Notícia
Venezuela: Um dia, haveremos de voltar
Os portugueses e luso-descendentes que deixaram a Venezuela chegam a Portugal de coração partido e com memórias que querem esquecer. A escalada de violência, juntamente com a falta de alimentos e medicamentos, ditaram a decisão de partir. Mas muitos querem voltar assim que for possível.
"O mais triste é que se perdeu uma geração." O desabafo é de Oliver Gil, um venezuelano que vive em Portugal há dois anos com a mulher, uma luso-descendente. Conversámos sobre o seu país numa tarde de calor com o Tejo mesmo ali ao lado. O empresário lançou há um ano o conceito de "street food", o Mister Tapas, e tem uma Piaggio APE 50 a servir refeições perto do Padrão dos Descobrimentos. Oliver traça um retrato negro do seu país e diz que já praticamente não tem amigos em Caracas, onde vivia. "Todas as pessoas que têm alguma possibilidade de sair estão a sair", afirma. O destino dos seus amigos mais próximos foi Miami, Panamá, Madrid, Barcelona, Londres e Austrália. A sua geração, pessoas entre os 28 e os 40 anos, que têm formação, "know-how", experiência, "praticamente todos decidimos sair", diz com tristeza.
A decisão de vir viver para Lisboa teve um único motivo. Ele e a mulher queriam ser pais e não pretendiam criar os filhos num ambiente onde reina a insegurança. Nunca lhes faltou comida ou medicamentos porque tinham uma vida financeira estável na Venezuela e viajavam muito. "O que faltava comprávamos fora", diz. Na Venezuela, ele era um empresário de sucesso. A empresa de produção de eventos que criou há dez anos cresceu e chegou a dar emprego a 30 pessoas de forma directa e a 150 "freelancers". O negócio permitia-lhe ter "uma boa qualidade de vida". Mas, na Venezuela, quem tem dinheiro é um alvo apetecível para sequestros. O casal tem familiares que passaram por essa experiência traumática. E isso, sublinha, "deixa feridas para a vida toda". Pensaram que "seria só uma questão de tempo" até lhes acontecer o mesmo. "Era um risco que não estávamos dispostos a correr."
Em 2014, o casal veio para Lisboa durante dois meses para estudar português. Sabiam que se não dominassem a língua não conseguiriam criar um negócio em Portugal. No Verão de 2015, mudaram-se definitivamente para a capital. Oliver entrou como sócio na ProDJ, uma academia de formação de música electrónica, para desenvolver a área de produção de eventos. Um ano depois lançou-se no negócio de "street food" e já está a preparar uma nova empresa de audiovisuais, uma área em que também trabalhava na Venezuela. Ao mesmo tempo, está a estudar Gestão na Universidade Católica. O tão desejado filho já está a caminho. Nasce no início de Julho.
Desde que se mudou para Lisboa, o empresário já voltou à Venezuela três vezes. De cada vez que vai lá encontra um cenário pior. A última viagem foi em Julho de 2016. "Fiquei horrorizado. A necessidade fez com que os valores das pessoas não sejam os melhores. É uma tristeza." Oliver fica chocado com a fome que as pessoas estão a passar. Especialmente porque se sabe que "há contentores cheios de comida que se está a estragar. Não a entregam." Para ele, é incompreensível que, num país "petrolero", as pessoas estejam a passar fome. "É uma corrupção desmedida", afirma.
Por isso, explica, os confrontos nas ruas são um acto de desespero. "Há pessoas que estavam há três dias sem comer, pessoas cuja mãe morreu no hospital à espera que chegasse um medicamento tão simples como a penicilina." E depois, diz, "é importante perceber que quando dizemos que falta comida, não falamos de azeite. Não há leite, não há massas. Pão é um luxo!" Há um ano, quando voltou a Caracas, levou uma mala de 23 quilos cheia de medicamentos para a família. E pediram-lhe latas de feijão. Algo que sempre tinha havido à mesa com fartura. "Quando servimos feijão ao jantar para cerca de dez pessoas, houve emoção, parecia que estavam a comer lagosta!"
