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Memórias dolorosas

O escritor espanhol Javier Cercas regressa aos tempos da Guerra Civil e recorda a participação do seu tio-avô ao lado dos falangistas de Franco. Uma forma de compreender as decisões humanas.

14 de Outubro de 2017 às 09:15
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Javier Cercas
O Monarca das Sombras
Assírio & Alvim,
246 páginas, 2017


Ajustar contas com o passado e assim fazer uma reconciliação com as memórias do seu tio-avô Manuel Mena (que aos 17 anos, quando começou a guerra civil espanhola, se alistou nos exércitos de Franco). Mena escolheu o lado errado do sangrento conflito e isso pesa na vida de uma família e, claro, no de um escritor como Javier Cercas.

Este livro acaba por ser ainda mais contundente numa altura em que nos defrontamos com a fragmentação da sociedade espanhola por causa do conflito catalão. Por isso, "O Monarca das Sombras" é um livro fascinante, até porque é uma história muito incómoda que contamina os pensamentos íntimos do autor. Entre a ficção e a história real e o mito e a realidade, defrontamo-nos com uma história onde se testam os limites éticos de cada decisão, sobretudo nos momentos em que a sociedade parece desabar à nossa volta. E como, por vezes, se escolhe o lado errado da história.

O livro tem uma epígrafe: "Dulce et decorum est pro pátria mori" ("é doce e honroso morrer pela pátria"). Muitas vezes, esse princípio intoxica as pessoas, nesse mundo pantanoso onde se cruzam nacionalismo e patriotismo e onde o fascismo acabou por conseguir levar atrás de si milhões de almas. Manuel Mena é uma vítima disso: crê na glória e acaba por se afundar num inferno total. E isso levanta uma das questões centrais que atravessa o livro de Javier Cercas: deve alguém dar a sua vida por valores em que acredita? Isso também se cruza com outro dos dilemas do presente (a lógica suicidária dos terroristas islâmicos), e é por isso que, centrando-se no contexto da guerra civil espanhola, este livro tem um alcance muito maior.

Cercas não tenta justificar o que fez o seu antepassado: procura compreendê-lo. Para que, talvez, não se voltem a cometer os mesmos erros. Mas o certo é que a história está sempre a repetir-se como farsa. A razão histórica diz-nos que os republicanos espanhóis estavam do lado certo, mas isso na altura era irrelevante. Os familiares de Cercas equivocaram-se e isso revelou-se um erro muito grave. Mas, ao mesmo tempo, o livro alerta-nos para o outro lado da verdade, ou o que ela esconde: do lado republicano também se cometeram terríveis atrocidades (contra religiosos, outras feitas pelos comunistas contra os anarquistas, muitas vezes a sangue frio). A razão política perde-se aí no confronto com a razão moral.

Para Cercas, a grande protagonista da novela é a sua própria mãe, que lhe legou um enigma que tinha que ver com a sua família. Ou seja, a adesão desta ao franquismo, algo que é incómodo para o próprio Cercas. É uma herança violenta e Cercas carrega-a. Mas este livro liberta-o. Porque ele coloca questões essenciais sobre o passado enigmático que muitos de nós transportamos, até porque algum deve ser sanguento ou imoral. Uma história íntima transforma-se assim em algo que fica à vista de todos.

Perceber o que fez a sua própria família durante a guerra civil não é propriamente uma actividade fácil. Porque o autor teve de se confrontar com o passado que, em parte, desconhecia e também porque, no presente, muitos acabariam por julgá-lo à custa do que tinha acontecido. Entre a memória e a história, há muitas entrelinhas que Cercas consegue aqui trazer para a luz com algum sofrimento, como é óbvio. E é isso que torna este livro tão atraente.

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