Notícia
Apresentamos a menina Tinta Negra
Se há enólogos associados a uma única casta, chegou a hora de entrar no jogo uma mulher: Com um branco, um rosé e um tinto feitos a partir de uma variedade desprezada na Madeira, Diana Silva será a menina Tinta Negra. Ilha, eis a marca que resulta de uma paixão carregada de irracionalidade
Fosse Diana Silva jornalista e os seus camaradas bater-lhe-iam palmas pelo "furo" que sacou; fosse ela artista e estaria na "shortlist" de um prémio qualquer para uma primeira obra. Não é nem uma coisa nem outra, mas, com 33 anos, é bem capaz de ficar na história do vinho na Madeira. E tudo porque, contra os velhos do Restelo, pegou na mais desprezada casta tinta da sua terra para fazer uma trilogia de vinhos, que, logo a partir da primeira colheita 2017, se espalhou pelas cartas dos mais importantes restaurantes do país. Ilha é uma marca a fixar.
A casta Tinta Negra é responsável pela produção de vinhos Madeira de baixa ou mediana qualidade. Como se adaptou bem à ilha e é generosa para o produtor em termos de quantidade, lá continua ao lado do Verdelho, Sercial, Malvasias e Terrantez, as castas responsáveis pelo fantástico vinho Madeira. O que era lógico para uma madeirense que vive no mundo do vinho seria tentar inovar a partir das castas nobres, mas, por razões de fé, meteu-se-lhe na cabeça que a Tinta Negra poderia dar origem a vinhos tranquilos de qualidade e com o selo DOP Madeirense.
Estão a ver aquela imagem cinematográfica de alguém entusiasmado a contar uma ideia original a um amigo que está a beber qualquer coisa e, de imediato, receber como resposta um jorro daquele mesmo líquido e uns olhos esbugalhados? Pois foi o que aconteceu a Diana. Os amigos mais ou menos chegados, produtores de uva, o próprio marido e o seu enólogo João Pedro, na Adega de São Vicente, todos ficaram com a sensação de que a rapariga tinha enlouquecido. Aliás, este último só aceitou participar no projecto ao fim de uma terceira reunião de trabalho.
Se o título de louca pode derrubar projectos à nascença, no caso de Diana funcionou ao contrário: "Quanto mais me diziam que estava louca mais força isso me dava."
Natural da Madeira e desde sempre ligada ao universo do vinho, Diana e o marido Ricardo investiram na marca Ilha tudo o que tinham e não tinham. Diana é quem sonha e Ricardo é quem trata da parte financeira da aventura. De vinhos, este tem a cultura de um leigo. Certo dia, estavam os vinhos na fase escondida da sua evolução, Diana levou o marido à adega para umas provas de cuba. "Naquela altura, este rosé que agora estamos a provar e que tem notas de fruta e cor rosada era pouco mais do que água sem aroma algum. Ele, com o copo na mão e depois de ter cheirado o vinho várias vezes, levantou um sobrolho mais do que outro, pôs um ar grave e disse: 'Olha lá, foi para isto que me arrastaste?"
Atendendo a que os preconceitos, as adversidades ou a natural evolução tumultuosa dos vinhos não a demoveram, hoje podemos sentir vinhos invulgares, atractivos, desafiantes, gastronómicos e que espelham muito bem o conceito de terroir, quer no que diz respeito à casta e clima, quer - acima de tudo - no que tem que ver com a vasta dimensão humana da aventura. E vasta porque, ao contrário do que acontece noutros projectos, Diana Silva insiste em dizer que os vinhos Ilha não existiriam sem gente como o produtor de uvas Samuel Freitas (seu fornecedor, que está a mudar processos de trabalho nas vinhas) ou o enólogo João Pedro. Fica muito bem a um produtor valorizar quem passa um ano inteiro a tratar de vinhas muito difíceis para que, em Setembro, dê frutos sãos.
De resto, na apresentação dos vinhos que decorreu na semana passada na Madeira, Diana Silva fez questão de mostrar outros vinhos tranquilos madeirenses, além, claro, de vinhos Madeira de sonho da empresa Blandy's. As criações gastronómicas do restaurante Caravela (é obrigatório provar os "linhetes" e as ovas de peixe espada) e a ventresca de atum tratada por essa personagem peculiar que é o chefe António, do restaurante À vista d'António, no Caniço, foram outros momentos da festa.
Donde, da Tinta Negra temos um blanc de noirs (branco feito a partir de uvas tintas) que, contido nesta fase, evoluirá bem com tempo. Não entrando pelo registo da expressão aromática (a ideia é mesmo essa), a boca tem volume, secura e equilíbrio entre acidez, estrutura e álcool.
Sem os frutados açucarados da praxe, o rosé tem notas delicadas de romã, ginja e framboesa. Na boca, seriedade e austeridade. Vinhos que ficarão bem em garrafas magnum.
Por fim, aquele que, nesta fase, é o vinho mais desafiante da trilogia: o tinto. Para quem gosta de vinhos carregados e explosivos de aroma, o melhor é poupar os €20, mas quem gostar de certas coisas que se fazem na Borgonha com uma casta famosa, pois faça o favor de se servir. Não estou com isso a dizer que estamos perante um Pinot Noir - isso seria burrice -, mas estamos perante um vinho com aromas de frutos vermelhos, romã, notas vegetais e cheiro a bosque, com uma boca fina, elegante, sedosa, sem o peso do álcool e mesmo a pedir comida. Guloso que se farta. Isto é uma ideia minha, mas nada como provar os três Ilha de seguida e tirar as devidas conclusões.