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O universo à volta dos golos de Eusébio

Eusébio é o centro da bela história que o regressado Manuel Rui nos conta. Entre o sonho da glória e o desencanto que o futebol permite, há uma Angola em busca da sua liberdade e destino.

25 de Fevereiro de 2017 às 12:15
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Manuel Rui
O Kaputo camionista e Eusébio
Guerra & Paz,
119 páginas, 2017

Eusébio mostrou como o futebol não tem fronteiras. Nem rectângulos de relva onde fique sitiado. Não tem raça e se algumas vezes tem ideologia é porque alguns governantes sonham que a glória dos golos se transfira para eles. Manuel Rui, o autor do maravilhoso "Quem Me Dera Ser Onda", que se tornou um verdadeiro símbolo da literatura angolana pós-independência, regressa ao passado e transfere-nos para uma viagem de camião sem auto-rádio, no dia 23 de Julho de 1966.

Portugal joga com a Coreia do Norte, num jogo que fez tremer até os corações mais frios. Saímos do Lubango, a Sá da Bandeira do tempo colonial, com Botija ao volante e Tó-Tó como o pendura a quem deu uma boleia. Botija está desejoso de saber o resultado do jogo e desespera para chegar a um local onde haja um rádio. E isso, ao longo da viagem, vai servindo para que falem do seu próprio mundo, da Angola desses dias, das diferentes raças e dos sonhos que cruzam as suas vidas.

A conversa é delirante, mas cheia de ideias fortes. Diz Tó-Tó: "O Peyroteu que foi daqui para o Sporting em Portugal até deu direito ao verbo peirotear. Era branco. Como o Costa Pereira de Moçambique ou o Águas daqui de Benguela e tantos outros, negros, mestiços ou brancos ou como tu arraçado, pois sabes que houve uma altura, não sei em que reinado foi, que Lisboa se encheu de negros que se misturaram por lá". E responde Botija: "Tens razão e é bom aprender. Eu a insultar o Gungunhana por ter defendido a sua terra e amanhã, se puder, levo o Eusébio às costas, porque ele une as pessoas, até nós os dois, parece que nos conhecemos faz mais de cem anos só por causa do Eusébio."

A viagem decorre e os sentimentos interiores dos dois vão transparecendo, incluindo naquilo que Tó-Tó vai escrevendo para a sua apaixonada. No fim Tó-Tó pensa: "Querida, é um mistério poderoso o futebol. E o Eusébio ainda mais, mexe com os corações, troca as ideias e os fusos horários e revela este Botija. Amor, nunca serei capaz de te contar esta viagem. Só me resta pedir a alguém, pedir a alguém que a escreva para que tu a possas ler." Foi isso que fez Manuel Rui, de forma soberba.

Estamos aqui a falar de futebol, de Eusébio, do fascínio dos adeptos, do nervoso miudinho de quando não se sabe um resultado, da erupção de sentimentos quando se ganha. Mas, por trás disso, há uma Angola em guerra. É tudo isso que Manuel Rui faz transparecer através de uma viagem estrada fora mas que é também um jogo de opiniões cheias de dribles, de controlo da bola das emoções, de defesas de ideias que não estão solidificadas. E que se estilhaçam porque o futebol e Eusébio unem o que parece impossível de poder juntar.

"O Kaputo camionista e Eusébio" é um conto poderoso sobre um tempo em que Angola vivia sobre brasas, em que uma guerra punha frente a frente povos que desejavam a sua própria libertação e estavam ali, lutando, destroçando-se. Eusébio une, naquela estrada, duas formas de olhar para Angola, mas que, no fundo, tinham mais pontos em comum do que poderia parecer à primeira vista.


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