O que as pessoas estão a dizer nas ruas é: "Chega! Já se ultrapassaram os limites todos", afirma o empresário. Explica que, neste momento, as pessoas que vivem na Venezuela não têm garantias de nada. Não sabem se chegam a casa e têm luz, podem sair à rua e ser mortas. Se ficarem doentes, não há medicamentos nos hospitais públicos nem privados. E os supermercados estão vazios. Oliver está preocupado com a mãe que ainda está na Venezuela. Quer trazê-la para Lisboa. E tem um argumento forte. O neto.
Um país mergulhado no caos
Há mais de dois meses que os protestos nas ruas de Caracas contra o Governo de Nicolás Maduro não param. E têm vindo a tornar-se cada vez mais violentos. Os últimos dados conhecidos apontam para cerca de 70 mortos nos confrontos entre manifestantes e forças de segurança. As autoridades usam gás lacrimogéneo para dispersar a multidão e balas de borracha. Mas a onda de protestos não pára. Já foram presas mais de mil pessoas que estavam nas manifestações. "Quem está a morrer são jovens, miúdos", diz Oliver Gil. "São pessoas de 18, 19, 20 anos que são estudantes, músicos." E, diz sem hesitação, "Maduro tem sangue nas suas mãos". Por isso, "não há hipótese de sair a bem" desta crise política.
Ysmiley Lourenço já não consegue ver as notícias. "Tenho de desligar, senão dou em louca." É pelas redes sociais que vai sabendo o que se passa na sua Venezuela. Os relatos de fome e subnutrição de crianças deixam-na abatida. Custa-lhe ver o que está a acontecer e não poder fazer nada. Está em Portugal há dez anos. É filha de pais portugueses. A mãe é da ilha da Madeira e o pai da zona de Coimbra. Veio para Lisboa com o marido, venezuelano, já licenciada em Farmácia. Aqui fez uma pós-graduação e tentou trabalhar na sua área de formação. Mas teve tantas dificuldades que acabou por desistir.
Há dois anos, abriu um restaurante de comida venezuelana na Estrada de Benfica, o Aripo, que entre outros pratos serve as tradicionais "arepas", uma espécie de pão achatado que é aberto e recheado com vários ingredientes. O estabelecimento é ponto de encontro de muitas pessoas que vieram da Venezuela e que ali matam saudades dos sabores da sua terra. As paredes brancas estão salpicadas com quadros cheios de cor que representam paisagens venezuelanas, e também lá está a bandeira do país.
"As pessoas que chegam [da Venezuela] estão muito tristes", diz Ysmiley. As conversas no restaurante vão sempre tocar na situação do país, até porque muitas pessoas ainda têm família e amigos lá. "Não há medicamentos, nem paracetamol para uma dor de cabeça. Só se consegue através dos amigos, que vão passando informação de onde encontraram medicamentos." Normalmente é no mercado negro que os conseguem comprar, a preços muito mais altos. À entrada do restaurante está uma caixa grande de papelão em cima de uma mesa, com a indicação de que serve para recolha de medicamentos, e em cima do balcão há uma pequena caixa redonda para recolher donativos em dinheiro para o mesmo fim - fazer chegar medicamentos à Venezuela.
Ysmiley Lourenço faz parte da Venexos, uma organização não governamental que apoia quem chega a Portugal vindo daquele país da América Latina. A associação está a enviar os medicamentos em pequenas quantidades para não serem retidos pelas autoridades e chegarem às mãos certas. "Se for de uma forma muito divulgada, são apanhados à entrada, no aeroporto, e não chegam às instituições. Porque a posição do Governo venezuelano é a de não admitir qualquer tipo de problema ou de crise humana no país", explica.
Os pais da empresária chegaram há dois anos a Lisboa. Ainda se estão a adaptar à nova vida. Tinham um negócio de mecânica automóvel em Guarenas, uma cidade nos arredores de Caracas. Agora dão uma ajuda no restaurante. Ysmiley conta que há dez anos decidiu sair da Venezuela porque percebeu que "não tinha grande futuro" no país. "Mesmo tendo trabalho, eu não via como poderia sair de casa dos meus pais, ter a minha casa, ter o meu carro."
Nessa altura, já existia insegurança e falta de alimentos. "Era um drama. Lembro-me de andar atrás do camião do leite para ver onde ia parar para poder comprar. E a venda era controlada. Um litro ou dois por pessoa. Depois foi rodando. Apareceu o leite, mas desapareceu o frango. Aparecia uma coisa, desaparecia outra." A situação piorou ao longo dos anos.
