A 30 de março de 2022, personificou em Costa a vitória do PS com maioria absoluta. E amarrou o primeiro-ministro ao encargo de liderar o Governo sem mudanças de protagonista. Ameaçou com a bomba atómica, mas não a usou quando alguns esperavam que o fizesse: no momento em que foi desautorizado na demissão de Galamba. Ainda assim, o fim abrupto da legislatura tornou-o figura maior do ano.
Por "decisão própria" e "inúmeras razões", depois de meses a lembrar que tinha nas mãos o poder da bomba atómica quase desvalorizando a força e o peso de tal arma constitucional, o Presidente da República avançou mesmo para a dissolução do Parlamento. Afastou um cenário de mudança de primeiro-ministro com Mário Centeno a encabeçar um Governo refrescado e optou por pôr fim a uma maioria absoluta que daria a Costa a vitória de destronar Cavaco como o chefe de executivo com mais tempo de funções. Para muitos analistas políticos, haverá um antes e depois de 7 de novembro. E Marcelo Rebelo de Sousa será figura central quando, daqui a algumas décadas, se olhar com distanciamento para o atual momento político.
Depois de quase perder a mão ao ser desautorizado por um primeiro-ministro que, contra sua vontade, não demitiu um ministro, Marcelo Rebelo de Sousa recentrou o seu peso institucional e acabou por ser decisivo, num ano em que a improvável dissolução da Assembleia da República o conduziu a protagonista do momento político do país e, nesse sentido, a figura nacional do ano escolhida pela redação do Negócios.
Desde o verão que a relação entre entre Belém e São Bento se degradou significativamente, com João Galamba a transformar-se na pedra no sapato de Marcelo. Costa arrebatou o primeiro "round" do embate político com o Presidente e ainda testou a sensibilidade do chefe de Estado com uma ténue provocação: a entrega do discurso de encerramento do Orçamento ao mal-amado ministro das Infraestruturas. Mas foi Marcelo quem, por último, teve a palavra final.
Há dias, ao Weekend, a constitucionalista Teresa Violante recordava as "estranhas dinâmicas" que marcaram a coabitação entre Marcelo e Costa, frisando que, em boa medida, "o excesso de cumplicidades" "não possibilitou o escrutínio devido da atuação do Governo" e que isso fez eclipsar o papel fiscalizador do Parlamento, questionando-se, ainda assim, sobre se "o anúncio da dissolução não foi prematuro". Algo repetido por alguns setores ligados ao PS face às dúvidas que surgem em torno do trabalho desenvolvido pelo Ministério Público no âmbito da "Operação Influencer", que investiga tráfico de influências em projetos ligados a Sines, ao hidrogénio e ao lítio.
Na semana passada, o Expresso dava conta de que o procurador do Supremo Tribunal de Justiça pretendia encerrar com celeridade a investigação ao primeiro-ministro, cuja certidão foi extraída do caso "Influencer". Sinal de que o tema é quente e de que a vontade de resolver o imbróglio gerado pela interrupção abrupta da maioria, visando diretamente o primeiro-ministro num caso de corrupção por invocação do seu nome, é determinante.
Tanto mais que o próprio Marcelo Rebelo de Sousa já veio sinalizar que o futuro político de Costa não está em causa e de que entre os candidatos à corrida ao lugar de secretário-geral socialista ele era o seu "preferido" para estar no Governo. Aliás, o chefe de Estado ensaiou mesmo uma justificação, depois de ter comunicado ao país os motivos que o levaram a optar pelo cenário mais extremo da dissolução, afirmando que não era possível dissuadir Costa de se demitir: "Como é que se dissuade uma pessoa que tem uma convicção muito profunda, muito profunda, de que aquilo é a única saída correta na sua vida? É impossível, é impossível", atirou.
A margem de manobra do chefe de Estado era curta dado que, quando Costa foi reeleito por maioria absoluta, Marcelo transformou o ganho do partido numa vitória pessoal do líder do PS, lembrando-o que a sua cara não podia ser "substituída por outra a meio do caminho". Ainda que quisesse evitar uma saída de Costa para Bruxelas, numa repetição do que aconteceu com Durão Barroso, Marcelo acabou preso nas palavras. E confrontado com a necessidade de fazer cumprir o que havia prometido a 30 de março de 2022.
Novo ciclo cheio de incógnitas
Nas sondagens, o Presidente dos afetos tem visto, ao longo deste ano, a popularidade reduzir-se, especialmente quando foi tornado público o envolvimento do seu filho no caso das gémeas brasileiras tratadas no Hospital de Santa Maria.
E a dissolução da Assembleia da República coloca-o numa espécie de corda bamba face à imprevisibilidade que o próximo ciclo político trará. O grosso dos politólogos antecipa mesmo o princípio de uma era de legislaturas de curta duração, mais conflituantes e menos sólidas. O princípio da era da instabilidade...
Esta quinta-feira, Costa e Marcelo trocaram os últimos cumprimentos de Natal, com o primeiro-ministro demissionário a lembrar que "foram oito anos que os portugueses recordarão, do ponto de vista da relação institucional, um dos períodos de melhor relacionamento" entre Belém e São Bento. A melhor relação que, ainda assim, acabou da pior forma. Costa assumiu a sua "disponibilidade para acrescentar um suplemento de otimismo" quando a "fé" do Presidente da República "não for suficiente" para enfrentar o ciclo político seguinte.
Já Marcelo confessou que o fim da legislatura aconteceu antes do que vaticinava - as contas do PR davam ao atual Executivo mais um ano e 10 meses - e que o seu "hemisfério político" nunca percebeu a forma como tratava o Governo" e não "levou a bem" o compromisso" e a ausência de confronto entre ambos.
O compromisso ou a ausência dele colocarão Marcelo no foco político do próximo ano e será o chefe de Estado a marcar o ritmo da governabilidade futura.