Os países do G7 enfrentam uma perda anual de 8,5% do PIB em 2050 se as temperaturas subirem 2,6 °C e o mundo não for mais assertivo a reduzir as emissões de gases com efeito de estufa (GEE). As projeções do Swiss Re Institute, divulgadas em junho, ganharam nova força com o mais recente relatório do IPCC (Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas). Pedro Matos Soares, físico da atmosfera, está envolvido no consórcio internacional de modelação climática regional (CORDEX) e é autor de vários estudos citados no documento do IPCC. Investigador principal no Instituto Dom Luiz, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, coordena um novo projeto, com o apoio dos EEA Grants (European Economic Area Grants), que envolve o Banco de Portugal e vai medir o impacto do aquecimento global, também na economia nacional.
O que nos diz de novo o último relatório do IPCC?
Não tendo grandes novidades em termos de resultados, o relatório é muito importante pela solidez sem precedentes e pelo caráter científico à prova de bala, transmitindo uma mensagem ainda mais assertiva. Baseia-se num vastíssimo conjunto de artigos científicos (14 mil) e em mais e melhores observações da Terra, utilizando modelos físico-matemáticos altamente sofisticados que permitem perceber com bastante clareza a evolução do sistema climático. Não há dúvidas de que a ação humana e a consequente emissão de gases com efeito de estufa (GEE) estão a provocar o aquecimento global, a modificar os padrões de precipitação e a gerar uma intensificação e uma maior frequência dos extremos climáticos. Nunca registámos uma taxa de aquecimento com esta intensidade, nem uma subida tão elevada do nível médio do mar; nunca houve tanto degelo das zonas do Ártico, tal como o recuo dos glaciares em 2000 e 3000 anos...
Vivemos extremos climáticos sem precedentes?
Basta olhar para tudo o que está a acontecer: fogos, cheias, ondas de calor, secas. Neste momento, estou na Sicília, e ora estamos em estado de emergência por causa dos incêndios, ora por causa da pandemia – andamos de estado de emergência em estado de emergência. Os fenómenos extremos eram uma realidade há muito projetada, mas muitas vezes ignorada: nós não queríamos ver. Assistimos a alguma incúria coletiva nas últimas décadas. E agora culpamos as alterações climáticas por tudo, como se não fôssemos os responsáveis pelas mesmas. Era uma trajetória muito clara desde os anos de 1990, os alertas foram aumentando e, no relatório do IPCC, os cientistas deixam antever que esta é a última chamada de atenção – depois será tarde demais.
Já não é tarde demais?
Não é tarde demais para mitigar efeitos e os impactos. Há muito a fazer e estamos a tempo de efetivar uma verdadeira diferença. Queremos um mundo próximo do acordado pelo Acordo de Paris. Estamos muito atrasados, é verdade, mas ainda podemos lá chegar. Não devemos ignorar que um mundo em que a temperatura média global sobe 1,5 °C é diferente de um mundo em que a temperatura aumenta 2 °C e radicalmente diferente de um mundo em que sobe mais de 4 °C (como no pior cenário traçado pelo relatório para o final do século). Um exemplo simples: imaginemos um extremo de temperatura que ocorre a cada 50 anos. Com uma temperatura média global superior em 1,5 °C, a probabilidade de esse fenómeno ocorrer é oito vezes maior; se a subida for de 2 °C, a probabilidade é 14 vezes superior. Se a subida de temperatura for de 4 °C, a probabilidade dessa ocorrência é 40 vezes superior.
Quais as principais vulnerabilidades de Portugal?
A vulnerabilidade de Portugal resulta de uma combinação de fatores. Existem projeções severas que apontam para o aumento do número de ondas de calor e da sua duração, sobretudo no interior do país. Estima-se também um aumento das ondas de calor na zona oceânica, embora este aumento seja mitigado pelo oceano. E há igualmente projeções de redução de precipitação. Assim, assistiremos a temperaturas mais elevadas e a uma menor precipitação – e este é um binómio assustador. Teremos mais evaporação e menos água no solo e, desta forma, menos água disponível para as pessoas e para todas as atividades económicas. Com o aumento da temperatura e uma menor precipitação, a floresta entrará em stress hídrico e existirá um maior risco de incêndios; em toda a zona do Mediterrâneo, teremos extremos de temperatura combinados com perda de precipitação, e esta é de facto uma combinação muito perigosa – é realmente das coisas que mais nos preocupam. Poderemos assistir a secas mais frequentes, com a biomassa cada vez mais seca. Estes fenómenos, associados a vento intenso, podem originar incêndios muito devastadores.
Um país à beira-mar plantado também tem os seus perigos.
