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SOS Timor

Os portugueses que viviam em Timor durante a II Guerra Mundial foram colocados em campos de concentração japoneses. Entre eles estavam os pais e a irmã do cantautor Zeca Afonso. Um segredo guardado durante décadas.

12 de Agosto de 2016 às 10:33
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Os aviões militares sobrevoaram os céus de Timor em tom de ameaça. Atrás de si traziam um rasto de destruição. O mundo estava em conflito naquele ano de 1942. Mas Salazar declarou a neutralidade de Portugal logo a 1 de Setembro de 1939, quando a Alemanha invadiu a Polónia. Numa nota oficiosa com essa mesma data, enviada à imprensa, o chefe do Governo escreve que, apesar da aliança com a Inglaterra, "não nos obrigam a abandonar nesta emergência a situação de neutralidade". E acrescenta que "o Governo considerará como o mais alto serviço ou a maior graça da Providência poder manter a paz para o povo português, e espera que nem os interesses do País, nem a sua dignidade, nem as suas obrigações lhe imponham comprometê-la". Palavras que não serviram de escudo para todos os portugueses. A paz estava mesmo ameaçada. Pelo menos, para alguns.

Três anos depois desta declaração, Timor-Leste seria ocupada pelos japoneses enraivecidos. O alvo a abater eram as forças aliadas, compostas por australianos e holandeses (a outra parte de Timor fazia parte das colónias da Holanda), que invadiram a ilha a 17 de Dezembro de 1941, dias depois de o Império do Japão ter atacado a armada dos Estados Unidos, em Pearl Harbor. Esta força militar dos Aliados ficou conhecida como "Sparrow Force". Desembarcaram numa praia, a leste de Díli, 380 soldados australianos e 1.200 holandeses que tomaram de imediato o aeródromo e a estação de rádio, avançando em simultâneo para a capital. A guerra estava a alastrar pelo Pacífico. Os Aliados queriam ocupar uma posição estratégica para evitar o avanço nipónico para a Austrália. Timor era esse ponto estratégico. A invasão foi feita sob o protesto do governador de Timor-Leste, Manuel Ferreira de Carvalho, que reafirmava a neutralidade de Portugal no conflito. Mas pouco mais podia fazer porque os recursos humanos e materiais eram escassos. Acabou por ignorar as ordens de Lisboa para resistir. As tropas australianas, especializadas em guerrilha, refugiaram-se nas montanhas e construíram redutos para metralhadoras antiaéreas. Os Aliados garantiam que retiravam quando chegassem reforços militares portugueses que defendessem a ilha dos japoneses.

João, Zeca e Mariazinha, em Luanda, em 1936. A carreira de magistrado do pai levou o casal e a filha mais nova  para Timor. Os dois rapazes foram para Coimbra prosseguir os estudos.
João, Zeca e Mariazinha, em Luanda, em 1936. A carreira de magistrado do pai levou o casal e a filha mais nova para Timor. Os dois rapazes foram para Coimbra prosseguir os estudos.

Dois dias depois, Salazar fala sobre a situação de Timor na Assembleia Nacional. O Presidente do Conselho diz que a soberania portuguesa fora violada. E, para assegurar a defesa da ilha e exigir a saída das forças aliadas, envia um contingente para Timor a partir de Moçambique. Os militares seguiriam no paquete João Belo, que seria escoltado pelo aviso Gonçalves Zarco. Mas era tarde demais. O reforço militar não chegou a tempo. Os japoneses reagiram cerca de três meses depois do ataque a Pearl Harbor à ocupação da ilha pelos Aliados, e atacaram o território dizendo estar a actuar em legítima defesa. Mas tinham também interesses económicos na região, nomeadamente na exploração agrícola e dos recursos petrolíferos. Os bombardeamentos foram violentos mas, perante as autoridades portuguesas, o Japão prometia que iria respeitar a neutralidade de Portugal. A verdade é que ninguém ficou a salvo. Os portugueses que residiam em Timor e os timorenses sentiram na pele os horrores da guerra. Entre eles estavam os pais e a irmã de Zeca Afonso, o autor de "Grândola Vila Morena".

