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Viver num campo de refugiados: uma experiência na primeira pessoa

Lugares como Kakuma, no Quénia, mudam a nossa apreensão do mundo e dos refugiados. Um dia, eles tiveram um país, uma casa a que chamavam sua. A loucura da guerra fez deles prisioneiros sem culpa formada, numa prisão a céu aberto.

Miguel Baltazar
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O campo de refugiados de Kakuma é uma cidade com cerca de 180 mil pessoas de 20 nacionalidades. É também o sítio mais extraordinário onde vivi em toda a minha vida. A cidade cresce todos dias.

Vista da janela do Dash que me transportou de Nairobi - e que chocalhava como um brinquedo de criança - é um rio brilhante de coberturas de zinco, embutido num território árido, calcinado. As najas e os escorpiões não estão dentro de terrários.

Aterro e percebo logo que estou numa coisa muito rara. A pista é de terra e cascalho, o ar é quase irrespirável de quente. Aprenderei que será assim dia e noite, sem trégua. Quarenta graus durante o dia, nunca menos de trinta quando o sol se põe. Todo o ano.

O único avião na pista é o do WFP que traz os "humanitários".

Do outro lado da vedação, crianças de hidjabs cor de festa - amarelo-caril, vermelho-intenso, azul-gerânio - e pés descalços, pastores Turkana.

A memória é um coisa estranha. Olho-lhes as pernas e penso nos Skinnies, o nome que os Marines davam aos meninos soldados somalis, um nome que os fazia parecer doces e inocentes como um cappuccino no Starbucks, o que não eram. Eram meninos que mastigavam quat, importado do Quénia, e traziam a tiracolo Kalashnikovs. Nobody's Children. De alguma forma, as crianças e adultos com quem me cruzarei também o são.


O campo de refugiados surgiu em 1991 para acolher 12 mil menores não acompanhados que fugiam da guerra do Sudão, uma das mais longas e sangrentas do continente.


O campo de refugiados surgiu em 1991 para acolher 12 mil menores não acompanhados que fugiam da guerra do Sudão, uma das mais longas e sangrentas do continente. Depois dos sudaneses, chegaram somalis, etíopes, burundis, congolenses, ugandeses, eritreus.

Para muitos europeus da minha idade, a Bósnia é a guerra da nossa geração. Misha Glenny explicou este fascínio. "É no centro da Bósnia que o Este encontra o Oeste; o Islão encontra o Cristianismo; os católicos olham nos olhos os ortodoxos (…); a Bósnia dividiu o Império austro-húngaro e o de Constantinopla (…), é um paradigma de vida pacífica e em comum nos Balcãs e em simultâneo a sua mais tenebrosa antítese".

Depois de Sarajevo, a poucas horas de avião de Lisboa ou Berlim, e das imagens de poetas a queimar livros para não morrer de frio, de crianças a brincar na neve apesar dos morteiros, ou de mulheres abatidas, porque sim, por "snipers" enquanto lavavam a louça, parece não haver lugar para outras guerras.

Poucos europeus terão uma imagem das pilhas de corpos na beira das estradas africanas, alguns nus, os das mulheres violadas por homens e por baionetas, saberão que cor tem o vomitado durante uma epidemia de cólera, como se consola uma escrava sexual ou se remenda a alma de uma criança soldado.

Escrevi no meu Facebook que há realidades que só a ficção suporta, o território do sofrimento a desbravar é maior do que aquele que a maioria de nós consegue encarar. Estalam a alma.

Essa é uma das caras de Kakuma: o desprovimento, o calor impiedoso que torna a roupa numa segunda pele húmida, as cicatrizes da guerra, as crianças descalças (não apenas de sapatos, também de direitos).

Depois há a outra cara deste lugar no fim do mundo: a solidariedade comovente da pobreza, a esperança quase insana, o valor sagrado do conhecimento, da educação e a alegria que não deserta.

Lugares como Kakuma mudam a nossa apreensão do mundo e dos refugiados. Um dia, eles tiveram um país, uma casa a que chamavam sua. A loucura da guerra fez deles prisioneiros sem culpa formada, numa prisão a céu aberto. Os melhores, os que têm mais sorte, os que corromperam alguém conseguem o livre passe para dignidade. Aos outros, aos invisíveis, resta a força do desespero e o consolo da paz.

"Acredito que só alcançamos o extraordinário do que somos ao sermos capazes de alcançar o extraordinário que é o outro", escreveu Eliane Brum. É uma frase que devia fazer parte da cartilha de todas as escolas.

Em frente ao edifício onde trabalho, estou a formar jornalistas refugiados, em Kakuma 4 - o campo está dividido em quatro, que se subdividem em blocos, como em qualquer cidade -, fica uma escola. Hope. Esperança.


Pela manhã algumas crianças vêm ter comigo. Estendem-me a mão. E tocam-me, por vezes com força, nos braços, como se quisessem ter a certeza que eu existo. E sorriem, sorriem muito. Pedem-me quase sempre que lhes tire uma fotografia. Que lhes mostre a fotografia.

Há meninos que trazem no olhar uma tristeza daquelas sem fundo, impenetrável. A alegria é um lugar distante.

Pela manhã, quando viajo no jipe de Kakuma 1, onde durmo, até Kakuma 4, onde trabalho, os meninos sorriem e gritam "how are you teacher"? Estou em casa.

Mais de metade da população do campo são crianças. Um destes dias entrevistei uma mulher do Burundi - as mulheres aqui tentam melhorar o que chega à mesa fazendo alguns pequenos biscates, costurando, fazendo chapati ou biscoitos - na sua "loja". Perguntei quantos filhos tinha. Respondeu "nasceram-me quatro, tenho três. A minha filha mais velha foi raptada aqui no campo há uns meses, nunca mais a vi". "Quantos anos tinha?". "12".

Antes da noite cair em Kakuma, e do recolher obrigatório, há tempo para um café. Preciso: um macchiato etíope. Estou num "hotel" de nome Unity, com várias salas onde se serve bom café. O chão é de terra batida e está limpíssimo, tal como o interior. A maioria das salas está ocupada por homens a beber café, como em qualquer café português e a ver televisão. O macchiato é invertido. O café fica em cima e o leite (em pó) em baixo, ao contrário do que tomamos nas nossas geografias confortáveis. O macchiato é talvez a melhor metáfora para este mundo. Do avesso.


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