Notícia
“Politicamente correcto é fanático”
Conseguir explicar a realidade sem o recurso ao Divino é considerada uma das grandes conquistas das sociedades modernas que permitiu relegar as religiões para um plano diferente, designadamente da política e da economia.
Conseguir explicar a realidade sem o recurso ao Divino é considerada uma das grandes conquistas das sociedades modernas que permitiu relegar as religiões para um plano diferente, designadamente da política e da economia.
O papel das religiões na vida pública voltou, porém, a ser tema de actualidade no mundo ocidental neste início de século. A "The Economist" acaba de publicar um suplemento especial, e em Portugal terminou ontem um ciclo de conferências sobre o assunto, co-organizado pela SEDES e pela Universidade Católica
Vítor Bento, presidente da SEDES, economista e presidente da SIBS, a empresa que gere a rede do Multibanco, foi um dos dinamizadores do debate, a par de nomes como os de Mário Soares, Francisco Balsemão e Ângelo Correia.
"O papel das religiões para o mundo do Século XXI" foi tema do ciclo de conferências que terminou ontem. Porque surgiu esta iniciativa?
Porque é importante reflectir sobre temáticas de interesse geral e alargado para a sociedade e não nos concentrarmos apenas na economia. A economia é importante, mas às tantas damos por nós a discutir todos os dias orçamento e produtividade, quando a vida das sociedades é mais do que isso, e as instituições cívicas têm por obrigação reflectir sobre tudo o que lhes diz respeito. E a religião, independentemente de todos os vaticínios, é muito importante, mesmo quando se diz que não é importante.
A negação de Deus gerou outras formas de religiosidade...
Mesmo quando se quer tirar Deus da equação da vida, a religião, e o modo de pensar e de comportamento religiosos, continuam a ser importantes. George Steiner escreveu um livro, "A Nostalgia do Absoluto", precisamente sobre essa problemática. E mostra que as pessoas, quando excluem Deus das suas vidas - no seguimento dos princípios modernistas e pós-modernistas - ficam com um vazio, que procuram preencher de várias formas, porque sentem interiormente uma necessidade de ir além do material, do perceptível. É a essa falta que o autor chama de nostalgia do Absoluto e que dá lugar a procuras alternativas, como a actual moda dos orientalismos e da New Age, o recurso à Astrologia, a ovniologia, entre muitos outros exemplos. Tudo isso são formas de preencher o vazio interno deixado pelo abandono das religiões organizadas e de lidar com o desconhecido. Tudo isso acaba por introduzir uma certa religiosidade, mais primitiva e supersticiosa até do que a daquelas religiões.
Não será assim obviamente com todas as pessoas, mas esta é uma consequência socialmente relevante.
Por outro lado, o comportamento religioso em si mesmo acaba muitas vezes por ser trazido para o espaço terreno, com as chamadas religiões laicas, frequentes no espaço político. Temos hoje crenças políticas, em geral de pendor totalitário, que cumprem todos os preceitos formais de uma religião. Uma crença num paraíso (neste caso terreno) projectado num futuro distante e ao qual se aceita sacrificar o presente (isto é, a vida efectiva); um livro de referência e uma teologia construída à sua volta; uma liturgia e um conjunto de rituais para manter os fiéis mobilizados (como os comícios, por exemplo); um clero partidário devidamente hierarquizado, culminando num "supremo sacerdote"; e até santinhos e relíquias, muito venerados. O exemplo mais referido destas religiões, embora não seja o único, é o do comunismo e de cuja devoção santeira são testemunho os mausoléus de Lenine e de Mao ou o ícone do Che. Isto no fundo para dizer que a religião continua a ter muita importância na vida das pessoas, mesmo para aquelas que a negam ou contestam.
Por outro lado ainda, temos hoje vários conflitos bélicos e um terrorismo activo, ambos assentes em fundamentação religiosa, o que testemunha também a importância que a religião continua a ter na vida de todos. Por muito esforço que se faça para tirar a religião do caminho, ela está, no seu sentido lato, sempre presente. E prova desta relevância, social e política, é que a " The Economist" lhe dedicou recentemente a capa e um dossier interno.
