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Ricardo Reis: "A Europa é dominada por um "conta-favas" de quem recebe e quem paga"

O professor na London School of Economics elogia o ajustamento em Portugal em termos de reformas estruturais e contas públicas, mas diz o sistema financeiro continua de rastos. Reis considera que mais importante que qualquer redução de dívida ou estímulo orçamental, o mais importante é continuar com reformas. Em Portugal e na Europa.

Ricardo Reis, economista e professor da London School of Economics.
Miguel Baltazar
08 de Julho de 2016 às 09:48
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É um dos economistas portugueses com uma carreira internacional mais distinta. Doutourou-se em Harvard nos EUA, a seguir deu aulas na Universidade de Columbia em Nova Iorque durante vários anos, e está agora de volta a este lado do Atlântico, para trabalhar na London School of Economics. É especialista em macroeconomia e economia monetária e financeira, e está integrado no grupo de peritos que, na esfera internacional, contribui para a reflexão em torno dos desafios dos bancos centrais. Foi, aliás, à margem no 3.º Fórum do BCE que conversou com o Negócios.


Como estão os bancos europeus?

Há muita heterogeneidade. O aumento da regulação financeira e das exigências de capital levou a que a maior parte dos bancos esteja em melhor estado e mais resistente a choques. Além disso, a nova regulação e as intervenções do BCE garantem que os problemas de liquidez que em 2008 levaram a uma grande crise não se tenham repetido, apesar dos resultados do referendo britânico. O sistema está muito mais resistente, mas continua a haver fraquezas.

 

Onde?

Em Itália e em Portugal, sobretudo em Itália. Estes sistemas bancários que não se reformaram, não foram limpos, ao contrário dos espanhóis, dos irlandeses e de outros. Mesmo noutros sítios, e aí salta à vista o Deutsche Bank, o valor que o mercado atribui aos bancos andará na casa dos 25% do valor do balanço. Isto diz-nos alguma coisa sobre o que está no balanço na perspectiva dos mercados: ou seja, mesmo que resistam aos choques, antecipam-se problemas no futuro com os modelos de negócio que têm.

 

Estamos cansados de estar em crise na
Europa…

A crise na Europa foi diferente da norte­-americana. Nos EUA, foi uma crise do "subprime", do mercado de hipotecas, enquanto na Europa foi uma crise de dívida pública. Mas ambas tiveram em comum fraquezas do sistema financeiro. O que vimos é que nos EUA houve uma intervenção muito rápida e musculada no sistema financeiro, e na Europa este tem sido um processo muito mais prolongado.

 

Porquê?

Em parte porque nos faltava capacidade institucional – e daí a união bancária – e em segundo lugar porque, dentro da Europa, houve heterogeneidade das respostas nos vários países: Irlanda limpou o seu sistema bancário, e Espanha, em parte, também. Portugal e Itália não o fizeram.

 

Os países que tiveram os maiores choques nos sistemas bancários resolveram-nos mais rapidamente?

Talvez. Não sei medir bem a dimensão dos choques, mas estou tentado a concordar, na medida que os países onde o problema era acima de tudo bancário focaram a atenção na banca. Em países como Portugal, onde o problema era quer bancário, quer económico, quer de contas públicas, não houve tanto enfoque.

 

Faria sentido avançar com um programa europeu de recapitalização dos bancos, usando os instrumentos disponíveis na união bancária?

Seria muito difícil, pois envolveria redistribuição entre bancos mais e menos sólidos, para o que há muito pouco apetite na Europa. Nem sequer um seguro de depósitos comum conseguimos, quanto mais uma intervenção tão directa. Em segundo lugar, voltamos à questão da heterogeneidade. Em 2011, este era um problema comum a toda a banca europeia. Hoje em dia está em algumas zonas e não noutras.

 

Itália tem uma dívida pública elevada, está limitada pelas regras de ajudas de Estado e por isso está a desenhar um modelo em que os bancos saudáveis se expõem aos riscos dos bancos mais frágeis. Considerando o que aprendemos na crise, não parece provável que isto possa resolver o problema de forma definitiva. Vamos deixar andar?

