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Um homem e a sua solidão

O último livro de Sam Shepard é quase um repositório da sua fantástica vida como observador das emoções e das atitudes dos seres humanos. E um encontro com a solidão.

04 de Agosto de 2018 às 17:00
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Sam Shepard
Espião na Primeira Pessoa
Quetzal, 100 páginas, 2018

Este é um livro de observação dorida. Um narrador que não sabemos quem é, confinado por razões de saúde a uma cadeira, vai-nos descrevendo os seus dias e memórias, enquanto come, come queijo, lê ou simplesmente vê as diferentes variedades de pássaros que esvoaçam defronte dos seus olhos. Os visitantes (familiares, sobretudo) chegam e vão vendo o evoluir da sua saúde e escutam as suas histórias. Algumas são reflexo da realidade, outras são pura ficção. Ao mesmo tempo o narrador vai reforçando a ideia de que está a ser observado por alguém que não identifica. É uma narrativa muito intimista: "Há alturas em que não posso deixar de pensar no passado. Sei que o presente é o lugar para se estar. Foi sempre o lugar para se estar. Sei que me foi recomendado por pessoas muito sensatas que permanecesse no presente o mais possível, mas o passado apresenta-se. O passado não vem como um todo. Vem sempre em partes." Mas questiona-se: "Há alguma maneira de curar o presente?"

Sam Shepard, o autor desta poderosa obra, escreveu-a nos seus últimos dias de vida, em 2017. Tudo feito com a ajuda de Patti Smith, amiga (e amante, em tempos), que o ia escutando e escrevendo aquilo que ele já não conseguia fazer. E que sempre tinha feito com uma mestria absoluta: escrever, descrevendo o que ia observando nos outros seres humanos. Por isso foi um dramaturgo incontornável. Muito desse olhar clínico está aqui reflectido. Sam Shepard escreve também aqui sobre esse mundo de fronteira onde sempre viveu e que agora volta a ser determinante nos Estados Unidos: "Agora no zocalo da cidadezinha perdida do Norte da Califórnia, onde os trabalhadores migrantes estão à espera nas esquinas, escondendo-se de soldados de fardas escuras. Soldados à espreita entre os arbustos. Garantindo que o nome do presidente não seja dito em vão. Garantindo que não haja planos sussurrados para derrubar os interesses imobiliários. Para derrubar os bancos. Ouvindo atentamente os verbos espanhóis que são falados pelos imigrantes à esquina. Esquecendo-se de conjugar. Quem dera que tivessem acabado a escola primária. (…) Há camiões carregados de homens mascarados que procuram todo o tipo de imigrantes. Que procuram inimigos do povo nas traseiras dos cafés. Nas traseiras das sapatarias. Nas traseiras das adegas. Telefonam aos patrões. Dizem aos patrões que no pequeno zocalo desta cidadezinha tudo está calmo e em paz."

Há aqui uma linguagem poética muito musculada. Sam Shepard diz adeus à sua própria vida através de um olhar inclemente sobre tudo o que o fascinou durante décadas na Terra. Há aqui uma espécie de peça teatral: personagens que se espiam demasiado próximas, num território familiar ao autor, o deserto, a terra dos Apaches, com olhar para o México de Pancho Villa e para o local onde este encontrou a sua morte e para o desconforto da fronteira com os EUA. Falecido em Julho de 2017, Sam Shepard deixou-nos aqui um último olhar sobre o mundo que o rodeava. E que estava a mudar. Porque este livro é também sobre uma América em grande mutação. E sobre um futuro optimista em que ele acreditava.

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