Agora, aqui em Lisboa, o seu negócio corre "mais ou menos". Os portugueses não conhecem a gastronomia venezuelana. "Perguntam o que são [as arepas] e fazem associação com a comida mexicana, querem saber se é picante."
Vidas em suspenso
Ysmiley esteve pela última vez na Venezuela há quatro anos. "Tive muito medo", diz. A insegurança fez com que não conseguisse sair, "nem para fazer compras". O pavor dos raptos é algo que está sempre bem presente. "Acontecem muito e, nos últimos tempos, acabam em morte de certeza. Mesmo que paguem [o resgate]. Matam as pessoas porque sim." Conta que um ex-colega morreu há um ano, quando lhe roubaram o carro.
A empresária diz que a Venexos está a receber muitos "pedidos de ajuda de pessoas que ainda estão na Venezuela e que querem vir para Portugal". Algumas nem estão ligadas à comunidade portuguesa. Muitos dos que estão a chegar ao nosso país têm formação superior. São advogados, médicos, enfermeiros, farmacêuticos, informáticos. E vão sobretudo para a Madeira, de onde é oriunda 80% da comunidade portuguesa na Venezuela. Mas também se está a formar uma comunidade na região de Aveiro e em Lisboa. Entre as pessoas que entram no restaurante de Ysmiley, o sentimento mais forte é o de que "é uma situação temporária, que vão voltar." Não querem sair da Venezuela de forma definitiva. Mesmo os mais novos. Se as coisas mudarem "querem reconstruir o país, querem estar lá."
Sérgio Marques, secretário regional de Assuntos Parlamentares e Europeus, esteve recentemente numa visita oficial à Venezuela, juntamente com o secretário de Estado das Comunidades, José Luís Carneiro. Nos contactos com a comunidade portuguesa, percebeu que a primeira geração de emigrantes - que construíram a sua vida no país, que têm a sua casa, os seus negócios - tem a ideia de lá ficar. Querem "resistir, aguentar, com a esperança de que a situação possa mudar no curto, médio prazo", diz aquele responsável. Mas, na segunda e terceira gerações, "temos assistido a uma debandada" para países como Panamá, Costa Rica, Estados Unidos e Canadá.
Segundo as autoridades da Madeira, nos últimos seis meses, terão chegado à região entre três mil e quatro mil pessoas vindas da Venezuela.
"As pessoas que estão a chegar à Madeira constituem uma minoria daquelas que estão a sair da Venezuela. Ainda que, em termos absolutos, para a Madeira seja já um número muito significativo", admite Sérgio Marques. Não há números oficiais, mas o Governo Regional da Madeira estima que tenham entrado na ilha, nos últimos seis meses, entre três mil e quatro mil portugueses e luso-descendentes. Esta contabilidade é feita com base nos cruzamentos de informação da Segurança Social, Instituto de Habitação e outros serviços a que estas pessoas se dirigem.
"Cerca de mil pessoas estão já inscritas no centro de emprego da região autónoma da Madeira e contabilizámos cerca de 100 pedidos de ajuda em termos de habitação", refere. Uma questão que o Governo Regional terá dificuldade em resolver, tendo em conta que ainda tem pendentes situações de famílias atingidas pelos incêndios na Madeira, em Agosto de 2016.
Outra questão que está a preocupar as autoridades portuguesas é a integração destas pessoas no mercado de trabalho. Muitas não falam português e precisam de formação em inglês para poderem trabalhar no sector do turismo, a principal actividade na Madeira. Além disso, "há problemas no reconhecimento dos títulos académicos", afirma Sérgio Marques. "Temos neste momento [na Madeira] um grupo de oito médicos muito qualificados da Venezuela que estão numa situação de inactividade por causa destas questões burocráticas", conta. Para o secretário regional, é preciso "agilizar procedimentos" nas universidades, que são as entidades responsáveis pelo reconhecimento destes títulos académicos. As instituições de ensino superior "têm procedimentos muito burocráticos e muito longos para dar resposta a estas situações" e, sublinha, "têm de perceber que, numa situação excepcional como esta que vivemos, devem tratar todos estes assuntos com uma agilidade fora do normal."