Do paraíso ao inferno

O pai do cantautor Zeca Afonso, José Nepomuceno Afonso dos Santos, era juiz e escolheu ser colocado na comarca de Díli, depois de uma carreira de vários anos nas colónias africanas. A partida do magistrado para Timor dá-se em 1939. Nessa altura, a família dividiu-se. O casal e a filha, Maria (Mariazinha), na altura com sete anos, seguiram para a ilha asiática e os dois rapazes mais velhos, João (11 anos) e Zeca (9 anos), foram viver para casa dos tios Avrilete e João Filomeno, em Coimbra, para prosseguirem os seus estudos no liceu D. João III e, mais tarde, na universidade. Já instalado, o magistrado de 38 anos enviou uma carta ao irmão, que ficou a tomar conta dos seus filhos, datada de 22 de Novembro de 1939, onde explica porque escolheu ir para Díli. "A verdade é que o que atraiu foi a viagem e a curiosidade de ver estes sítios depois das maravilhas que me contavam os que por cá estiveram quando a pataca era 15 escudos." Mas o sonho tornou-se um pesadelo. "A partir de uma dada altura, as cartas cessaram", conta ao Negócios João Afonso dos Santos, hoje com 88 anos. Os dois rapazes em Coimbra estavam muito longe de imaginar o que estava a acontecer. Dividiam o tempo entre os livros, os pontapés na bola de trapos e as rezas em casa com a tia Avrilete. Só muito mais tarde perceberam o porquê do silêncio da família. Estava num campo de concentração e impedida de comunicar com o mundo.

Recepção na gare marítima de Alcântara aos portugueses marcados pela guerra em Timor, que chegaram no vapor Angola, a 15 de Fevereiro de 1946.
Recepção na gare marítima de Alcântara aos portugueses marcados pela guerra em Timor, que chegaram no vapor Angola, a 15 de Fevereiro de 1946.

A traumática experiência desta família durante a II Guerra Mundial em Timor vai ser contada num documentário do realizador Luís Filipe Rocha, chamado "Rosas de Ermera", onde os dois irmãos ainda vivos João e Mariazinha (que voltou aos locais onde viveu com os pais em Timor) contam as suas memórias. João Afonso dos Santos escreveu também estas e outras recordações da família no livro "O último dos colonos: entre um e outro mar", onde afirma que "a ocupação da ilha pelos japoneses e as consequências que daí resultaram para os habitantes (humilhações, violências, mortes, destruição) foram sujeitas a uma espécie de apagamento propositado". Certo é que este foi um dos momentos críticos da diplomacia do Estado Novo.

O início do pesadelo

A ocupação nipónica começou na noite de 19 para 20 de Fevereiro de 1942. Cerca de mil homens do exército imperial desembarcaram em Díli. No relatório escrito pelo governador Manuel Ferreira de Carvalho, sobre os acontecimentos de Timor entre 1942-1945, pode ler-se que houve quem deixasse a cidade de Díli logo nessa noite e madrugada "com receio de desacatos sérios por parte da verdadeira horda de selvagens que eram os soldados desembarcados". A maioria da população fugiu para o interior. Muitos refugiaram-se em Aileu, Ermera, Liquiçá, Maubara. No documento, aquele responsável conta que os militares nipónicos eram "tropas de choque", habituados à pilhagem, que entravam pela casa dentro das pessoas, "alguns já bastante embriagados, que levavam o que lhes apetecia, embora muitas vezes com um certo ar de delicadeza e afirmando que era... por empréstimo".

As casas de Díli foram quase todas ocupadas pelas tropas japonesas. E os edifícios públicos, onde funcionavam as repartições, também. As excepções foram os correios e parte das instalações da alfândega. O Banco Nacional Ultramarino (BNU), a única instituição financeira portuguesa na ilha, que concedia os poucos créditos solicitados na colónia e efectuava os pagamentos aos funcionários públicos, também não foi ocupado, e a casa-forte manteve-se intacta até Setembro de 1944. Só nessa altura, quando o edifício já estava praticamente desfeito pelos bombardeamentos, é que a casa-forte do BNU foi arrombada e roubada. Além das pilhagens, os japoneses violaram mulheres. Algumas timorenses tornaram-se escravas sexuais dos soldados, eram as chamadas "mulheres de conforto".