Portugal enfrenta igualmente a subida do nível médio do mar. As projeções apontam para a ocorrência de menos tempestades, mas estas serão mais intensas. A nossa costa está sob ameaça de inundação e enfrenta graves problemas de erosão, e já estamos a ver os efeitos, sobretudo no Norte. Aliás, toda a bacia do Mediterrâneo, Portugal incluído, é um "hotspot" de vulnerabilidade às alterações climáticas, face aos fatores cumulativos de aumento da temperatura, diminuição da precipitação e subida do nível médio do mar.
Lidera uma investigação, com o apoio dos EEA Grants, para medir os impactos em Portugal do aquecimento global, também na economia – um projeto que envolve o Banco de Portugal. Já têm resultados preliminares?
Ainda não, trata-se de um projeto a três anos que começou há nove meses. Vamos avaliar o impacto do aquecimento global no país, sobretudo em setores de maior vulnerabilidade: falamos de recursos hídricos, incêndios, zonas costeiras e agricultura. Iremos recorrer a estudos de macroeconomia relacionados com alterações climáticas, os chamados "Global Equilibrium Models", modelos de equilíbrio que apresentam uma visão multissetorial. Segundo um relatório recente da Oxfam, baseado na investigação do Swiss Re Institute, os países do G7 podem enfrentar uma perda de PIB anual de 8,5% nos anos de 2050, caso continuemos na atual trajetória e se não formos mais assertivos na transformação da economia e na redução das emissões de CO2 (de acordo com a mesma projeção, a economia portuguesa recuará 6,3%). Na nossa investigação, iremos partir dos diferentes cenários de evolução das emissões de gases com efeito de estufa apresentados pelo IPCC e avaliar as perdas potenciais em termos de PIB nacional.
É preciso mobilizar os atores económicos para concretizar ações políticas?
A economia é um parceiro essencial para resolver o problema das alterações climáticas. O nosso modelo de desenvolvimento permitiu-nos alcançar bem-estar, mas à custa da externalidade do "podemos poluir à vontade". Na verdade, a emissão dos gases de estufa tem custos diretos na atividade económica e na sociedade. Continuar a agir da mesma forma é um erro basilar, e impede uma economia de bem-estar duradoura. É continuar a fingir que não temos um problema.
Tem esperança de que esse modelo de desenvolvimento se altere?
Um dos problemas em torno da ação climática tem que ver com o recrudescer de movimentos populistas negacionistas (quer em relação à pandemia, quer em relação ao aquecimento global). Estas são posições por vezes assumidas por líderes que têm uma dimensão global, como foi o caso de Trump – que teve um efeito extremamente nefasto no movimento de transformação do mundo. Os Estados Unidos puseram a questão climática em banho-maria durante cinco anos. É por isso que o relatório do IPCC diz que é agora ou nunca.... Mas estou realmente preocupado. Ainda vivemos em pandemia, as pessoas querem sair rapidamente da crise – isso compreende-se claro –, adotando formas de desenvolvimento antigas, sem pensar a longo prazo. Vemos muitos sinais disso. Segundo o Global Energy Review 2021, o relatório anual da Agência Internacional de Energia, em 2021 as emissões de dióxido de carbono deverão registar o segundo maior aumento anual da história, o que é realmente angustiante.
O relatório do IPCC é sobretudo um instrumento de pressão política?
É também um instrumento para a decisão política. Os decisores não podem ignorar o que se passa. Até agora, desresponsabilizaram-se, uns a fingir que faziam, outros a fazer um pouquinho. O documento aponta o cenário a que chegaremos caso não façamos nada, apresenta caminhos intermédios, e indica a trajetória que alcançaremos se reduzirmos drasticamente as emissões. Como sociedade, não podemos permitir que os decisores políticos ignorem uma mensagem tão inequívoca. As pessoas votam, têm voz, devem mobilizar-se. Nós elegemos os nossos decisores políticos, temos de defender o melhor para o nosso futuro e para o futuro dos nossos filhos e netos.
Como avalia o Green Deal europeu?
É uma grande oportunidade, mas é ainda cedo para monitorizar o seu efeito. Vai no sentido certo, mas penso que precisamos de ser muito mais ambiciosos. A taxa de carbono sobre importações, recentemente proposta pela UE, é algo muito importante. Em abril, durante a Cimeira dos Líderes sobre o Clima, o Presidente norte-americano, Joe Biden, comprometeu-se a reduzir entre 50% e 52% as emissões de gases com efeito de estufa até 2030. Já a China prometeu neutralidade carbónica até 2060, mas entretanto ainda irá aumentar as emissões durante cinco ou dez anos. A Rússia não assumiu compromissos, dizendo acreditar numa transformação tecnológica... Se estes países, grandes emissores de gases de estufa, não assumirem o compromisso firme de redução das emissões, tudo será mais complicado. Cumulativamente, as maiores economias na Organização Mundial de Comércio (OMC) terão de avançar para uma taxação dos produtos com emissões associadas, ou não iremos a lado algum. Trata-se de trazer a questão económica para o centro do problema e de ir ao encontro de uma economia com menos externalidades... Há muito tempo que o defendo. Não sou economista, nem quero ser demasiado economicista, mas só teremos um caminho com futuro se pensarmos na sociedade de uma maneira mais global e justa. Estamos atrasados nesta transformação – que é uma transformação difícil, claro, e acarreta um investimento imenso.