O Governo da Região Autónoma da Madeira e a Secretaria de Estado das Comunidades, em Lisboa, estão a trabalhar em coordenação para resolver as questões relativas às pessoas que chegam da Venezuela. No Funchal, foi criado um gabinete interdepartamental com representantes dos vários serviços públicos "que podem ter uma palavra-chave no que concerne à boa integração destas pessoas", explica.
No Funchal, foi criado um gabinete interdepartamental com representantes dos vários serviços públicos para garantir a boa integração dos luso-descendentes.
Algumas pessoas já chegam como reformadas a Portugal e não estão a receber as suas pensões há vários meses. O problema já foi colocado pela Embaixada de Portugal em Caracas às autoridades venezuelanas, garante o secretário de Estado das Comunidades. É que, pelo facto de terem direito a essa pensão paga pela Venezuela, mesmo que estando suspensa, têm dificuldade em ter acesso a uma prestação social mínima da Segurança Social portuguesa. José Luís Carneiro tem conhecimento de cerca de 30 casos. O governante diz que as 47 associações de portugueses na Venezuela, algumas com milhares de associados, têm um papel fundamental em fazer chegar a ajuda do Estado português às pessoas mais carenciadas. A Embaixada de Portugal em Caracas tem dois conselheiros sociais que estão a "fazer um trabalho mais aprofundado e dinâmico com o movimento associativo". Existem dois tipos de apoio estatal. O Apoio Social para Idosos Carenciados (ASIC) e o Apoio Social para Emigrantes Carenciados (ASEC). José Luís Carneiro trouxe da visita à Venezuela a garantia de que o Governo venezuelano iria disponibilizar uma linha de crédito para possibilitar a reabertura dos estabelecimentos comerciais dos portugueses afectados pelos assaltos e também que o executivo iria reunir-se regularmente com os representantes dos empresários portugueses. "Para se ter uma ideia, dos cerca de 70 mil industriais de panificação na Venezuela, 95% são portugueses", refere, e "as grandes cadeias de distribuição alimentar também". O objectivo é "sensibilizar as autoridades venezuelanas para a necessidade de garantir condições de segurança àqueles que querem trabalhar e investir" no país. Nomeadamente, "a disponibilização de farinha, porque é uma matéria-prima essencial para a indústria da panificação". Agora, é preciso "garantir que estes compromissos são cumpridos e estão a produzir efeitos."
José Luís Carneiro afirma que o Estado português "não se imiscui na vida política interna da Venezuela". A sua grande preocupação é "criar condições para que a comunidade portuguesa continue a fazer da Venezuela o que fez até hoje, um país de presente e um país de futuro. Mas o futuro não se vislumbra risonho. "Se calhar, não haverá uma solução de curto prazo para a crise na Venezuela. Poderemos estar confrontados com uma intensificação do fluxo [de pessoas para Portugal], considera o secretário Regional de Assuntos Parlamentares e Europeus. Ainda assim, Sérgio Marques acredita que este movimento "pode ser meramente temporário". Porque "muitas destas pessoas poderão voltar logo que a situação se compuser na Venezuela". A questão, diz, "é saber quanto tempo é que ela pode durar".
A decisão de vir viver para Lisboa teve um único motivo. Ele e a mulher queriam ser pais e não pretendiam criar os filhos num ambiente onde reina a insegurança. Nunca lhes faltou comida ou medicamentos porque tinham uma vida financeira estável na Venezuela e viajavam muito. "O que faltava comprávamos fora", diz. Na Venezuela, ele era um empresário de sucesso. A empresa de produção de eventos que criou há dez anos cresceu e chegou a dar emprego a 30 pessoas de forma directa e a 150 "freelancers". O negócio permitia-lhe ter "uma boa qualidade de vida". Mas, na Venezuela, quem tem dinheiro é um alvo apetecível para sequestros. O casal tem familiares que passaram por essa experiência traumática. E isso, sublinha, "deixa feridas para a vida toda". Pensaram que "seria só uma questão de tempo" até lhes acontecer o mesmo. "Era um risco que não estávamos dispostos a correr."
