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Turquia: Ferida sem golpe

É como se um dia fosse causa e efeito de tudo. Ali está ele, usado como argumento de legitimação. E se o problema estivesse lá antes? E se outros já o sentissem na pele antes de 15 de Julho? As ruas nunca estiveram tão vazias. As filas desapareceram.

Murad Sezer/Reuters
14 de Outubro de 2016 às 12:00
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Gatos vadios repousam sobre lápides de mármore. Vida deitada na morte, com uma tranquilidade pouco habitual. Recanto de Istambul, cidade onde a "velha ceifeira" tem marcado presença ao longo dos últimos meses, sempre com rostos diferentes. Sombra que deixa avançar com o olhar sempre a espreitar por cima do ombro.

Atrás ficou a Basílica de Santa Sofia. Camadas de História que se sobrepõem debaixo do mesmo tecto. Ali perto, em Janeiro, um bombista fez-se explodir. Para entrar no agora museu é preciso passar por um dispositivo de segurança. Os guias de viagens, alguns publicados no ano passado, aconselhavam a comprar bilhete com antecedência.

Estranha-se o que os olhos transmitem: não há ajuntamentos. A entrada é rápida e, no interior, não faltam oportunidades para encontrar corredores vazios. Os tectos fazem lembrar carrosséis de tão bordados. Beleza rasgada por andaimes, perto da entrada da nave principal. À medida que o tempo for passando, mudarão de lugar. Não há perspectiva para que saiam dali tão cedo.

"Desde Janeiro que as coisas não estão boas." Garantia de quem tem nos turistas o seu ganha-pão. Há quase uma vergonha no olhar a admiti-lo por a confissão revelar problemas de segurança. "Menos americanos e europeus." Os dados comprovam: nos primeiros sete meses do ano, já houve menos seis milhões de turistas na Turquia. A quebra é de 30% e acredita-se que possa subir até aos 40%. Só portugueses são menos 15 mil.

Para assistir à oração, é preciso caminhar até à Mesquita Azul. É a mais conhecida das 3.200 mesquitas de Istambul, cidade onde vivem quase 20 milhões de pessoas. Por enquanto, é a única com seis minaretes. Os azulejos que a ornamentam levaram os turistas a dar-lhe o nome. Aqui, a sua presença é a mais forte que foi possível encontrar.

Há uma pequena fila, sobretudo para avaliar se a exposição da pele está conforme os padrões. Há controlo de segurança antes de os pés descalços encontrarem a carpete vermelha com padrões florais. Mesmo pequena, a zona dedicada aos turistas está longe de lotada. É quase um corredor, onde os paus de "selfie" se vão destacando.

À saída, um casal passa de mão dada. Ele de longas vestes pretas, ela de branco e lenço verde-menta. Parecem alheios à polícia que cruza o jardim, de ar descontraído e arma na mão. Não param nos quiosques onde se vende castanha assada, milho cozido ou bolos de canela. Seguem de mão dada, ignorando uma exposição improvisada com fotografias da última tentativa de golpe de Estado.

15 de Julho

Sede da Turkish Airlines. Meia centena de jornalistas na mesma sala, dispositivos de tradução simultânea a postos. Quando se esperava uma conferência sobre a companhia aérea, o que se segue durante a hora seguinte surpreende. O inglês rapidamente deu lugar ao turco.

Do outro lado da tribunal, Ilker Ayci, presidente da transportadora. Transformado no porta-voz do seu principal accionista, o Estado. E sempre o 15 de Julho: um "evento traumático", o dia em que tentaram "sabotar a democracia".

Culpas apontadas a Fethullah Gülen, radicado nos Estados Unidos da América. Por suspeitas de ligação ao seu grupo, milhares já foram saneados. Avisos ao Ocidente, centrados em Bruxelas, por não compreender a gravidade da situação.

