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Espanha aprova decreto sobre despejos apesar de advertência de Bruxelas
O governo espanhol aprovou um decreto-lei com medidas urgentes sobre as execuções hipotecárias, incluindo impedir despejos a famílias com um rendimento anual inferior a 19.200 euros e criar um "parque habitacional" com rendas baixas para quem for desalojado. Isto apesar de Bruxelas ter advertido que Espanha deveria consultar-se com a troika antes de avançar.
O Executivo de Mariano Rajoy aprovou hoje, em conselho de ministros, um decreto-lei com medidas urgentes para aliviar os efeitos das execuções hipotecárias. Essencialmente, não se altera a lei, nem a hipotecária nem a da instrução legal dos assuntos judiciais civis, avança o "El País". Além disso, não há alusão à dação em pagamento e as medidas não são retroactivas.
Por outro lado, há uma moratória de dois anos para as famílias mais vulneráveis - as que, entre todos os membros, não tenham rendimentos superiores a 1.597 euros por mês (19.200 euros/ano); quando a casa de onde vão ser despejadas é a única que têm; ou quanto tiverem de pagar uma hipoteca superior a 50% aos seus rendimentos líquidos); Qualquer uma destas circunstâncias terá de estar aliada a alguns dos seguintes requisitos: ser uma família numerosa, família monoparental com dois filhos a cargo, famílias com elementos que tenham mais de 33% de incapacidade ou que sejam dependentes, famílias em que os devedores estejam no desemprego, ou ainda famílias vítimas de violência de género.
Além disso, não se tocam nos juros de mora, nem no valor da avaliação do imóvel (o PSOE propunha que o valor da avaliação para efeitos de leilão não fosse inferior ao valor da avaliação aquando do empréstimo, mas a sugestão não passou).
Troika não foi informada
A Comissão Europeia não foi consultada pelo governo espanhol sobre as novas medidas hoje aprovadas no âmbito dos despejos. Isto apesar de ter advertido que o Executivo de Mariano Rajoy deveria pedir aconselhamento junto da CE, do BCE e do FMI antes de avançar. É algo que está explícito nos termos do memorando de entendimento, comentaram fontes comunitárias ao “Expansión”.
“Nos termos das condições do memorando de entendimento [MoU – Memorandum of Understanding], Espanha tem de se consultar ‘ex-ante’ com a Comissão Europeia e com o BCE sobre a adopção de políticas do sector financeiro não incluídas no MoU que possam ter um impacto material na concretização dos objectivos do programa”, sublinham. Ora, as políticas relativas aos despejos recaem dentro desta provisão, “uma vez que é bastante provável que tenham um impacto material nos objectivos do programa”, acrescentam as mesmas fontes, referindo que Espanha deve também solicitar a assessoria técnica do FMI.
Segundo o executivo comunitário, a reforma, para ser aceite pela UE, não deve representar um custo extra para o contribuinte europeu, nem afectar o saneamento da banca, caso contrário terá que compensar com outros mecanismos, recorda o “El País”. Ou seja, "o governo espanhol deve consultar a CE e o BCE e solicitar a assessoria do FMI antes de alterar as normas sobre despejos, porque as novas medidas poderão ter impacto no saneamento do sector financeiro e nos objectivos fixados pela Zona Euro no resgate da banca", aponta o "El Economista".
Mas o certo é que o decreto-lei foi mesmo aprovado hoje, apesar de o PP (no poder) e o PSOE (principal partido da oposição) ainda não terem limado todas as diferenças. A proposta, no âmbito da nova regulação sobre os despejos – que incide nomeadamente sobre a responsabilidade de fiadores e avaliadores nas hipotecas e também sobre o rendimento anual abaixo do qual se suspenderá uma execução hipotecária – será depois negociada mais em profundidade.
As cinco grandes questões a reformar
E quais os principais aspectos desta nova regulação? Há cinco grandes questões em cima da mesa, que deverão ainda ser alvo de negociação: papel dos fiadores ou avaliadores num empréstimo hipotecário; responsabilidade das mediadoras imobiliárias; limiar de rendimentos para os despejos; prorrogação dos despejos para as famílias mais vulneráveis; e valor do imóvel.
Sobre o papel dos fiadores ou avaliadores, a proposta diz que, em caso de execução hipotecária por ausência de pagamento, a responsabilidade do fiador será secundária. Melhor explicando: a lei actualmente em vigor permite que, aquando de um despejo por incumprimento, o banco pode ir não só contra o devedor e a sua casa, como também embargar o património dos fiadores, lembra o “Cinco Días”.
Os peritos consultados por este jornal admitiram que já houve casos em que a primeira medida foi embargar os bens do fiador, unicamente devido ao facto de este ter um património mais valioso do que o devedor. Ou seja, a sua responsabilidade acabava por estar ao mesmo nível que a do titular do crédito à habitação. A ideia, agora, é acabar com isso e proteger mais o fiador. “As alterações propostas definem muito melhor a responsabilidade do fiador, que será secundária, definindo-se de forma mais taxativa que a entidade financeira deve actuar primeiro contra o devedor”, sublinharam os mesmos especialistas ao “Cinco Días”.