Desde que se mudou para Lisboa, o empresário já voltou à Venezuela três vezes. De cada vez que vai lá encontra um cenário pior. A última viagem foi em Julho de 2016. "Fiquei horrorizado. A necessidade fez com que os valores das pessoas não sejam os melhores. É uma tristeza." Oliver fica chocado com a fome que as pessoas estão a passar. Especialmente porque se sabe que "há contentores cheios de comida que se está a estragar. Não a entregam." Para ele, é incompreensível que, num país "petrolero", as pessoas estejam a passar fome. "É uma corrupção desmedida", afirma.
Por isso, explica, os confrontos nas ruas são um acto de desespero. "Há pessoas que estavam há três dias sem comer, pessoas cuja mãe morreu no hospital à espera que chegasse um medicamento tão simples como a penicilina." E depois, diz, "é importante perceber que quando dizemos que falta comida, não falamos de azeite. Não há leite, não há massas. Pão é um luxo!" Há um ano, quando voltou a Caracas, levou uma mala de 23 quilos cheia de medicamentos para a família. E pediram-lhe latas de feijão. Algo que sempre tinha havido à mesa com fartura. "Quando servimos feijão ao jantar para cerca de dez pessoas, houve emoção, parecia que estavam a comer lagosta!"
O que as pessoas estão a dizer nas ruas é: "Chega! Já se ultrapassaram os limites todos", afirma o empresário. Explica que, neste momento, as pessoas que vivem na Venezuela não têm garantias de nada. Não sabem se chegam a casa e têm luz, podem sair à rua e ser mortas. Se ficarem doentes, não há medicamentos nos hospitais públicos nem privados. E os supermercados estão vazios. Oliver está preocupado com a mãe que ainda está na Venezuela. Quer trazê-la para Lisboa. E tem um argumento forte. O neto.
Um país mergulhado no caos
Há mais de dois meses que os protestos nas ruas de Caracas contra o Governo de Nicolás Maduro não param. E têm vindo a tornar-se cada vez mais violentos. Os últimos dados conhecidos apontam para cerca de 70 mortos nos confrontos entre manifestantes e forças de segurança. As autoridades usam gás lacrimogéneo para dispersar a multidão e balas de borracha. Mas a onda de protestos não pára. Já foram presas mais de mil pessoas que estavam nas manifestações. "Quem está a morrer são jovens, miúdos", diz Oliver Gil. "São pessoas de 18, 19, 20 anos que são estudantes, músicos." E, diz sem hesitação, "Maduro tem sangue nas suas mãos". Por isso, "não há hipótese de sair a bem" desta crise política.
Ysmiley Lourenço já não consegue ver as notícias. "Tenho de desligar, senão dou em louca." É pelas redes sociais que vai sabendo o que se passa na sua Venezuela. Os relatos de fome e subnutrição de crianças deixam-na abatida. Custa-lhe ver o que está a acontecer e não poder fazer nada. Está em Portugal há dez anos. É filha de pais portugueses. A mãe é da ilha da Madeira e o pai da zona de Coimbra. Veio para Lisboa com o marido, venezuelano, já licenciada em Farmácia. Aqui fez uma pós-graduação e tentou trabalhar na sua área de formação. Mas teve tantas dificuldades que acabou por desistir.
Há dois anos, abriu um restaurante de comida venezuelana na Estrada de Benfica, o Aripo, que entre outros pratos serve as tradicionais "arepas", uma espécie de pão achatado que é aberto e recheado com vários ingredientes. O estabelecimento é ponto de encontro de muitas pessoas que vieram da Venezuela e que ali matam saudades dos sabores da sua terra. As paredes brancas estão salpicadas com quadros cheios de cor que representam paisagens venezuelanas, e também lá está a bandeira do país.
"As pessoas que chegam [da Venezuela] estão muito tristes", diz Ysmiley. As conversas no restaurante vão sempre tocar na situação do país, até porque muitas pessoas ainda têm família e amigos lá. "Não há medicamentos, nem paracetamol para uma dor de cabeça. Só se consegue através dos amigos, que vão passando informação de onde encontraram medicamentos." Normalmente é no mercado negro que os conseguem comprar, a preços muito mais altos. À entrada do restaurante está uma caixa grande de papelão em cima de uma mesa, com a indicação de que serve para recolha de medicamentos, e em cima do balcão há uma pequena caixa redonda para recolher donativos em dinheiro para o mesmo fim - fazer chegar medicamentos à Venezuela.
