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O grande poder de Erdogan

A tentativa de golpe de Estado serviu para Erdogan reforçar o seu poder, avançando para um regime presidencialista. Resta saber até onde caminhará a “limpeza”. E se ficará pelos seguidores de Gülen.

29 de Julho de 2016 às 12:00
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Se alguém desejava que Recep Tayyip Erdogan fosse o poderoso sultão da Turquia, a tentativa de golpe de Estado militar deu-lhe os restantes trunfos do naipe de cartas do jogo. A "limpeza" em curso de tudo o que eram vestígios da complexa teia montada na sociedade turca pelo clérigo Fethullah Gülen e seus seguidores avança a todo o vapor. Milhares de militares (incluindo 124 generais e almirantes num total de 558 das Forças Armadas turcas, e 283 membros da guarda presidencial de um total de 2.500 homens), juízes, professores ou jornalistas foram presos ou afastados de funções. Quinze universidades e milhares de escolas que foram acusadas de ter ligações ao movimento de Gülen foram encerradas. E sabe-se que a teia de Gülen apostava nos pilares da sociedade: escolas, associações de apoio social, sindicatos ou postos médicos.

Gülen, que outrora caminhara lado a lado com Erdogan para o poder, tornou-se o inimigo público número um do poder na Turquia. Só que isso incendeia aquela que era uma das mais sólidas alianças da Turquia: aquela que, durante anos, foi construída com os Estados Unidos e que tinha como vector visível a NATO. Gülen vive exilado nos EUA desde 1999 e o pedido de extradição, um ponto de honra para Erdogan, pode envenenar ainda mais as relações entre os dois países, algo com potenciais implicações no complexo grande jogo de redefinição de fronteiras e poderes que percorre o Médio Oriente. Gülen, de 75 anos, negou qualquer participação numa tentativa de golpe, mas isso já é um pequeno pormenor. Este serviu perfeitamente para Erdogan reforçar o seu poder, avançando para um regime presidencialista e, por outro lado, pôr em sentido outros sectores da oposição (a maioria dela declaradamente contra o golpe). Resta saber até onde caminhará a "limpeza" de Erdogan. E se ficará pelos seguidores de Gülen.

Gülen e o "poder paralelo" na Turquia

A ligação de Gülen aos EUA tem estado na mira das autoridades turcas. Até porque Ancara crê que ficou claro a "deslealdade" dos líderes políticos ocidentais nos dias do golpe e Gülen tem sido uma conexão proveitosa para as agências de informação norte-americanas durante os últimos anos. Gülen, nascido em 1941 perto de Erzurum, começou a ser conhecido como clérigo e intelectual na década de 1970, advogando uma educação moderna, diálogo entre fés diferentes e activismo teológico. Daí a sua actividade em diferentes sectores da sociedade, desde o da educação, aos media e aos negócios.

O movimento de Gülen apresentou-se sempre como uma força moderada, recusando o Islão como ideologia política. As suas acções estendem-se hoje a 160 países, com milhões de seguidores. Há quem acuse o movimento de ter um "lado negro", que visaria ser um Estado dentro do Estado (a começar pela Turquia).

É certo que as relações entre Erdogan e Gülen não foram sempre opostas. Durante décadas, o actual Presidente turco foi próximo de Gülen e eram, em conjunto, opositores do poder kemalista na Turquia. Ambos ambicionavam transformar o país numa nação nacionalista com um poder religioso conservador. Gülen suportou o caminho do AKP de Erdogan rumo ao poder. Mas os sectores judicial e policial ligados a Gülen acabaram por começar a investigar partidários de Erdogan e o clérigo criticou abertamente o Presidente pela forma como tratou os protestos do Parque Gezi em 2013. A ruptura consumou-se. A gota que transbordou o copo, antes da tentativa de golpe militar, aconteceu quando, no ano passado, Gülen e os apoiantes tentaram implicar vários empresários e políticos ligados ao AKP em diversos casos de corrupção. A divulgação de escutas de conversas entre estes fez com que o Governo turco acusasse os sectores ligados a Gülen de estarem a fazer escutas ilegais. O que implicava, indirectamente, membros das forças policiais, militares e judiciais numa teia de cumplicidades ligadas ao clérigo. Ou seja, havia um "poder paralelo" na Turquia. O epílogo começava a desenhar-se.

O pilar do movimento de Gülen era a educação. Elas, na Turquia, serviram para educar jovens em princípios que ligavam a modernidade, a secularidade educativa e uma visão conservadora do mundo. Elitistas, misteriosos e modernos, os membros da rede de Gülen praticavam missões no exterior (com particular incidência na Ásia Central e Cáucaso, mais abertas à influência turca, a começar pela Albânia, Bósnia, Macedónia, Azerbeijão, Cazaquistão e outros), como outrora tinham feito os jesuítas. Há quem diga que o movimento tem também cerca de uma centena de escolas nos EUA. No fundo, a lógica de influência e conexão guiou sempre o movimento de Gülen. Algo que choca com a lógica de poder de Erdogan.

A grande dúvida é como um movimento que aposta no longo prazo como o de Gülen entrou numa não muito inteligente tentativa de golpe de Estado militar. Talvez pressionado pela purga que Erdogan já pensaria há muito, sobretudo no sector militar. O resultado foi uma declaração de estado de emergência durante três meses e a "limpeza" geral que está a afectar toda a sociedade. Há ainda muitas questões por responder. Erdogan, apoiado nas ruas, ganhou um novo foco de legitimidade democrática. E qualquer oposição corre o risco de ser identificada como "terrorista". Erdogan parece agora controlar tudo. Mas será assim? Erdogan tem mais força política, mas uma "limpeza" desta envergadura deixa o Estado turco mais frágil.

A tentativa de golpe criou também fissuras na relação da Turquia com outras potências. A começar pelas ligações com os Estados Unidos que ficam muito dependentes da forma como Washington, que sempre viu Gülen como um "activo" na luta contra grupos radicais do Islão e mesmo outras facções islâmicas, responderá ao pedido de extradição de Erdogan. Isso tem implicações na luta contra o Estado Islâmico nos complexos campos de batalha da Síria (onde as posições da Turquia e dos EUA não são coincidentes) ou do Iraque. Para já não falar na forma como ambos os países encaram as relações com o Egipto do general al-Sisi. Por outro lado, ficou visível que a Arábia Saudita (à qual Gülen terá ligações fortes) não é fã de Erdogan.

As críticas audíveis à contra-ofensiva do Presidente turco ganharam eco nos jornais sauditas dominados pela família real como no Asharq Al-Awsat do príncipe Faisal bin Salman (filho do rei Salman), havendo um articulista a comparar Erdogan com o ayatollah Khomeini (o "grande satã" para os sauditas). Um outro articulista avisava Erdogan que o poder não é eterno e que esta vitória ainda se poderia transformar em derrota. Ou seja, a tentativa de golpe na Turquia tem um âmbito mais vasto em toda a região e mesmo na Europa. Resta saber agora como Erdogan vai gerir o seu novo poder e até onde irá para se proteger dos seus inimigos. E se, ao fazê-lo, não porá também em causa um outro equilíbrio importante: o que ainda mantém com a oposição kemalista, crítica contundente do seu cada vez maior poder pessoal.


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