Não sei o que vamos fazer. Neste momento, esse é um grande problema que enfrenta Itália e, por conseguinte, o resto da Zona Euro. Os italianos propuseram uma solução há uns meses que não era compatível com as regras europeias e apresentaram há dias a mesma solução, esperando que, com o Brexit, consigam passá-la [pelo crivo da Comissão Europeia].

 

Vamos a Portugal. Após terminar um programa de ajustamento duro e longo, rebenta o BES, depois o Banif e agora sabemos que a CGD precisa de vários milhares de milhões de euros. Onde falhámos?

Na perspectiva da troika, o programa que assinámos era um acordo que assentava, em grande parte, numa mudança estrutural da economia de forma a tentar combater a nossa grande fraqueza: o facto de a economia não crescer há 15 anos. E, aí, houve imensas reformas estruturais que tentaram combater rendas elevadas, flexibilizar um pouco o mercado de trabalho, recuperar o mercado de arrendamento. Em segundo lugar, o programa visava lidar com o desequilíbrio das contas públicas, visto que há 13 anos que estávamos a desrespeitar os limites do Tratado de Maastricht; e havia um terceiro pilar que era a reforma do sistema bancário. Muita da energia do governo anterior e do programa da troika foi para os dois primeiros pontos, com menos atenção ao terceiro.

cotacao O sistema financeiro português continua de rastos.

Que balanço faz do programa de ajustamento?

Em dois dos três pilares houve resultados, com mudanças estruturais importantes – que, com algum receio meu, estão a ser revertidas em parte neste momento. Ao nível das contas públicas, entre 2011 e 2012, Portugal teve a primeira redução na despesa pública na história da democracia. Embora algumas pessoas gostassem de ver mais – e talvez eu seja uma delas –, houve uma contracção nos primeiros dois anos do último governo – nos dois últimos anos, não tanto. Nesses lados, houve progressos. Em relação ao sistema bancário, é uma questão de olharmos para o copo meio cheio ou meio vazio. Olhando simplesmente para o facto de um ano após o final do programa continuarmos com um sistema financeiro de rastos é, por definição, um falhanço do programa. Não é que o sistema esteja pior do que há quatro anos, mas continua de rastos.

 

E o copo meio cheio?

Houve melhorias. A resolução do BES, que foi um ponto marcante na relação dos nossos governos com o sistema financeiro, em que se deixou finalmente que terminassem algumas relações incestuosas e se limpou o que lá passava. Em termos de recapitalização do BPI, que está em melhor estado, embora infelizmente enfrente problemas de outra natureza. Até mesmo o reconhecimento das perdas na CGD, e as reformas que possam ser feitas. Há progresso. Mas custa-me, ainda hoje, compreender porque é que, em 2011 e 2012, quando começou o programa, não se fez o que se fez em Espanha ou na Irlanda: contratar uma BlackRock [uma conhecida empresa de avaliação de activos] e fazer uma grande avaliação da qualidade dos activos dos bancos.

 

Recentemente, um responsável da Comissão Europeia pelo acompanhamento dos sistemas financeiros nacionais reconheceu em Lisboa exactamente isso, dizendo que na altura subavaliaram o problema …

Não houve agressividade suficiente, mas não vamos culpar os estrangeiros. Se não fizemos, foi porque não quisemos. A troika poderia ter forçado mais, mas houve enorme resistência das elites portuguesas. Se o tivéssemos feito em 2011, o BES e o Banif teriam caído imediatamente.

 

Quão relevante é a reconfiguração do sistema bancário português e o debate sobre a espanholização da banca?