É como se o bom desempenho turístico da Turquia tivesse sido garantido com a "estabilidade" conseguida após a tentativa falhada de golpe de Estado. O atentado no aeroporto de Atatürk, o terceiro maior da Europa, quase não surge no discurso. Outros são miragem.

Os números ainda não espelham a real dimensão do problema. No primeiro semestre, a Turkish Airlines teve prejuízos equivalentes a 600 milhões de euros. O plano de recuperação passa por reduzir frequências, com Lisboa e Porto incluídos na lista. Há ainda uma aposta na América Latina e reforço na Alemanha e Rússia, os dois principais mercados emissores.

Para este ano, a transportadora já espera menos 10 milhões de passageiros. O número só não é pior porque Istambul continua a ser um forte "hub", ponto de ligação entre destinos. Isto explica um aeroporto cheio de gente às cinco da manhã.

O país perfeito

Os protagonistas dos ataques variam, do Estado Islâmico ao PKK. "Só faltam os 'aliens'", diz Ilker Ayci. Instabilidade esquecida na hora de orientar o discurso para os investidores. Tudo começa na classe executiva do avião.

Uma brochura deixa o apelo: "Invista na Turquia", o "destino perfeito de investimento" pela localização estratégica e força de trabalho dedicada. A acompanhar toda a informação, sempre em rota de crescimento, declarações de grandes empresários. Eles estão "confiantes" numa economia de 700 mil milhões de euros.

A imagem é a de um país perfeito que, após a tentativa de golpe de Estado, "começa com um quadro limpo", lê-se na capa de uma revista. Sem esquecer que foram reatadas as relações com a Rússia, como quem avisa o bloco ocidental que o parceiro é forte.

Tudo o que vier à rede é peixe, não interessa o sector. Energia, transportes, saúde, indústria dos plásticos, jogos digitais. Há um metro para expandir, um novo aeroporto com capacidade para 150 milhões de pessoas por construir. E a garantia: "Há 14 anos que a Turquia não cancela investimentos devido a incidentes infelizes."

Sem cura

Resilientes, os quilómetros de corredores do Grande Bazar e do Bazar das Especiarias não têm a energia de outrora. As montanhas de tecidos, caixas, especiarias, chás, porcelanas e doces impõem outro respeito perante o vazio. Nenhum homem conta, por si, que o negócio não vai bem.

É preciso puxar conversa para sabê-lo. "Não há turistas." Eles também não cedem: mantêm a distância e evitam abordagens directas. Esperam que a loja fale por si e o cliente tome a iniciativa. Entra-se no espírito de regateio e as faces iluminam-se. "Não leva nada para a sogra?"

À entrada, um detector de metais. Um homem sem farda sorri enquanto segura uma arma. Sente-se-lhe o orgulho nos orgulhos. Também ele é uma bandeira, como as centenas espalhadas por Istambul. Só varia o tamanho. O nacionalismo vive-se em tons encarnados.

Lá está o barco que cruza o estreito do Bósforo. Europa de um lado, Ásia do outro. O laranja do Sol que se põe aumenta os contrastes, tornando as gruas em certezas maiores. Esta é uma cidade em construção junto às linhas de água. A avenida marginal está em obras. Há projectos para hotéis, galerias de arte, restaurantes, prédios de luxo.

A viagem termina no bairro de Beylerbeyi, já no lado asiático. Barcos descansam no mesmo cais, o peixe é o destaque nos restaurantes. A chamada para mais uma oração do dia ecoa quando os ponteiros se aproximam das 19. Daqui a nada, a ponte estará iluminada de vermelho. Enquanto há luz natural, um pai ensina o filho a pescar.

Não é o único. Outros seguem-se em linha. Foram feridos, todos eles, com o maior dos golpes, algo tão profundo que é difícil sentir-lhe o corte. A ferida começa a infectar quando falta confiança para curá-la. 


* em Istambul. O jornalista viajou a convite da Turkish Airlines.



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