Ysmiley Lourenço faz parte da Venexos, uma organização não governamental que apoia quem chega a Portugal vindo daquele país da América Latina. A associação está a enviar os medicamentos em pequenas quantidades para não serem retidos pelas autoridades e chegarem às mãos certas. "Se for de uma forma muito divulgada, são apanhados à entrada, no aeroporto, e não chegam às instituições. Porque a posição do Governo venezuelano é a de não admitir qualquer tipo de problema ou de crise humana no país", explica.
Os pais da empresária chegaram há dois anos a Lisboa. Ainda se estão a adaptar à nova vida. Tinham um negócio de mecânica automóvel em Guarenas, uma cidade nos arredores de Caracas. Agora dão uma ajuda no restaurante. Ysmiley conta que há dez anos decidiu sair da Venezuela porque percebeu que "não tinha grande futuro" no país. "Mesmo tendo trabalho, eu não via como poderia sair de casa dos meus pais, ter a minha casa, ter o meu carro."
Nessa altura, já existia insegurança e falta de alimentos. "Era um drama. Lembro-me de andar atrás do camião do leite para ver onde ia parar para poder comprar. E a venda era controlada. Um litro ou dois por pessoa. Depois foi rodando. Apareceu o leite, mas desapareceu o frango. Aparecia uma coisa, desaparecia outra." A situação piorou ao longo dos anos.
Agora, aqui em Lisboa, o seu negócio corre "mais ou menos". Os portugueses não conhecem a gastronomia venezuelana. "Perguntam o que são [as arepas] e fazem associação com a comida mexicana, querem saber se é picante."
Vidas em suspenso
Ysmiley esteve pela última vez na Venezuela há quatro anos. "Tive muito medo", diz. A insegurança fez com que não conseguisse sair, "nem para fazer compras". O pavor dos raptos é algo que está sempre bem presente. "Acontecem muito e, nos últimos tempos, acabam em morte de certeza. Mesmo que paguem [o resgate]. Matam as pessoas porque sim." Conta que um ex-colega morreu há um ano, quando lhe roubaram o carro.
A empresária diz que a Venexos está a receber muitos "pedidos de ajuda de pessoas que ainda estão na Venezuela e que querem vir para Portugal". Algumas nem estão ligadas à comunidade portuguesa. Muitos dos que estão a chegar ao nosso país têm formação superior. São advogados, médicos, enfermeiros, farmacêuticos, informáticos. E vão sobretudo para a Madeira, de onde é oriunda 80% da comunidade portuguesa na Venezuela. Mas também se está a formar uma comunidade na região de Aveiro e em Lisboa. Entre as pessoas que entram no restaurante de Ysmiley, o sentimento mais forte é o de que "é uma situação temporária, que vão voltar." Não querem sair da Venezuela de forma definitiva. Mesmo os mais novos. Se as coisas mudarem "querem reconstruir o país, querem estar lá."
Sérgio Marques, secretário regional de Assuntos Parlamentares e Europeus, esteve recentemente numa visita oficial à Venezuela, juntamente com o secretário de Estado das Comunidades, José Luís Carneiro. Nos contactos com a comunidade portuguesa, percebeu que a primeira geração de emigrantes - que construíram a sua vida no país, que têm a sua casa, os seus negócios - tem a ideia de lá ficar. Querem "resistir, aguentar, com a esperança de que a situação possa mudar no curto, médio prazo", diz aquele responsável. Mas, na segunda e terceira gerações, "temos assistido a uma debandada" para países como Panamá, Costa Rica, Estados Unidos e Canadá.
Segundo as autoridades da Madeira, nos últimos seis meses, terão chegado à região entre três mil e quatro mil pessoas vindas da Venezuela.
"As pessoas que estão a chegar à Madeira constituem uma minoria daquelas que estão a sair da Venezuela. Ainda que, em termos absolutos, para a Madeira seja já um número muito significativo", admite Sérgio Marques. Não há números oficiais, mas o Governo Regional da Madeira estima que tenham entrado na ilha, nos últimos seis meses, entre três mil e quatro mil portugueses e luso-descendentes. Esta contabilidade é feita com base nos cruzamentos de informação da Segurança Social, Instituto de Habitação e outros serviços a que estas pessoas se dirigem.
