Um mundo sem autores
O The New York Times fez uma campanha sobre "os seus tipos de leitores". Um desses tipos é Lianna, que é não binária, "queer" e negra. O que a caracteriza como leitora? "Ela imagina Harry Potter sem a sua criadora." Ou seja, sem J.K. Rowling, uma vez que J.K. Rowling foi acusada de transfobia (ver texto no final) apenas por dizer que não basta um homem "sentir-se mulher" para "ser mulher" - e que há uma dimensão biológica importante no feminino, tal como no masculino. Mesmo sem essa trangalhadança sexual, a ameaça está na ideia de imaginar um livro sem o seu criador: Harry Potter sem J.K. Rowling, porque ela é uma pessoa má; "Os Maias" sem Eça, porque ele "racista"; "O Misantropo" sem Molière, porque ele era soez; "Orgulho e Preconceito" sem Jane Austen, porque ela era conservadora; "As Bruxas de Eastwick" sem Updike, porque ele era machista - um mundo sem dificuldades nem discussões, nem dúvidas, nem contrariedades. É uma nova e brutal forma de apropriação - um mundo sem criadores nem autores, porque eles são incómodos.
As coisas normais
Em França, foi um dos temas mais "fraturantes" da campanha presidencial em curso: o candidato comunista, Fabian Roussel, disse uma coisa simples: "Um bom vinho, uma boa carne, um bom queijo - é a gastronomia francesa. A melhor forma de a defender é permitir que os franceses possam desfrutá-la." Protestos imediatos à esquerda - porque "França" é um conceito ideológico ultrapassado e porque é necessário integrar a gastronomia "de um ponto de vista ecológico e social", porque nem toda a gente ingere queijo, vinho (e logo vinho!) e carne (e logo carne!) e, finalmente, porque essa declaração pode bem ser direitista. E protestos na direita, sobretudo à roda de Macron, que também quer ser tolinha como os "wokes", e diz que não existe gastronomia francesa, mas "gastronomia em França", muito "multicultural". Roussel, o comunista, disse uma verdade elementar: a gastronomia é a alma de um povo, sobretudo um direito dos mais humildes, e deve ser de qualidade e acessível a todos. Que tenha sido atacado pela esquerda "moderna" diz bem de como os grandes combates podem nascer de coisas elementares. Aprendam.
Lauro António, 3 de fevereiro
A adaptação de "Manhã Submersa" traduz um pouco aquilo que Lauro António (1942-2022) pensava do cinema; se se recordam, aquele trecho de "A Força do Destino", de Verdi, é como uma sombra que paira sobre todo o filme - e sobre a sua ideia de cinema. O que sempre me alegrou na forma como Lauro António falava de cinema (apaixonadamente, incessantemente) foi a tentativa de ligar o cinema às suas "coisas favoritas". Uma delas, talvez a mais importante, era a literatura. Um dia gravei com Lauro António um dos programas de TV que mantive sobre bibliotecas pessoais; em sua casa, sobre o Café Vavá, em Alvalade (lugar essencial para a geografia lisboeta da geração do Cinema Novo), todos os espaços tinham sido ocupados por livros. Na altura, havia cassetes de VHS - mas a quantidade de livros era demolidora. A conversa passava de um livro a outro, de uma recordação a outra, de um filme a outro, a sua generosidade deixando sempre abertas as portas para mais memórias. Com ele partiu alguma da nossa ligação emocional e afetiva ao cinema.
Rússia, por Dostoiévski
No "Diário do Escritor" (traduzido por Nina e Filipe Guerra, Relógio d’Água), escrevia Fiódor Dostoiévski: "Mais um confronto com a Europa está de novo em cima da mesa", e "mais uma vez os europeus olham para a Rússia com desconfiança. Aliás, porque haveríamos de procurar a confiança da Europa? Será que alguma vez a Europa olhou os russos com confiança?" Estávamos em 1876, e o autor de "Crime e Castigo" comentava a guerra nos Balcãs contra a Turquia num fragmento em que se queixa de os russos serem vistos "como uns bárbaros que vagueiam pela Europa, muito contentes com a possibilidade de destruirmos alguma coisa em qualquer lado". Dostoiévski é um dos sismógrafos para ler "a alma russa" (o outro seria Tolstoi, mas a sala está cheia de vozes).