É resultado do 11 de Setembro?
O 11 de Setembro não avivou o papel das religiões, mas apenas a percepção do papel das religiões. Convém recordar, por exemplo, quando se aponta o "excesso" de envolvimento religioso do presidente Bush, que ele já tinha sido eleito antes do 11 de Setembro. E que ele e a sua eleição, nesse sentido, não representam uma anormalidade, mas reflectem o peso político da forte componente religiosa da sociedade Americana.
A América a que nos habituámos dos filmes e das séries televisivas passados em Nova Iorque, Boston ou Los Angeles é uma imagem enviesada da América real. E todos os presidentes, com maior ou menor ostentação, têm assumido publicamente uma associação religiosa que tende a surpreender os europeus. Recorde-se, por exemplo e num outro quadrante político, o presidente Carter e o seu puritanismo, evidenciado, por exemplo, ao penitenciar-se publicamente por ter pecado, cometendo adultério em pensamento.
A Ciência ao ir tão longe, com os desenvolvimentos na genética, na clonagem, que mexem com os "limites" da acção humana, não terá ela própria também "ressuscitado" a religião?
É verdade que a Ciência revelou um progresso notável, melhorou muito o nosso entendimento do mundo e desvendou muitos dos segredos de que a religião se alimentou. Mas não responde a tudo. E por muito que progrida, há sempre respostas que ficam por dar. Consegue arranjar uma explicação plausível para o "big bang", mas deixa por explicar o que aconteceu antes. Logo, a Ciência não conseguirá eliminar por completo o espaço da crença, da fé. Por outro lado, a Tecnologia, fruto da Ciência, acelerou muito o ritmo de mudança do mundo e, desse modo, criou um paradoxo interessante. Desenvolvendo-se para aumentar o campo das certezas, acabou, pela espiral de mudança que alimenta, por aumentar muito a incerteza com que se vive. As pessoas confrontam-se hoje, num mundo de certezas científicas, com grandes incertezas acerca da sua existência e da sua vida. Ficaram, talvez, mais intranquilas quanto ao futuro. E essa intranquilidade abre espaço à procura do conforto da religião.
O que encaixa nas religiões laicas?
Grande parte dos comportamentos sociais tem uma componente "religiosa" muito grande. Grande parte da nossa estrutura de conhecimento é adquirida pela fé - entendida no sentido lato, de confiança. Por outro lado, toda a nossa racionalidade assenta num conjunto de crenças, a partir das quais elabora. Por isso, pessoas igualmente inteligentes e informadas sustentam diferentes visões do mundo e da sociedade. É claro que a maioria de nós, ou pelo menos boa parte, tem a preocupação de sujeitar as suas crenças a testes de plausibilidade, usando a razão como filtro, o que aliás já era recomendado por Santo Agostinho.
Comparando com o mundo islâmico e com a própria América, a Europa parece ser uma espécie de último reduto do laicismo...
Mas não deixa de ser religiosa, no sentido laico que atrás referi. Veja o fanatismo com que se tratam certos assuntos. A obsessão com o politicamente correcto é um comportamento tipicamente religioso e, o que é mais grave, fundamentalista. Hoje em dia, muitas opiniões, politicamente incorrectas, são tratadas como autênticas blasfémias, sendo mesmo sujeitas a condenações penais, como com qualquer fundamentalismo religioso, não sendo inusitado assistir-se a verdadeiros processos inquisitoriais a quem sai da ortodoxia do pensamento politicamente correcto. Isso não é diferente do comportamento que a religião tinha na Idade Média.
Mas a liberdade tem limites. O politicamente correcto é assim tão condenável?
Tem a parte má das religiões, que é o fundamentalismo. Relativamente ao politicamente correcto, há hoje comportamentos de uma duplicidade que não deveriam escapar ao filtro de uma razão atenta. Veja-se, por exemplo, o extremo cuidado em lidar com os símbolos do Islão, ao mesmo tempo que se achincalham publicamente os símbolos do cristianismo, apelidando esse achincalhamento de arte ou liberdade de expressão. Se houvesse bom senso e prevalecesse a razão e a decência, o comportamento normal seria evitar ofender gratuitamente os outros, fossem islâmicos ou cristãos e ambas as ofensas tenderiam a ser repudiadas.