As memórias de Mariazinha e João Afonso  O cineasta Luís Filipe Rocha está a preparar um filme sobre a saga da família Afonso dos Santos, com base nas memórias dos irmãos de Zeca Afonso. O documentário chamar-se-á "Rosas de Ermera" e deverá estrear no próximo ano.

No final dos anos 90, Maria Cerqueira Afonso dos Santos ofereceu aos seus quatro filhos quatro caderninhos manuscritos com memórias de Timor. Mariazinha tinha sete anos quando, em 1939, partiu com os pais para a colónia portuguesa. O pai, José Nepomuceno Afonso dos Santos, era juiz e havia sido colocado na comarca de Díli. Os irmãos mais velhos, João e Afonso, ficaram em Portugal, ao cuidado dos tios. "Em Timor, a Mariazinha e os pais são apanhados pela invasão japonesa e passam por uma série de peripécias até acabarem no campo de concentração, que foi a localidade de Liquiçá, onde ela até fez o seu exame de quarta classe", conta o cineasta Luís Filipe Rocha.
Amigo da família Afonso dos Santos, o realizador leu as memórias de Mariazinha e, desde então, idealizou um documentário sobre esses registos de Timor. Vinte anos passados, o cineasta recuperou a ideia, reformulou-a e está agora a trabalhar num filme sobre a saga da família Afonso dos Santos passada entre 1939 e 1946, com base no testemunho dos irmãos de Zeca Afonso. "A dada altura, as comunicações são interrompidas e a família que estava cá convence-se de que os familiares em Timor tinham, eventualmente, morrido, e há ali um buraco negro de dois anos e meio. Até que, de repente, quando a guerra acaba, os irmãos vêem no jornal o nome dos pais e da irmã. Reencontram-se todos em Fevereiro de 1946." O documentário chamar-se-á "Rosas de Ermera" e deverá estrear no próximo ano. 

Por onde passavam, os nipónicos deixavam tudo destruído e, para circular na cidade de Díli, os portugueses precisavam de um salvo-conduto. No livro "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial", do médico José dos Santos Carvalho, são descritos vários casos de portugueses que preferiram o suicídio a serem torturados e verem as suas mulheres e filhas serem violadas pelos japoneses. O clínico, que prestava serviço em Timor na II Guerra Mundial, descreve a forma como se mataram vários portugueses e conta que houve quem se escondesse no meio dos cadáveres fingindo-se de morto para escapar à chacina.

As tropas australianas infiltradas nas montanhas, a cujas fileiras se juntaram vários civis portugueses, sobretudo deportados, e timorenses liderados por régulos (entre eles Dom Aleixo Corte-Real e Dom Jeremias de Lucas, que acabariam mortos pelos japoneses), lançaram emboscadas aos nipónicos quando eles começaram a sair de Díli, onde tinham desembarcado. Por seu lado, o exército japonês recrutou e armou milícias de timorenses. Ficaram conhecidas como "colunas negras" e espalharam o terror pela ilha. O contingente que já estava a caminho com militares portugueses vindos de Moçambique (de onde saiu em Janeiro de 1942) recebe ordens para regressar a Lourenço Marques. Dificilmente iria conseguir passar em segurança porque a guerra estava instalada na região. Os portugueses ficaram por sua conta e risco. O Governo move-se nos meios diplomáticos para recuperar a soberania, mas sem sucesso. Timor ficaria sob domínio do Japão até ao final da guerra.

