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Aos ingleses, valeu-lhes Margaret Tatcher

Um par de sapatos e uma foice à soleira da porta. "Agora quem vai ceifar és tu", ordenava a população ao proprietário da terra. A retaliação era relatada, ao final do dia, na cantina da Cooperativa 25 de Abril, instalada na aldeia da freguesia da Casa Branca, terra de três espigas, um cacho de uvas e um ramo de sobreiro no brasão.

15 de Fevereiro de 2010 às 11:52
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Um par de sapatos e uma foice à soleira da porta. "Agora quem vai ceifar és tu", ordenava a população ao proprietário da terra. A retaliação era relatada, ao final do dia, na cantina da Cooperativa 25 de Abril, instalada na aldeia da freguesia da Casa Branca, terra de três espigas, um cacho de uvas e um ramo de sobreiro no brasão.

Atrás do balcão, José Marcelino Mantas lá ia pensando que até os latifundiários tinham direito a viver e a comer. Com 26 anos, em Outubro de 74, chegou da tropa em Angola, para casar. Combinou com a família Rovisco, da Herdade da Retorta, que teria lá casa onde ficar. Um ano depois, quando deu o nó, já as terras estavam ocupadas. Passou então os anos seguintes ao balcão da cooperativa, a aviar militantes, ocupantes e ocupados. Ali à volta, poucas terras tinham escapado aos ventos da revolução. Mas José Marcelino nunca foi pessoa para gostar de anarquias e se dependesse de si as ocupações teriam sido feitas de outra maneira, "mais ordenada, mais justa".


Mesmo assim, para os lados da Casa Branca, a coisa nem correu muito mal. Não há relatos de violência. "Chegaram, expulsaram o meu sogro e tomaram conta das terras. Entraram pacificamente, não houve confrontos físicos e nunca sequer mexeram na casa da família, para a qual tinham antes trabalhado".


Quem abre hoje as cancelas é Ian Richardson, genro do ex-proprietário britânico Alberto Hugh Reynolds, advogado em Lisboa e já senhor de idade avançada. À Casa Branca, garante o genro, o proprietário ia a cada três semanas. "Não era propriamente um senhorio ausente", afirma Ian Richardson. Mas por esses dias era o povo quem ditava a bitola pela qual a ausência se media.


Na herdade do Mouchão, nos seus 900 hectares à saída da Casa Branca, foi assim instalado o centro da Cooperativa Agrícola 25 de Abril. Havia vinho na adega e cortiça no armazém. A direcção foi assumida pelo tratorista da herdade, na adega continuou o mesmo adegueiro, homem de grande reputação no seu ofício. "Eram todos pessoas conhecidas", recorda Ian Richardson que, enquanto o sogro, via as terras a serem ocupadas, aguentava as rédeas da fábrica que os ingleses da Coats & Clark tinham em Gaia, numa altura em que as firmas estrangeiras "eram os alvos mais fáceis de atacar". Mas tudo se passaria sem sobressaltos. Meses antes, o jovem gestor tinha feito eleger uma comissão de trabalhadores e tinha do seu lado, como advogado da companhia, Francisco Sá Carneiro.



A Sul, Alberto Reynolds tentava encaixar-se na nova geografia agrária. Depois da expropriação de 75, aproveitaria a célebre "Lei Barreto", dois anos depois, para reaver o controle de algumas parcelas de terra. "Depois da experiência que tinha tido e das dificuldades que poderiam advir da gestão das relações, optou por ficar com um terreno florestal, o que não implicava grandes obrigações em termos de pessoal que pudessem resultar em trocas de argumentos sobre, por exemplo, salários", recorda o genro.


O passaporte de nacionalidade britânica ajudou-o a conseguir o resto. Os Reynolds foram a segunda família inglesa ligada ao Alentejo a avançar em tribunal com um processo contra o Estado Português, contestando a expropriação e a perda de lucros inerente à actividade agrícola. A memória já falha, mas Ian Richardson não hesita em reconhecer que a pressão feita pelo governo de Margaret Tatcher foi determinante para que a família recuperasse o que era seu. As terras em 85, e uma indemnização de cerca de 200 mil contos poucos anos depois. Já Alberto Reynolds tinha falecido, já a cooperativa estava em bancarrota. "Fomos um pouco favorecidos pelo facto de sermos estrangeiros", reconhece.


Desde então, partilhas feitas e contas ajustadas com a família, é Ian Richardson e a mulher, Elizabeth, que estão à frente da propriedade. "Não quero dramatizar, mas tivemos que começar do nada", diz. "As vinhas desfeitas" foram replantadas. Do Mouchão saem hoje cerca de 220 mil garrafas de vinho todos os anos. E 30 mil arrobas de cortiça quando é época dela. O negócio dá lucro.



Para trás, garante Ian Richardson, ficam histórias das quais já ninguém fala. E nenhum rancor. "As revoluções têm destas coisas e há que saber contextualizá-las", salienta. Quando tudo terminou, o tratorista voltou a ser amigo da casa. E até recentemente continuavam a trabalhar no Mouchão muitos dos que o tinham ocupado. "Excelentes pessoas", descreve o proprietário. O último a sair, há cerca de dois anos, "era poeta, fazia canções". Resta o filho do adegueiro, que seguiu com mestria as pisadas do pai. E uma barrica de vinho que, discreta na adega, recorda que aquelas terras foram em tempos da "cooprativa" 25 de Abril.


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