No que diz respeito à responsabilidade das mediadoras imobiliárias, o decreto estabelece uma série de requisitos muito mais duros para estas empresas em matéria de avaliação dos imóveis. O objectivo é garantir que essas avaliações são independentes e não estão condicionadas pela aprovação do empréstimo hipotecário, de acordo com a mesma publicação.
Um terceiro ponto, e que trouxe uma das grandes novidades, é o do limiar dos rendimentos abaixo dos quais se aplicará a suspensão do despejo: 19.200 euros anuais. Este valor foi unanimemente acordado pelo PP e pelo PSOE e corresponde a 2,5 vezes o salário mínimo.
Além disso, há ainda a tal prorrogação: as famílias mais desfavorecidas ou vulneráveis deverão beneficiar de um “perdão” de pelo menos dois anos para os despejos, tempo que o governo considera ser o necessário para poderem fazer frente às suas dívidas.
Por último, haverá mudanças no que respeita ao valor do imóvel. “Segundo o actual código de boas práticas das entidades financeiras, os agregados familiares com todos os seus membros no desemprego podem evitar ficar sem casa se o valor da mesma não superar os 200.000 euros. A intenção agora é aumentar progressivamente esse limiar, que pode até ser duplicado no caso das famílias numerosas”, explica o “Cinco Días”.
Sublinhe-se que o secretário de Estado da Economia e do Apoio à Empresa, Fernando Latorre, indicou – citado pelo “El País” – que estas medidas para travar os despejos não incidirão sobre as rendas, nem serão aplicadas de forma retroactiva. Além disso, só dizem respeito à primeira casa de cada família.
Banca faz “mea culpa”
Recorde-se que, na segunda-feira, os bancos espanhóis tinham já decidido paralisar as acções de despejo durante dois anos para as famílias financeiramente mais vulneráveis. O BES foi um dos bancos que firmou o compromisso.
Com efeito, a Associação Espanhola da Banca (AEB) anunciou que aceitava a proposta do governo de congelar, durante dois anos, as execuções hipotecárias. Isto em “casos em que se verifiquem circunstâncias de extrema necessidade”, o que pressupõe as famílias mais vulneráveis.
“Perante o alarme social gerado pelas execuções hipotecárias”, a patronal da banca divulgou em comunicado que chegou a um compromisso com todos os seus membros, que paralisarão os despejos nos dois próximos anos, referia o “El País”.
A associação não explicou em que consistem as “circunstâncias extremas”, mas a medida foi tomada por “razões humanitárias” e “no âmbito da responsabilidade social” dos bancos membros da AEB. Estes bancos pretendem, assim, “contribuir para aliviar a situação de desamparo de muitas pessoas devido à crise económica”, sublinhava o comunicado.
Entre alguns dos bancos associados da AEB estão o Banco Espírito Santo, Santander, BBVA, Banca March, Banco de Valencia, Banco Gallego, Banco Popular, Sabadell, Banesto, Barclays, Deutsche Bank, refere o “Cinco Días”.
O comunicado da AEB surgiu depois de o governo espanhol ter anunciado a criação de um grupo de estudo, com o principal partido da oposição, visando encontrar uma solução para o problema dos despejos e tendo como intuito a reforma da lei hipotecária, dizia o “Expansión”.
Em Portugal, entraram em vigor na segunda-feira as novas regras para renegociação do crédito à habitação, em que os devedores em situação económica difícil passam a beneficiar de um regime extraordinário que facilita a reestruturação do crédito e evita a execução da hipoteca em tribunal.
As execuções hipotecárias têm sido alvo de profundo debate nas últimas semanas em Espanha, numa altura em que os despejos das famílias incumpridoras levaram a situações-limite no país, como o suicídio. Os bancos reconheceram que deram crédito para a compra de casa a muitas famílias que tinham capacidade para serem apenas inquilinos e não senhorios.
Bruxelas tem várias formas de “reagir”
Mas regressemos à União Europeia. Ainda que Espanha possa proceder a alterações legislativas sem a aprovação das instituições internacionais, se as medidas que o governo aprovar impedirem o saneamento da banca espanhola nos prazos previstos, a posição negociadora de Espanha poderá ficar muito debilitada em relação à troika, a quem cabe validar o cumprimento do plano de resgate e os futuros desembolsos, alerta o “Expansión”.
“Além do mais, tanto a Comissão Europeia como o BCE têm mecanismos suficientes para desincentivarem a adopção de medidas por parte de Espanha contra a sua vontade. O Executivo comunitário dispõe de recomendações para que o governo cumpra as metas do défice e o BCE dispõe de autoridade para deixar de financiar os bancos espanhóis nos leilões de liquidez”, acrescenta o mesmo jornal.
Por outro lado, refere o “Expansión”, “a instituição monetária europeia tem outra grande bazuca na manga: a compra de obrigações no mercado secundário não é automática. Em última instância, a sua aplicação ou não depende da vontade do BCE de intervir no mercado”.
Apesar de tudo isto, a proposta foi mesmo aprovada esta tarde em Espanha.
(actualizado às 15:40 com a informação dos jornais espanhóis)