Fome, isolamento e doença

À medida que o tempo passava, a pressão japonesa sobre a administração portuguesa era maior. As condições de vida foram-se deteriorando e, a 4 de Outubro de 1942, o governador envia um pedido de ajuda para o Ministério do Ultramar, em Lisboa. No telegrama, escreveu: "Impossibilidade absoluta protecção defesa vidas portugueses (…) peço V. Ex.ª encarecidamente promover vinda imediata aqui transporte para transferência provisória toda a população portuguesa para qualquer parte." Mas Salazar não concordou com a retirada dos portugueses da ilha. No livro "A Diplomacia de Salazar (1932-1949)", Bernardo Futscher Pereira, actualmente embaixador de Portugal em Dublin, e mestre em Ciências Políticas e Relações Internacionais, escreve que, nessa altura, a administração portuguesa estava reduzida a quase nada. "Dela apenas restava a presença em Díli de Ferreira de Carvalho, cativo dos japoneses." O governador ficou confinado ao palácio de Lahane, sem capacidade de comunicar com a metrópole através de Macau, uma vez que os japoneses controlavam a estação de rádio. A situação era "humilhante", afirma o diplomata, mas "Salazar não a queria agravar rompendo com Tóquio - pois, apesar deste desastre, Macau permanecia a salvo". Não restou outra hipótese ao governador senão aceitar a imposição de Tóquio de os portugueses serem colocados em zonas de protecção em Liquiçá e Maubara para "sua segurança". Quem não fosse para lá seria considerado e tratado como colaborador dos Aliados.

João Afonso dos Santos, hoje com 88 anos, conta a história da família no livro 'O último dos colonos: entre um  e outro mar'. Para ele, houve 'uma espécie de apagamento propositado' do que aconteceu em Timor durante a II Guerra Mundial.
João Afonso dos Santos, hoje com 88 anos, conta a história da família no livro "O último dos colonos: entre um e outro mar". Para ele, houve "uma espécie de apagamento propositado" do que aconteceu em Timor durante a II Guerra Mundial. Bruno Simão
Cerca de 600 portugueses viram-se obrigados a entrar nessas prisões a céu aberto. A excepção foram alguns núcleos isolados que se juntaram aos australianos, que mais tarde os levaram com eles para a Austrália, no início de 1943, quando retiraram. A família do juiz José Nepomuceno teria como destino Liquiçá, mais propriamente um campo cercado com arame farpado e vigiado 24 horas por dia pelos japoneses. Os aparelhos de rádio tinham-lhes sido retirados. Ficaram incontactáveis. A mãe, Maria das Dores, escreveu num pequeno diário: "Estamos desligados do mundo." A vida começa a tornar-se mais dura a cada dia que passa. Desde logo era difícil o acesso aos alimentos. "Os ocupantes japoneses abarbatam o que lhes interessa, do bazar onde os timorenses expõem, ao sábado, os produtos da terra, em pequenas bancas ou esteiras, deixando o resto para os cativos que só estão autorizados a avançar a um toque de badalo", descreve João Afonso dos Santos, no seu livro. A pequena Mariazinha corria para marcar lugar e conseguir trazer alguma coisa para comer.

A pressão sobre o Governador

Em 25 de Junho de 1943, o juiz decide fazer uma petição endereçada ao governador de Timor. Nesta altura, os Aliados já tinham abandonado a ilha. O magistrado pedia uma melhoria das condições de vida dos portugueses que ali viviam. Perante a perda de valor da pataca, em virtude de a preferência dos vendedores, a partir de determinada altura, oscilar entre a moeda em prata e o gulden (dinheiro do ocupante nipónico) e também devido à subida descontrolada dos preços, José Nepomuceno requeria que os funcionários públicos da colónia recebessem um subsídio para sua manutenção, tendo em conta a sua residência forçada na denominada Zona de Protecção. O documento, com várias assinaturas, foi entregue em mão ao administrador interino do concelho de Díli, o engenheiro Artur do Canto Resende, que também assinou a petição e escreveu uma nota onde dizia que, apesar de ninguém lhe ter pedido para assinar, ele tinha decidido fazê-lo porque "ela representa o resumo das informações que venho prestando a V. Ex.ª há muito tempo a esta data, de cada vez que regresso das minhas costumadas visitas mensais à zona de Liquiçá e Maubara (…) existem muitos portugueses que não podem continuar a viver sem que V. Ex.ª lhes alivie a miséria que há muito lhes bateu à porta". Um gesto que lhe saiu caro. A crítica indirecta à passividade do governador resultou na sua exoneração a 8 de Março de 1944. Quatro meses depois, foi preso pelos japoneses e acabou por morrer à fome durante um longo cativeiro na ilha de Alor.