Um problema grande em Portugal tem sido o uso do sistema financeiro pelos grandes grupos económicos de forma a apoiar o próprio grupo. Ou seja, como uma forma de aceder a financiamento via depósitos das pessoas. Nessa medida, a portugalização da banca tem sido um dos seus pecados que já dura há mais de 40 anos. Romper com esse sistema em que os accionistas dos grandes bancos são, ao mesmo tempo, os devedores desses bancos é um passo muito importante para o sistema bancário. Talvez agora o consiga fazer, e consiga evoluir para um sistema financeiro independente do tecido produtivo da economia, e que tem com ele uma relação de mercado. Se a única forma de fazer isso é vender os bancos aos estrangeiros, então talvez valha a pena. Será que é possível haver um grupo português capaz de criar um grupo financeiro em Portugal com ênfase nas finanças e não no financiamento das aventuras dos accionistas? Não sei: essa é uma grande incógnita. Mas o mais importante é mudar o modelo de funcionamento da banca.

 

Novo Banco. Seria melhor ficar em mãos nacionais ou é até melhor entregá-lo a um grupo estrangeiro, a bem da concorrência?

Antes de sermos esquisitos sobre o comprador é preciso saber se alguém o quer efectivamente comprar a um bom preço. Em segundo lugar, é importante notar que esta é uma escolha de mercado: nós aceitávamos estar no mercado único, onde as "golden shares" já não existem e onde as preferências por accionistas portugueses face a estrangeiros são ilegais. O ilegal não quer dizer que muitos países não exerçam essas influências, e não quero ser purista. Mas, em primeiro lugar, devemos é tentar vender o banco.

 

Qual balanço dos primeiros sete meses do Governo?

Do lado positivo, vejo a continuação de um compromisso muito forte com a Europa e com os compromissos assumidos com os parceiros internacionais, o que não era de todo claro há oito meses, tendo em conta que dois partidos que apoiam o Governo no Parlamento são profundamente antieuropeístas e anticumprimento das obrigações internacionais. Também é muito positivo que a corrente do PS que defendia que se deveria bater o pé à Europa não se tenha ainda visto. A ideia de bater o pé à Europa, num país altamente endividado e na actual situação política europeia, seria um grave erro, pois estamos muito dependentes.

 

E do lado negativo?

É importante realçar o rasgar de compromissos internacionais: a reversão das privatizações, seja na TAP ou nos metros, faz perder credibilidade externa no investimento estrangeiro, isto num país tão dependente do financiamento. Estas coisas não têm um efeito visível no curto prazo, mas fazem muita diferença no longo prazo. O segundo ponto negativo é o risco de que o consenso em torno da necessidade de reformar e combater interesses instalados possa abrandar, permitindo o aparecimento de rendas em vários sectores, quer se chamem estivadores, taxistas, banqueiros, ou outros que conseguem defender-se da concorrência.

 

Portugal consegue crescer com uma dívida pública de quase 130% do PIB, e dívida privada ainda piores?

A dívida pública e a dívida privada não são o grande impeditivo do crescimento português. O maior impeditivo é uma reversão das reformas dos últimos anos que levaram a que sejamos uma mais economia aberta, mais competitiva, mais focada nas exportações, e com uma maior ênfase na concorrência e na produção de valor, por oposição à protecção de interesses. Não vejo onde é que tal seja incompatível com o nível de endividamento actual.

 

Sem a Zona Euro crescer mais, Portugal consegue recuperar?

A Irlanda está a crescer a 4% ou 5%.

 

Uma comparação entre a economia portuguesa e irlandesa, dada a sua estrutura, pode ser injusta, não?

A Irlanda fez reformas há 30 anos, que nós ainda estamos a fazer agora. E voltou a fazer reformas há dois ou três anos.

 

Alguém defendia que Portugal poderia ser a Irlanda se o Brasil fosse os Estados Unidos…

Pode ser, mas o meu ponto não é que devemos ser como a Irlanda, mas antes que podemos crescer mesmo com a Zona Euro a crescer pouco. Nos últimos dois anos, crescemos mais do que a Zona Euro. Este ano já não.

cotacao A portugalização da banca tem sido um dos seus pecados que já dura há mais de 40 anos. 

Qual é o risco de estagnação da Zona Euro?

Se definirmos crescimento abaixo de 2% como estagnação, o que acho que é a definição correcta, então o risco é muito elevado.

