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Seattle, peixe e política

No Pike Place Market, ex-líbris de Seattle, há um mercado de peixe que é um caso de estudo da gestão, há um leão que vende livros e anda de coração partido. É também um pequeno microcosmos de como os EUA vivem as eleições mais fracturantes em décadas.

Mike Kane/Bloomberg
28 de Outubro de 2016 às 12:00
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O Pike Place Market, de costas para a Elliot Bay, é o lugar mais vibrante do centro de Seattle. Uma das principais atracções turísticas da cidade, nunca deixou de ser um local privilegiado de compras para os locais. De frescos, com o peixe e marisco como estrelas maiores. E de quase tudo o resto, num gigantesco bazar. A estrutura errática de edifícios antigos e baixos, que cresceram como um corpo orgânico cedendo aos caprichos da expansão, contrasta com os arranha-céus traçados a regra e esquadro das ruas próximas. Num país liberal, este é um mercado do Estado, criado no início do século XX para driblar os intermediários que exploravam agricultores e pescadores. Foi um reduto de artistas e políticos radicais. E é ainda hoje, em tempo de eleições presidenciais, um local de opiniões políticas vincadas.

No Pike Place Fish, mesmo já sem vida, os peixes, caranguejos e outras iguarias do mar voam. O empregado que recebe o pedido grita-o ao mesmo tempo que faz um lançamento de três metros do salmão para o balcão mais acima, onde será pesado e embrulhado. De imediato, todos os outros empregados gritam também: "Salmão, cortado em postas!" Daí a pouco um empregado faz saltar um tamboril na beira da banca, preso a uma corda, fazendo recuar um cliente ou turista distraído a admirar o pescado, para gargalhada geral da assistência. Entretanto, outros peixes voaram, outros gritos ecoaram. A energia e o espectáculo são a imagem de marca daquele que é talvez o mercado de peixe mais famoso no mundo, pelo menos no da gestão. Obra de John Christensen, que fez um filme sobre o mercado de peixe em 1998 e é o co-autor do livro "Fish! A Remarkable Way to Boost Morale and Improve Results", que se tornou uma bíblia da motivação e um "best-seller".

Filho de peixeira, Jason cresceu no Pike Place Fish. E foi lá que acabou por ficar a trabalhar, já lá vão 23 dos seus 43 anos. Esteve em Portugal há uns anos com um colega, a convite da BMW, para uma demonstração de lançamento de peixe e falar sobre serviço a clientes. A conversa vai para as eleições americanas. Os debates? "É muito difícil de assistir. É muito triste. Queremos alguém que nos motive e em quem acreditemos. Mas quando vemos estes candidatos, é triste". "Estamos num momento da nossa história em que temos uma mulher a concorrer para Presidente, mas isso é apagado por esta maluquice. É até embaraçoso. É isto que nos representa?"

Na livraria Lion Heart (coração de leão), o desapontamento sai de trás do balcão. David Ghoddousi, o dono do espaço que vende livros novos e usados, sente-se "de coração dorido e de coração partido". Declama-o várias vezes, para acentuar o dramatismo. "A maior parte dos americanos não gosta de nenhum dos candidatos. É uma tragédia para o povo americano ter apenas estes candidatos. Acho que as pessoas vão votar apenas porque não querem que o outro candidato ganhe".

Seattle, sede da Microsoft, da Amazon ou do Starbucks, é a quarta cidade mais rica dos EUA, com um PIB "per capita" equivalente a 70 mil euros, três vezes superior ao de Portugal. E o sentimento nestas eleições presidenciais não é muito diferente da América média, onde nenhum dos candidatos é muito apreciado, como mostram as sondagens que medem a popularidade. Mas a intensidade dessa rejeição é aqui maior. Há 28 anos que o candidato democrata é o mais votado em Seattle e no estado de Washington, e esta eleição não será diferente - Clinton lidera com cerca de 13 pontos percentuais de vantagem. Mas, ao contrário da maioria dos Estados Unidos, quem ganhou aqui as primárias foi Bernie Sanders, com 72,7% dos votos. O Pike Place Market é um microcosmos dessa realidade.
A maioria preferia Bernie Sanders, que ganhou as primárias no estado de Washington.
A maioria preferia Bernie Sanders, que ganhou as primárias no estado de Washington. Anthony Bolante/Reuters
Foi em Bernie Sanders que votou David Ghoddousi. "Não concordava com tudo, mas era alguém que estava a correr com as suas próprias ideias. Acho que teria capacidade para trabalhar melhor com o Congresso. Não tem o ego no meio do seu programa, como acontece com Hillary Clinton e Donald Trump". Mas foram estes os escolhidos. Porquê? "Por causa da pressão do sistema e os dogmas dos partidos. Os outros dois candidatos [Gary Johnson, do Partido Libertário, e Jill Stein, dos Verdes] não têm a mesma atenção dos media."

Ana Paula MacArthur, brasileira, de 50 anos, casada com um americano, empregada numa loja de decoração e "souvenirs", também era apoiante de Bernie Sanders, que diz ser alguém "mais preocupado com a justiça social e menos com os interesses das grandes corporações americanas". A cruz no boletim de voto vai para Jill Stein. Também ela lamenta que os outros candidatos tenham ficado fora dos debates, excluídos do sistema mediático. Trump? "É um palhaço. Tenho medo que ele ganhe e venha a ter o poder para fazer o que diz que vai fazer. É um pesadelo". E Hillary Clinton? "É menos má, mas incomodou-me muito a política externa na América Latina, sobretudo no Brasil. Não gostaria que uma pessoa como ela fosse presidente". A admissão da inevitabilidade de que um deles irá presidir aos destinos do país sai-lhe num muito brasileiro "se correr o bicho pega, se ficar o bicho come".
O Pike Place Market, criado pelo município de Seattle em 1907, tornou-se mundialmente famoso como exemplo de gestão graças ao mercado de peixe, onde os trabalhadores dão espectáculo enquanto atendem os clientes. Numa cidade que é um reduto do Partido Democrata, nem Hillary gera simpatias.
O Pike Place Market, criado pelo município de Seattle em 1907, tornou-se mundialmente famoso como exemplo de gestão graças ao mercado de peixe, onde os trabalhadores dão espectáculo enquanto atendem os clientes. Numa cidade que é um reduto do Partido Democrata, nem Hillary gera simpatias. David Ryder/Reuters
Ao lado do bizarro Museu do Sapato Gigante, que se visita pondo uma moeda e espreitando por uma pequena janela, do lado oposto à loja de artigos de magia onde duas máquinas de ler a sina marcam a entrada, está o Coin Market, a loja de coleccionismo de Darrell Strand. Além das moedas, notas e cromos, um dos fortes da loja é o material de campanha. Há cartazes, crachás, bonecos e demais parafernália de quase todos os presidentes, de Lincoln a Bush. Darrell também era adepto de Bernie Sanders, mas o discurso em relação aos candidatos republicano e democrata é mais moderado. "Trump trouxe vários temas muito interessantes para a campanha. Mas acho que não tem o que é necessário para ser presidente". E Clinton, poderá um dia estar num dos cartazes na parede? "É uma possibilidade", diz. Mais não arrisca.

Com Trump atrás nas sondagens nacionais, a promessa de muitos habitantes de Seattle de irem viver para o vizinho Canadá caso o candidato republicano vença, provavelmente não terá de se cumprir. Mas isso não evita o desânimo entre os vendedores do Pike Place Market. Hillary Clinton é um mal menor. "Não acredito que ela seja capaz de fazer a diferença, como nós fazemos a diferença na vida dos nossos clientes", atira Jason.



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