Uma foto dos tempos ainda felizes na ilha, antes da invasão japonesa.
Uma foto dos tempos ainda felizes na ilha, antes da invasão japonesa.

Em Março de 1944, Lisboa conseguiu enviar um delegado especial do Governo a Díli. Tratava-se do capitão de artilharia Silva e Costa, ajudante do governador de Macau. Foi transportado num bombardeiro japonês proveniente de Macau. O objectivo era "fazer um inquérito sobre os acontecimentos e sobre a situação na colónia", escreveu o governador no seu relatório. Mas, escreve João Afonso dos Santos, "o capitão Silva e Costa mostrou-se mais interessado em apurar se os portugueses, famintos, humilhados e ofendidos, se portavam bem, politicamente falando, do que em conhecer a sua desgraçada situação, menos ainda em procurar remediá-la". O oficial esteve uma semana em Timor. Mas dedicou apenas um dia a visitar os portugueses nas zonas de concentração, "limitando-se a recolher o que o governador lhe transmitiu, no alto da sua residência em Lahane, com vista sobre a baía", afirma o autor. Esta visita do capitão Silva e Costa virou-se contra o juiz José Nepomuceno, quando este regressou a Portugal. O relato que o enviado do Governo fez chegar a Lisboa sobre a sua breve estada em Timor não abonou a favor do magistrado, como veremos mais à frente.

Depois da visita do capitão, o governador visitou, pela primeira vez em ano e meio, os portugueses reclusos dos japoneses. O tão desejado alívio das precárias condições de vida nem nesta altura aconteceu. Pelo contrário. A situação agravou-se. Entre Setembro e Outubro de 1944, os japoneses cortaram completamente os víveres aos portugueses. Quem estava em Liquiçá passou meses sustentado apenas a uma porção de 200 gramas de arroz por dia, por cabeça, cozido em água e sal. Mariazinha recorda-se que subia às árvores para colher rebentos. As suas memórias daqueles tempos de fome estão escritas no livro do irmão. "Comiam-se pontas de abóbora, folhas de papaeira, ervas que brotavam do campo quando adregava chover e certa folha, a 'couve maluca', um vegetal tóxico que fazia adormecer." Os portugueses eram obrigados a semear o seu sustento na terra seca e pedregosa. Muitos adoeceram com beribéri, uma doença causada pela falta de vitamina B1 no organismo.

Em Coimbra, durante todo este tempo, não houve notícias da família. Na cabeça dos rapazes já se adivinhava o pior cenário. A prova de vida dos pais e da irmã chegou através da imprensa. O Século, a 5 de Novembro de 1944, escreveu uma lista dos portugueses que viviam em Timor. Os rapazes respiraram de alívio.

O fim da guerra

No dia em que a guerra acabou na Europa, 8 de Maio de 1945, Salazar discursou ao país. Numa sessão extraordinária na Assembleia Nacional, o Presidente do Conselho disse: "A Providência dispôs nos seus altos desígnios que pudéssemos atravessar o conflito sem sermos directa e activamente envolvidos nele e sem nele sacrificarmos mais do que dinheiro, esforços, cuidados, algumas privações, o que, sendo muito em si, tudo se deve ter por pouco, em face do que outros houveram de sofrer. Atravessámos incólumes a guerra e, podemos dizê-lo, sem sacrificar a dignidade da Nação nem os seus interesses e amizades." Nem uma palavra sobre Timor. E lá, na ilha, todos continuavam sem saber o que se estava a passar no mundo.