Seriam necessárias medidas mais musculadas?
Como sociedade, temos mesmo de escolher o que queremos para o mundo. É radicalmente diferente o cenário em que nos comprometemos a reduzir efetivamente as emissões de uma maneira mais ou menos abrupta, e o cenário em que não o fazemos. E o fardo económico das alterações climáticas já chegou. Basta atendermos às perdas económicas geradas pelas tempestades e inundações do centro da Europa ou aos prejuízos associados às sucessivas secas e ondas de calor nos Estados Unidos (em 2020, as perdas económicas resultantes dos desastres naturais ocorridos em todo o mundo atingiram os 220 mil milhões de euros, de acordo com o estudo "Weather, Climate & Catastrophe Insight", desenvolvido pela corretora de seguros Aon).
O que é que cada um de nós, individualmente, deve fazer mais?
Temos de olhar para nós próprios e não nos podemos desresponsabilizar. Devemos consumir de maneira diferente. Não quero dizer que tenhamos de perder a nossa cultura ou os nossos hábitos, mas podemos fazer algumas coisas de outra forma, e se calhar até enriquecemos a nossa vida. Devemos viver em comunhão com o ambiente, não contra o ambiente. Percebemos, por exemplo, que felizmente há mais pessoas a consumir menos carne: sabemos que a carne de vaca é muito intensa do ponto de vista das emissões de CO2 e do consumo de água; nós não precisamos de comer carne todos os dias. E, em vez de importarmos, podemos consumir mais carne produzida localmente e de forma mais sustentável – assim, já reduzimos a pegada ecológica. Há que apostar numa versão mais local, consciente. Ao mesmo, se calhar, também não deveríamos viajar tanto. Há muita gente que é vegetariana e que depois viaja de avião todos os fins de semana – do ponto de vista ambiental, é contraditório e mostra uma visão da vida um bocadinho estranha. Devemos também ter uma mobilidade diferente dentro das cidades. Porque não investir mais em soluções eficientes de transportes partilhados, por exemplo?
Para melhorar a mobilidade nas cidades, são necessários melhores transportes públicos e também um investimento efetivo na ferrovia, por exemplo.
O desinvestimento em ferrovia é, todo ele, contemporâneo do discurso da preocupação com as alterações climáticas... São várias as contradições em torno do debate sobre a transição energética. Basta recordar que, no primeiro mandato, o Governo estava a promover a exploração petrolífera em Portugal – e isto ao mesmo tempo em que falava de economia verde. Felizmente, apareceram vários movimentos cívicos a contestar essa exploração. Individualmente, podemos também adotar um consumo energético mais eficiente, comprando melhores lâmpadas ou produzindo a nossa própria energia, por exemplo. Devemos proteger os espaços verdes, assegurar o reequilíbrio dos ecossistemas e defender florestas – alguns países, como Irlanda e Escócia, assumiram que não iriam continuar a investir em atividades associadas a combustíveis fósseis. Se eventualmente comprarmos ações, devemos estar atentos ao tipo de investimento e podemos recorrer aos chamados bancos verdes, por exemplo.
É físico da atmosfera, especializou-se no tema das alterações climáticas. Porquê?
Em miúdo, eu já era ambientalista. No final da adolescência, trabalhei como fotógrafo da natureza e sentia realmente uma ligação muito forte com o campo – nasci em Lisboa, na Bica, e aos 17 anos até fui viver para o Alentejo. Eu gostava da natureza, mas também gostava muito de física e de matemática. Para ligar as duas coisas, estudei a física da terra. Comecei a preocupar-me ainda mais com as questões ambientais, com a modelação do sistema climático, e fiz o doutoramento em física das nuvens. Desde miúdo que estou também atento ao drama dos refugiados – é realmente dramático que as pessoas tenham de fugir dos seus países por causa de guerras ou por falta de modos de subsistência. Infelizmente, ainda hoje se movem por causa de conflitos, mas a maior parte fá-lo devido a problemas ambientais. Nos últimos anos, assistimos a um grande aumento do número de deslocados por causa de desastres hidrometeorológicos, de inundações, de secas, etc. São cerca de 20 milhões de pessoas por ano (segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) e estima-se que, até 2050, esse número atinja entre 200 milhões a mil milhões de pessoas!