Notícia
Os labirintos da memória
Quase três décadas depois de ter escrito o celebrado “O Inverno em Lisboa”, Muñoz Molina regressa a esse mundo e cruza memórias e olhares sobre a capital portuguesa e o assassino de Luther King.
Antonio Muñoz Molina
Como a Sombra Que Passa
Ponto de Fuga
429 páginas, 2018
Alguma da melhor ficção encontra a sua fonte da juventude na realidade. Dissolve-a e dá-lhe asas rumo ao céu da imaginação. Foi isso que Antonio Muñoz Molina fez a partir de um momento determinante na história americana. A 4 de Abril de 1968, cinco anos depois do assassinato de John F. Kennedy, o líder negro Martin Luther King é abatido por um homem branco, racista, que vem do Sul dos EUA para cumprir a sua missão. Chama-se James Earl Ray e acaba por fugir. Muda de identidade e acaba por passar um curto período de tempo em Lisboa. É aqui que começam os cruzamentos com o autor Antonio Muñoz Molina.
Em 1987, ele era um jovem funcionário da Câmara de Granada e decide fazer uma pequena viagem à capital portuguesa para terminar o romance que está a escrever e que se chamará "O Inverno em Lisboa". Livro que o lançaria para uma carreira de sucesso como escritor. Tudo isto se cruza e acaba por ser a base deste "Como a Sombra que Passa". Aqui recorda-se do passado a partir de três pontos de vista diferentes: o de Earl Ray, o do jovem Molina de 1987 e o do escritor de hoje. São três memórias que funcionam como mundos paralelos a nível da ficção. Tocam-se e afugentam-se. Cruzam-se e dissolvem-se.
Está aqui quase tudo neste labirinto de memórias: "Sou aquele que recorda, quase vinte e sete anos depois, aquela manhã de janeiro, e sou e não sou o homem jovem recém-chegado a Lisboa com um saco de viagem e um casaco de inverno que está parado na escadaria da Praça do Comércio, a uns passos das ondas débeis que golpeiam os degraus e retrocedem como se resvalassem na pedra muito polida, esverdeada, coberta de algas."
Muito mais do que fazer um exercício de memórias, Muñoz Molina transfere este exercício criativo para um contexto onde ele próprio reflecte sobre a ficção e sobre as formas como se criam novelas. O passado e o presente são contados como se fossem vividos por pessoas diferentes e este é um dos grandes desafios que o autor nos traz e que nos atrai. Muñoz Molina tem aqui um prazer quase de arqueólogo, como se fosse alguém que voltasse a visitar um templo que tinha visto pela primeira vez há quase três décadas. E que, depois, tinha sido deixado em paz. O escritor navega no meio do nevoeiro ficcional que o fascinou quando escreveu "O inverno em Lisboa": uns EUA que, na década de 60 do século passado, viveram entre a realidade e a ficção com as mortes dos Kennedy e Luther King e com o FBI de Edgar Hoover como pano de fundo. Onde todas as conspirações têm terreno para andar.
Esta é também uma forma de se reencontrar com Lisboa: "Fecha as portadas da janela, corre a cortina, não acendas a luz. Do interior desta penumbra, Lisboa é um rumor de cidade distante. Não sabia praticamente nada acerca da vida ou do desejo ou da passagem do tempo da primeira vez que cá estive. Escrevia por ouvir dizer." Agora não é assim. A capital portuguesa é a zona central deste livro, que navega por Memphis ou Granada, em busca de um sentido para a realidade e para a ficção. É um ajuste de contas com a história. E com a própria vida de Muñoz Molina.
Como a Sombra Que Passa
Ponto de Fuga
429 páginas, 2018
Alguma da melhor ficção encontra a sua fonte da juventude na realidade. Dissolve-a e dá-lhe asas rumo ao céu da imaginação. Foi isso que Antonio Muñoz Molina fez a partir de um momento determinante na história americana. A 4 de Abril de 1968, cinco anos depois do assassinato de John F. Kennedy, o líder negro Martin Luther King é abatido por um homem branco, racista, que vem do Sul dos EUA para cumprir a sua missão. Chama-se James Earl Ray e acaba por fugir. Muda de identidade e acaba por passar um curto período de tempo em Lisboa. É aqui que começam os cruzamentos com o autor Antonio Muñoz Molina.
Está aqui quase tudo neste labirinto de memórias: "Sou aquele que recorda, quase vinte e sete anos depois, aquela manhã de janeiro, e sou e não sou o homem jovem recém-chegado a Lisboa com um saco de viagem e um casaco de inverno que está parado na escadaria da Praça do Comércio, a uns passos das ondas débeis que golpeiam os degraus e retrocedem como se resvalassem na pedra muito polida, esverdeada, coberta de algas."
Muito mais do que fazer um exercício de memórias, Muñoz Molina transfere este exercício criativo para um contexto onde ele próprio reflecte sobre a ficção e sobre as formas como se criam novelas. O passado e o presente são contados como se fossem vividos por pessoas diferentes e este é um dos grandes desafios que o autor nos traz e que nos atrai. Muñoz Molina tem aqui um prazer quase de arqueólogo, como se fosse alguém que voltasse a visitar um templo que tinha visto pela primeira vez há quase três décadas. E que, depois, tinha sido deixado em paz. O escritor navega no meio do nevoeiro ficcional que o fascinou quando escreveu "O inverno em Lisboa": uns EUA que, na década de 60 do século passado, viveram entre a realidade e a ficção com as mortes dos Kennedy e Luther King e com o FBI de Edgar Hoover como pano de fundo. Onde todas as conspirações têm terreno para andar.
Esta é também uma forma de se reencontrar com Lisboa: "Fecha as portadas da janela, corre a cortina, não acendas a luz. Do interior desta penumbra, Lisboa é um rumor de cidade distante. Não sabia praticamente nada acerca da vida ou do desejo ou da passagem do tempo da primeira vez que cá estive. Escrevia por ouvir dizer." Agora não é assim. A capital portuguesa é a zona central deste livro, que navega por Memphis ou Granada, em busca de um sentido para a realidade e para a ficção. É um ajuste de contas com a história. E com a própria vida de Muñoz Molina.