João foi com o irmão Zeca receber os pais e a irmã a Lisboa. Recorda o que sentiu nesse momento, quando estava no meio da multidão e conseguiu avistar a família. 'Fui tomado de uma grande tristeza, no meio das manifestações gerais de alegria.'
João foi com o irmão Zeca receber os pais e a irmã a Lisboa. Recorda o que sentiu nesse momento, quando estava no meio da multidão e conseguiu avistar a família. "Fui tomado de uma grande tristeza, no meio das manifestações gerais de alegria." Bruno Simão
Em Agosto, os prisioneiros portugueses foram levados para a plantação de Lebo-Meo da Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho, com a garantia dos japoneses de que teriam melhores condições de vida. Esperava-os uma viagem de 40 quilómetros, subindo e descendo as montanhas. Uns foram a cavalo, a maioria a pé. Um trajecto duro já por si, mas ainda mais difícil para quem estava tão fraco. Nas memórias que mais tarde escreveu, já no vapor de carreira Angola de regresso a Lisboa, o juiz José Nepomuceno descreve como viveram em Lebo-Meo. "Foi ali que viveram seiscentos infelizes, em palhotas indígenas, de bambu, perdidas entre as árvores de cacau e de borracha, à razão de oito a dez pessoas por palhota." Os japoneses tornaram-se nessa altura menos opressivos. E os portugueses começaram a comer melhor. "Começa a vir-nos de Fatu-Bessi farta ração de excelente mandioca, batata-doce, bananas, alguns legumes…", escreveu o juiz nas suas notas. Os prisioneiros perceberam que alguma coisa se passava, mas não sabiam o quê. A 1 de Setembro de 1945, o governador de Timor recebeu a visita do vice-cônsul japonês e do comandante das forças ocupantes que o informaram do fim do conflito no Oriente.

A guerra na Europa tinha terminado a 8 de Maio, mas os japoneses só se renderam a 15 de Agosto, seis dias após o bombardeamento de Nagasaki. Nesse dia, o imperador Hirohito anunciou ao país, através da rádio nacional, que o Japão iria depor as armas. O acordo de paz foi assinado a 2 de Setembro a bordo do navio de guerra USS Missouri ancorado ao largo da baía de Tóquio. Nessa altura, já estava a caminho uma expedição militar e naval portuguesa enviada de Lourenço Marques para garantir a reposição da soberania em Timor.

Quando o governador foi comunicar o fim da guerra aos portugueses, três dias depois da visita dos japoneses ao seu palácio, deparou-se com um quadro de miséria que descreve no seu relatório. "Ao deparar, na entrada da povoação, com o aspecto de toda aquela gente, envelhecida, alcachinada, todos com os ossos a desenharem-se por baixo da pele, a maior parte mal se podendo mexer, agarrados a paus para arrastarem os pés inchadíssimos, confesso que tive um momento de profundo desânimo." Mas a notícia teve um efeito quase terapêutico. Todos quiseram de imediato voltar aos seus postos. Em virtude de a cidade de Díli estar quase toda destruída, nem todos o puderam fazer. Foi o caso do juiz José Nepomuceno, que ficou acomodado em Fatu-Bessi com a esposa e a filha. Era preciso reconstruir o tribunal.

A 15 de Setembro, são restabelecidas as comunicações com Lisboa. Já no fim do mês chega a Díli o corpo expedicionário português. Os avisos da marinha de guerra portuguesa Bartolomeu Dias e Gonçalves Zarco entraram na baía de Díli a 29 de Setembro. Desembarcaram 2.500 militares portugueses. A população recebe-os emocionada. Mariazinha foi de boleia até ao pontão e ouve alguém dizer que vieram uns caixotes para o juiz. "Regressei a Fatu-Bessi com caixotes com roupa e comida e aí foi uma excitação. Lembro-me do deslumbramento do sabão, dos lacinhos para o cabelo, mas - mais do que tudo - a emoção das cartas com fotografias do João e Zeca", registou Mariazinha nas suas memórias. A família embarcou no vapor de carreira Angola a 8 de Dezembro de 1945, juntamente com outros 160 portugueses, incluindo o governador e a sua família. Para trás deixaram uma ilha destruída e com cheiro a morte.


Morreram cerca de 90 portugueses, entre homens, mulheres e crianças. Uns foram mortos pelos japoneses ou pelas "colunas negras", outros foram vítimas da fome e doença.