"Cerca de mil pessoas estão já inscritas no centro de emprego da região autónoma da Madeira e contabilizámos cerca de 100 pedidos de ajuda em termos de habitação", refere. Uma questão que o Governo Regional terá dificuldade em resolver, tendo em conta que ainda tem pendentes situações de famílias atingidas pelos incêndios na Madeira, em Agosto de 2016.
Outra questão que está a preocupar as autoridades portuguesas é a integração destas pessoas no mercado de trabalho. Muitas não falam português e precisam de formação em inglês para poderem trabalhar no sector do turismo, a principal actividade na Madeira. Além disso, "há problemas no reconhecimento dos títulos académicos", afirma Sérgio Marques. "Temos neste momento [na Madeira] um grupo de oito médicos muito qualificados da Venezuela que estão numa situação de inactividade por causa destas questões burocráticas", conta. Para o secretário regional, é preciso "agilizar procedimentos" nas universidades, que são as entidades responsáveis pelo reconhecimento destes títulos académicos. As instituições de ensino superior "têm procedimentos muito burocráticos e muito longos para dar resposta a estas situações" e, sublinha, "têm de perceber que, numa situação excepcional como esta que vivemos, devem tratar todos estes assuntos com uma agilidade fora do normal."
O Governo da Região Autónoma da Madeira e a Secretaria de Estado das Comunidades, em Lisboa, estão a trabalhar em coordenação para resolver as questões relativas às pessoas que chegam da Venezuela. No Funchal, foi criado um gabinete interdepartamental com representantes dos vários serviços públicos "que podem ter uma palavra-chave no que concerne à boa integração destas pessoas", explica.
No Funchal, foi criado um gabinete interdepartamental com representantes dos vários serviços públicos para garantir a boa integração dos luso-descendentes.
Algumas pessoas já chegam como reformadas a Portugal e não estão a receber as suas pensões há vários meses. O problema já foi colocado pela Embaixada de Portugal em Caracas às autoridades venezuelanas, garante o secretário de Estado das Comunidades. É que, pelo facto de terem direito a essa pensão paga pela Venezuela, mesmo que estando suspensa, têm dificuldade em ter acesso a uma prestação social mínima da Segurança Social portuguesa. José Luís Carneiro tem conhecimento de cerca de 30 casos. O governante diz que as 47 associações de portugueses na Venezuela, algumas com milhares de associados, têm um papel fundamental em fazer chegar a ajuda do Estado português às pessoas mais carenciadas. A Embaixada de Portugal em Caracas tem dois conselheiros sociais que estão a "fazer um trabalho mais aprofundado e dinâmico com o movimento associativo". Existem dois tipos de apoio estatal. O Apoio Social para Idosos Carenciados (ASIC) e o Apoio Social para Emigrantes Carenciados (ASEC). José Luís Carneiro trouxe da visita à Venezuela a garantia de que o Governo venezuelano iria disponibilizar uma linha de crédito para possibilitar a reabertura dos estabelecimentos comerciais dos portugueses afectados pelos assaltos e também que o executivo iria reunir-se regularmente com os representantes dos empresários portugueses. "Para se ter uma ideia, dos cerca de 70 mil industriais de panificação na Venezuela, 95% são portugueses", refere, e "as grandes cadeias de distribuição alimentar também". O objectivo é "sensibilizar as autoridades venezuelanas para a necessidade de garantir condições de segurança àqueles que querem trabalhar e investir" no país. Nomeadamente, "a disponibilização de farinha, porque é uma matéria-prima essencial para a indústria da panificação". Agora, é preciso "garantir que estes compromissos são cumpridos e estão a produzir efeitos."
José Luís Carneiro afirma que o Estado português "não se imiscui na vida política interna da Venezuela". A sua grande preocupação é "criar condições para que a comunidade portuguesa continue a fazer da Venezuela o que fez até hoje, um país de presente e um país de futuro. Mas o futuro não se vislumbra risonho. "Se calhar, não haverá uma solução de curto prazo para a crise na Venezuela. Poderemos estar confrontados com uma intensificação do fluxo [de pessoas para Portugal], considera o secretário Regional de Assuntos Parlamentares e Europeus. Ainda assim, Sérgio Marques acredita que este movimento "pode ser meramente temporário". Porque "muitas destas pessoas poderão voltar logo que a situação se compuser na Venezuela". A questão, diz, "é saber quanto tempo é que ela pode durar".