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Rui Moreira: "Se olharmos com atenção e disposição vemos mais e mais coisas"

Os seus desenhos são enormes quadros, alguns que precisam de muitos meses para serem concluídos. Tem agora uma exposição, “Os Pirómanos”, na Galeria Municipal Pavilhão Branco, que parece honrar não só as paisagens ardidas do país, mas também os nossos poetas perdidos.

Miguel Baltazar
18 de Novembro de 2016 às 14:00
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Poder-se-ia dizer que faz um trabalho de pormenor, mas seria redundante, porque toda a arte é trabalho do pormenor. Nos pormenores, para Rui Moreira, talvez não esteja Deus, mas está certamente a natureza. A natureza é a areia em movimento do deserto, é o cheiro a queimado de Varanasi, é o filho a olhar para ele no berço, é o seu próprio corpo. Rui Moreira vive em Lisboa e trabalha com uma galeria em Paris, cidade onde tem exposto frequentemente. Tem agora uma exposição, "Os Pirómanos", na Galeria Municipal Pavilhão Branco, que pode ser vista até dia 11 de Dezembro. É uma exposição que parece honrar não só as paisagens ardidas do país, mas também os nossos poetas perdidos, e fazer um requiem pela maneira casual como passámos a tratar a passagem do tempo.   


1. Costumo ir para Montesinho, em Trás-os-Montes - porque morei nessa zona quando era muito pequeno - e alugo lá uma casinha para desenhar.
Estava a fazer um pequeno estudo - normalmente faço estudos para o que vão ser desenhos de grande formato - e comecei a ouvir um barulho lá fora. Havia um grande incêndio: duas montanhas, todas a arder. Fui lá fora, vi o incêndio e voltei para dentro. Nessa altura estava a ler o "2666", do Roberto Bolaño, e agarrei no livro. Abri-o no sítio onde tinha ficado e a primeira frase que li foi: "I am a lost giant in a burnt forest", "sou um gigante perdido numa floresta a arder". E passou a ser o título desse desenho.
Isto para dizer que a maneira como pus este título é a maneira como ponho muitas coisas num desenho: intuitiva, instintiva, imediata, sem estar a pensar antes. Normalmente, penso depois. Trabalho com o corpo: o corpo é o instrumento. E não é só a mão. É o corpo todo.
Uma imagem nunca vem de um sítio só. Os girassóis que aparecem no desenho "I am a lost giant in a burnt forest", por exemplo, vêm fisicamente da paisagem. Estavam ardidos. Apanhei uns quantos e trouxe-os para desenhá-los. Os troncos também eram troncos físicos daquela paisagem, mas por outro lado lembravam-me uma viagem à Índia e a esta cidade onde queimam os mortos e os atiram para o rio: Varanasi. A cidade estava cheia de troncos à beira do rio, porque estão constantemente a queimar pessoas. Há três mil anos que não pára o fogo. O fogo é o elemento desta exposição. E o título da exposição, "Os Pirómanos", não vem só desse Verão em Trás-os-Montes, mas de todos os Verões, desde há tantos anos, em que está sempre tudo a arder.

2. Comecei a fazer um desenho no dia em que o meu filho nasceu. Durante esses primeiros tempos, dava-lhe biberão à noite, e parecia que eu nunca dormia. Dava um biberão, mas não adormecia completamente até ao próximo biberão. Foi um ano e meio ou dois anos de constante directa, mas teve um lado bom porque entrei num estado que nunca tinha entrado: de vigília constante. Quase não havia diferença entre estar acordado e a dormir. Eu adormecia em cima do berço e, várias vezes, acordava e ele estava acordado a olhar para mim, como se ele é que estivesse a tomar conta de mim. E, se calhar, estava mesmo...
Não é que quisesse fazer um desenho sobre mim e o meu filho, mas queria trabalhar com as figuras de pai e filho, de forma universal. Fiz uma imagem em que uma figura carrega um peixe. Mas tanto pode ser um pai que carrega um filho como um filho que carrega o pai, um filho que toma conta do seu pai.
Quando tive de me tornar pai, tive de crescer muito rapidamente mas, ao mesmo tempo, aconteceu uma coisa de que não estava à espera: ao mesmo tempo que me estava a tornar adulto, voltava a ser criança. Porque através do meu filho a crescer, eu lembrava-me de tudo da minha infância, que até aí estava completamente adormecido. Acho que isso também é universal.
Desenhei sempre, desde criança. Fazia desenhos em rolos de papel higiénico, que depois metia dentro de uma caixa e rodava, como um filme. Ainda hoje, o meu trabalho tem que ver com processos de montagem. De montagem de uma memória. Acho que faço exactamente a mesma coisa que fazia em criança.

3. Durante alguns anos, no dia a seguir ao Natal, ia para Marrocos, para o deserto, e passava lá um mês. Sempre a desenhar. Levava uns tubos. Levava uma mesa desdobrável e uns óculos. E punha-me lá a desenhar. Tem, mais uma vez, que ver com a ideia de que o instrumento é o corpo.
As pessoas aceitam como um dado adquirido que os artistas são animais de casa, animais de estúdio, mas é mentira. Os artistas, no passado, sempre trabalharam ao ar livre. E eu gosto de trabalhar ao ar livre. Tem-se muito mais riqueza de informação para trabalhar. A luz do sol directa. No deserto, não há sombra quase nenhuma. Olhar e ver infinitamente longe. Nunca tinha visto tão longe.
Estava com mais dois, um a fazer um filme e outro fotografias. A nossa premissa era trabalhar do nascer do Sol ao pôr-do-sol. Sempre. Só parávamos para comer. Então, apercebíamo-nos dos ritmos da natureza, dos elementos físicos da natureza. Desenha-se uma paisagem e a paisagem está toda a mudar, porque há uma tempestade que me faz chegar, ao fim do dia, com areia pelo joelho. Sobe a maré, mas é areia. As dunas mexem-se. Vê-se tudo a mudar. Trabalhar ao ar livre tem mais que ver com a vida: tudo está em movimento, nada está parado.
O que é um modelo parado numa aula de desenho? É um morto; não tem nada que ver com o que existe.
Nesses períodos no deserto eu percebia o espaço e o silêncio: quase se adivinha o que os outros estão a pensar. E é uma paisagem temporal. Quanto tempo leva a desfazer tudo em deserto? Todas essas dimensões acabam por vir para o desenho.
Nunca faço isso de ir a um sítio e vir-me embora. Não é o meu estilo. Gosto de entrar mesmo na natureza de um lugar, conhecer bem as paisagens, conhecer bem as pessoas, profundamente e fisicamente - e só depois é que o trabalho começa a ser mais forte. De outra maneira, o perigo é fazer um postal ilustrado.
Todos os meus desenhos demoram muito tempo a fazer, mas eu também quero devolver o tempo a quem vê. Há pessoas que entram numa exposição, e em cinco minutos viram tudo; mas não viram nada. Os meus desenhos tentam fazer esse exercício: de fazer parar e ver com atenção. Se olharmos com atenção e disposição, vemos mais e mais coisas.
O Italo Calvino tem um livro chamado "Seis Propostas para o Próximo Milénio". Concordo com todas, menos uma, que tem que ver com a velocidade. Não acredito que se possa fazer nada melhor por fazer mais rápido: nada. Muito menos arte. Está tudo cheio de pressa. Não sei para ir para onde. Eu não estou. 

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