justa a luta, havia instituições e setores da sociedade "já com os seus direitos devidamente defendidos, como a PJ, a guarda prisional, os funcionários públicos tinham o sábado e o domingo de descanso".  E a PSP tinha duas folgas por mês.

 

Alberto Filipe era polícia na esquadra da rua do Arsenal, junto do MAI, foi à reunião, participou na discussão da moção a ser entregue ao Governo, votou-a e votou que todos acompanhassem a delegação de seis polícias. Ainda se lembra. O Carreira, o Ventura, o Sacramento, o Ramos, o Virgílio e o Augusto.

 

"Chegados à praça do Comércio juntamo-nos bem afastados do MAI, sem impedir o trânsito, sem gritar palavras de ordem, simplesmente, enquanto os colegas da delegação se dirigiam ao MAI. Aguardámos serenamente a conversar".

 

Alguns sabiam que os colegas do CI estavam à espera na praça do Comércio. E todos, polícias, dirigentes das centrais sindicais (Torres Couto pela UGT e Carvalho da Silva pela CGTP) e outros apoiantes, como o juiz Bernardo Colaço, que defendia o direito associativo dos polícias, souberam a seguir da pior maneira.

 

Marçal soube que os polícias tinham chegado á praça quando ouviu barulho de palmas. E recebeu ordem para sair, para formar e para avançar. "Passámos em frente do MAI e progredimos em passo lento. É preciso dizer que mais à frente já tinham vindo os carros da água, o primeiro dispositivo da ordem pública que atua nesse dia, como forma de através da água os colegas saírem do local". E as brigadas com os cães também lá estavam já, os cães confusos com tudo aquilo, um deles acabando por morder num manifestante e no próprio tratador.

 

Nessa altura o grupo que Marçal comanda já está na praça. "Percebo claramente que os colegas não saiam dali, apesar dos canhões da água, apesar da chuva, apesar dos cães. Tudo era profundamente estranho".

 

E que fez o comandante do Pelotão de Alerta Máximo? Nada. Ouviu chamarem-no do outro lado, repetidas vezes, recuou um pouco, avançou sem tirar o bastão. CI e manifestantes acabaram todos misturados "numa confusão tremenda".

 

Alberto Filipe lembra-se dessa confusão, dos jatos de água primeiro ("dos três canhões de água só um efetivamente direcionou o jato para nós, os outros mais pareciam que estavam a lavar as arcadas da +raça do Comércio"), da "cerca de meia hora" que manifestantes e CI estiveram a conversar. E lembra-se da segunda força.

 

Com o grupo de Marçal inoperacional o comando da PSP envia um segundo grupo e esse carrega de facto sobre os manifestantes e acaba com a concentração. Dentro do MAI os seis polícias são presos (seriam libertados por um juiz no dia seguinte). E na praça, diz agora Alberto Filipe, havia muita desorientação, "muita revolta", muitos colegas levaram a mão à arma. "Podia ter acontecido um banho de sangue".

 

E, diz Álvaro Marçal, "não havia, como nunca houve, necessidade". "Foi um absurdo, foi um erro tático brutal, perfeitamente lamentável, uma ação política profundamente descabida e desenquadrada".

 

Mas, acrescenta o hoje adjunto do comandante da esquadra da PSP de Portalegre, o que aconteceu foi decisivo para se criar no parlamento a lei que permitiu a constituição das associações socioprofissionais. Porque antes "ninguém nos ouvia, tudo era proibido".

 

E nos meses a seguir à famosa carga o movimento recebeu mais quase 6.000 novos associados. No CI, que tinha 420, passou-se para quase 600 novos militantes.

 

Ainda assim Marçal não tem dúvidas de que foi um "momento lamentável" na democracia portuguesa. E no dia dos "secos e molhados", ele que era dos "secos" sentiu-se "tão molhado como os colegas". "Sinto que aquela água caiu sobre mim também".

 

Alberto Filipe, quase a fazer 37 de polícia, agente principal no comando metropolitano de Lisboa, entende os "secos", os que tinham de estar do outro lado, mas que tinham consciência que a razão estava na praça.

 

Álvaro Marçal, Alberto Filipe ao lado, abana a cabeça que sim. E diz depois que o 21 de abril é um marco histórico para toda a polícia, hoje e sempre.

 

Porque marca também o "rompimento com um modelo antigo de polícia" e parte "para um modelo profissional" que é o modelo de hoje e que na altura se reivindicava.

 

"Se Portugal é hoje o quarto país mais seguro da Europa, deve-o também à PSP, uma grande instituição. E esta instituição tem um marco histórico no 21 de abril de 1989".

 

Alberto Filipe, Álvaro Marçal ao lado, também abana a cabeça que sim.

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