Não é reflexo da maior tolerância das sociedades ocidentais?
Não, porque é enviesada. Ou os crentes cristãos merecem menos respeito do que os crentes muçulmanos? Ou os muçulmanos são considerados menos inteligentes e por isso precisam de condescendência? Claro que não. O que todos merecem é respeito. Uma blasfémia ofende um crente naquilo que lhe é mais profundo. Tolerância é respeitar o que é importante para os outros. Se os símbolos religiosos são importantes para outros, devem ser respeitados, em qualquer circunstância que não ofenda alguns princípios fundamentais, como a liberdade e a dignidade humana. Aliás, uma das consequências da perda de importância das religiões organizadas foi a perda de uma âncora moral para os comportamentos sociais, levando à prevalência de um relativismo moral que conduz à sucessiva degradação dos padrões morais. O laxismo moral é, por exemplo, uma falha grave que os seguidores do Islão apontam às sociedades ocidentais.
A dinâmica demográfica na Europa pode, a prazo, tornar o Islão preponderante.
É perfeitamente possível. Do ponto de vista das consequências políticas, o problema que o Islão coloca é o ser concebido como um compacto político-religioso que sujeita a política à religião, tornando esta no principal guia político. Veja-se, por exemplo, a defesa da sujeição do sistema penal do Estado à "sharia". A forma de vida política que hoje temos no Ocidente, resultou muito de o Cristianismo ter aceite intelectualmente a separação entre a esfera política e a esfera religiosa. De acordo com essa concepção, foi possível deixar que a política, imperfeita por natureza, fosse uma actividade terrena, da esfera dos homens, enquanto a Igreja se ocupa dos assuntos de Deus e da salvação dos homens. Foi pelo caminho assim aberto que se chegou à separação entre o Estado e a Igreja - que não implica necessariamente um Estado hostil à Igreja ou aos crentes, ou que os dirigentes políticos tenham convicções religiosas.
O Islão foi, em tempos remotos, extremamente rico do ponto de vista intelectual, com uma produção científica e filosófica, sem paralelo no seu tempo. Mas a partir do século XII, o pensamento de Al-Ghazali ajudou a consolidar uma visão inflexível sobre a literalidade da mensagem revelada, que praticamente eliminou a possibilidade de reflexão filosófica ou teológica mais aberta. Foi a partir daí que o Islão se fechou sobre si próprio e perdeu a liderança cultural.
Acha possível que religião regresse abertamente à política e à economia no mundo ocidental?
Não sei prever isso. Mas, quanto mais não seja por razões demográficas, a religião e o papel de Deus vão ter mais importância no futuro, porque os países ou os grupos sociais que hoje são mais religiosos, têm uma dinâmica demográfica mais forte. E essa dinâmica e as suas consequências vão ser sentidas na Europa através das migrações.
Como perspectiva o que se está a passar na Turquia?
O que devia levar os intelectuais a reflectir é precisamente o que leva hoje as pessoas, em muitas sociedades, a procurarem refúgio na religião e a darem cada vez mais importância política aos valores religiosos. Talvez porque encontram na religião resposta para os problemas existenciais - incluindo os da vida prática - que a organização laica não consegue dar. Por exemplo, uma das razões que tem levado a uma papel socialmente mais activo do Islão em certas comunidades foi o ter assegurado redes de assistência social e de educação, capazes de suprir a incapacidade dos Estados nesse campo.
No caso português, o último "ranking" das escolas é liderado por católicas, três das quais ligadas à Opus Dei. Tem uma explicação?
Não tem nada a ver directamente com fé religiosa, mas provavelmente com o facto de disporem e aplicarem um sistema de valores que favorece o trabalho, o mérito, a disciplina e a responsabilidade, que estimula um melhor desempenho individual e, até, um maior capital social da própria escola. Isto não significa que as melhores escolas tenham de ser católicas. Significa que todas as escolas poderão ter bons resultados se puserem em prática sistemas de valores alinhados com os que referi, mas que não requerem qualquer aderência religiosa.