O relatório do governador Manuel Ferreira de Carvalho faz um balanço do impacto que a guerra teve na população. Morreram cerca de 90 portugueses, "na sua grande maioria europeus, entre homens mulheres e crianças". As causas de morte variam. "Uns assassinados pelos próprios japoneses, violentamente ou por meio da fome e maus-tratos a que os sujeitaram nas suas prisões, outros trucidados ou mortos por indígenas sublevados, outros ainda errantes pelo mato, à míngua de alimentos e de tratamento, e ainda outros por doenças provocadas pela deficiência de alimentação com que lutámos nos três últimos anos de ocupação da colónia". Estima-se que 10% da população timorense tenha morrido nesse período, o que corresponde a cerca de 40 mil pessoas.

O regresso a Portugal

O vapor Angola chegou a Lisboa a 15 de Fevereiro de 1946. À sua espera estavam milhares de pessoas. Zeca e João foram à gare marítima de Alcântara receber os pais e a irmã, acompanhados pela tia Avrilete e a sua filha, a prima Belinha. Os dois rapazes trajavam de capa e batina. Passados todos estes anos, João ainda tem viva a imagem que lhe ficou desse momento. "Três seres desamparados, bem juntos, a meio do cordão de passageiros, colados à amurada, encanecidos os pais, a irmã espigada, adolescente. Fui tomado de uma grande tristeza, no meio das manifestações gerais de alegria."

Na família do juiz imperou o silêncio. Quando se falava em Timor era "para celebrar as excelências", diz João. "Para a minha mãe, tudo era grande em Timor. As aranhas eram assim…, os ananases eram assim… [faz um arco no ar com as mãos], metia-se uma cana na terra e aquilo florescia…, mas, propriamente sobre as dificuldades que teriam sofrido em Timor, se eles não contavam, eu não ia perguntar." Quando chegou à metrópole, o juiz teve um processo disciplinar por "abandono de posto". O processo foi desencadeado a partir do inquérito do capitão Silva e Costa, o tal enviado do Governo a Timor, e também teve o contributo do governador Manuel Ferreira de Carvalho. José Nepomuceno apresentou a sua defesa. Garantia que ele e vários chefes de serviço da administração defenderam, desde o início da ocupação dos Aliados, que a população e os serviços indispensáveis fossem transferidos para outra localidade, como, por exemplo, Aileu. "Ali, os portugueses estariam bem separados das tropas holandesas e australianas (que só ocupavam Díli e arredores), por conseguinte a coberto de equívocas confusões e, do mesmo passo, ao abrigo do ataque japonês que, a todo o momento, se esperava contra a capital", escreveu nas suas memórias. O libelo acusatório apontava o juiz como porta-voz do grupo que "impunha" ao Governador a saída dos serviços de Díli. O texto refere ainda que o magistrado, não tendo obtido resposta positiva do governador, "abandonou a capital com a família, com desculpas várias e nunca mais trabalhou".

A família já reunida em Coimbra, pouco depois do regresso a Portugal. Os acontecimentos de Timor ficaram em segredo. O casal e a filha não contaram os horrores que viveram. Já em Portugal, o juiz José Nepomuceno foi alvo de um processo disciplinar por 'abandono de posto' na comarca de Díli.
A família já reunida em Coimbra, pouco depois do regresso a Portugal. Os acontecimentos de Timor ficaram em segredo. O casal e a filha não contaram os horrores que viveram. Já em Portugal, o juiz José Nepomuceno foi alvo de um processo disciplinar por "abandono de posto" na comarca de Díli.



O processo disciplinar fracassou. Mas o juiz ainda não estava livre de problemas. Foi obrigado a ir a uma junta médica em virtude de, nos autos do processo disciplinar, se referir a surdez do magistrado. Se fosse considerado fisicamente inapto, a sua carreira terminaria. No dia em que foi avaliado pelos médicos, levou um aparelho auditivo e passou no teste. Foi considerado apto. O juiz foi nomeado para a comarca de Dalatando, em Angola, "um dos lugares mais insalubres e menos pretendidos da colónia", explica João Afonso dos Santos no seu livro. Reclamou e conseguiu ser colocado em Inhambane, Moçambique. Era tempo de partir outra vez. 


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