 

E como saímos disso?

A Europa sai disto, em parte, com uma reforma do seu sistema financeiro, com novas regras de regulação financeira, assim como a criação de uma obrigação comum segura; em segundo lugar, é preciso um maior foco da Europa no crescimento da zona como um todo, e menos com a redistribuição do dinheiro. A Europa hoje é dominada por um "conta-favas" de quem recebe e quem paga, e não por uma preocupação sobre como pôr o continente todo a crescer.

 

Mas não falta mecanismo de reequilíbrio na união monetária? 

Criámos a união bancária e ainda temos de a acabar; temos de criar uma obrigação segura; e seria uma boa ideia, a médio prazo, criar alguns sistemas de redistribuição orçamental, como um subsídio de desemprego – o que é hoje impossível, dada a heterogeneidade de legislação laboral. Mas, com a excepção do sistema financeiro, não creio que seja a falta desses mecanismos que esteja a parar o crescimento.

 

A ideia de uma obrigação comum sem risco é uma entre várias propostas que favorecem mais integração da Zona Euro. O Brexit deve impulsionar essa integração?

Não. Em relação ao Brexit, creio que o importante é aprofundar a coesão entre os outros 27 Estados-membros, e isso até pode significar menos integração, de forma a haver mais pontos de acordo. Em segundo lugar, há alguns pontos estratégicos, que têm que ver com o completar da união monetária e bancária, onde é preciso fazer mais alguma coisa: a obrigação segura, alguns sistemas de resgate financeiro. Mas isso são coisas muito localizadas e que têm pouco que ver com soberania nacional. Em terceiro lugar, há uma reflexão que temos de fazer na Europa sobre como este movimento anti-União Europeia é, sim, um movimento de insatisfação mais geral dos eleitorados, o qual tem de ter resposta. E a resposta é o crescimento económico.

 

Estamos a salvo de turbulências graves em reacção ao Brexit?

As previsões da maioria dos economistas não apontavam para um choque enorme, mas antes para um empobrecimento de todos, a médio e longo prazo, na medida em todos vamos crescer menos. Sabemos que, no curto prazo, vai haver alguma volatilidade, mas não sabemos até que ponto algumas partes do sistema financeiro resistirão a essa volatilidade. Embora o sistema financeiro europeu como um todo deva conseguir resistir a esse choque, é uma incógnita maior se os bancos italianos ou portugueses conseguirão, e se os países como Portugal com dívida arriscada conseguirão resistir. Os primeiros sinais são positivos, mas é muito cedo para avaliar.

cotacao A dívida pública e a dívida privada não são o grande impeditivo do crescimento português. 

A Europa deveria encontrar um mecanismo de redução da dívida pública?

Concordo com muitas das propostas que dizem que seria bom limpar a dívida pública, e existem vários mecanismos possíveis. Mas, reconhecendo que sou uma minoria entre a comunidade dos economistas, não acho que essa seja a maior prioridade.

 

Então qual é a maior prioridade?

Apostar no crescimento, na liberalização da economia, na promoção do comércio internacional, no combate às rendas, nas reformas, não só em Portugal. É preciso combater as ineficiências no mercado laboral francês, as enormes ineficiências que continuam a existir em Espanha. É preciso promover a concorrência, o combate às rendas, e a reforma do sistema financeiro, de forma que deixe de financiar empresas pouco produtivas. Há muitos ganhos que se podem fazer aí.

 

Não alinha com o diagnóstico de que há um problema de falta de procura na Zona Euro?

Alinho e concordo que deveria haver uma expansão orçamental na Zona Euro como um todo, mas acho que o problema é mais estrutural, e, portanto, isso não ocupa o meu primeiro lugar na lista. E aqui sou também uma minoria entre os meus colegas, visto que a maioria considera que a prioridade deveria ser dada a uma expansão orçamental. Eu concordo, mas acho que isso vem em segundo lugar face às reformas estruturais. E só em terceiro lugar, surge o peso da dívida pública. 


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