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Nuno Lopes: É surpreendente que a arte tenha retratado tão pouco a crise

No filme “São Jorge”, em exibição nos cinemas, Nuno Lopes dá rosto a um pugilista que faz cobranças presenciais, uma interpretação premiada no Festival de Veneza. Um filme que retrata o desespero em que muitos portugueses vivem. O actor e o realizador Marco Martins estão agora a preparar uma peça de teatro em Great Yarmouth, no Norte de Inglaterra, onde muitos emigrantes portugueses trabalham numa fábrica de desossar perus.

Miguel Baltazar
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Há uma frase de Tennessee Williams que Nuno Lopes gosta muito. "Viver para lá do desespero e ainda assim viver." É sobre isso que fala a peça "A Noite da Iguana", que esteve no São Luiz com o actor no papel de um pastor alcoólico. É sobre isso que fala o filme "São Jorge", realizado por Marco Martins, que junta o mundo do boxe com o mundo das cobranças difíceis e que valeu a Nuno Lopes o prémio de interpretação na secção Horizontes do Festival de Veneza. Foi também desespero o que se sentiu em "Estaleiros", peça de teatro dirigida por Nuno Lopes e Marco Martins em 2012 e feita com histórias e pessoas reais dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo. A dupla tem estado agora em Great Yarmouth, no Norte de Inglaterra, onde muitos emigrantes portugueses trabalham numa fábrica de desossar perus. Contar histórias reais com pessoas reais é quase uma urgência em tempos difíceis. 


"São Jorge" começa por ser uma ideia sua. O que o fascinava no mundo do pugilismo?

Eu tinha vontade de representar um "boxeur", desde pequenino que sou fascinado pelo boxe no cinema, é um desporto muito cinematográfico. Por outro lado, eu e o Marco (Martins) queríamos falar sobre gente pobre, sobre sobreviventes. Tenho tido oportunidade de representar muitos heróis, mas os meus grandes heróis são as pessoas que conseguem sobreviver em contextos duríssimos. Tennessee Williams tem uma frase que eu adoro: "Viver para lá do desespero e ainda assim viver." Falar de boxe em Portugal é falar sobre isto. E a metáfora de alguém que luta literalmente pela vida era algo que me interessava. 

 

Como no filme "Berlarmino", de Fernando Lopes, sobre o pugilista Belarmino Fragoso.

Sim, o próprio Berlarmino é um sobrevivente. Encanta-me quando, no filme, ele diz que por vezes tinha de pedir esmola para poder comer algo antes de lutar, tinha de pedir duas carcaças antes de ir para o ringue. Falar de boxe em Portugal é realmente falar de sobreviventes, os campeões não são milionários como nos Estados Unidos, os nossos campeões são pobres. Durante a pesquisa para o filme, assistimos ao último combate do Nuno Cruz, o "Guerreiro do Norte", um dos melhores pugilistas de todos os tempos em Portugal. O combate, que era a despedida dele do boxe, foi feito no meio de um "shopping"! Isto é o máximo a que um pugilista de topo pode aspirar em Portugal. Interessava-me este lado quase "decadente" do boxe, um desporto que é ao mesmo tempo muito espectacular. As entradas no ringue são sempre um "show", há uma música especial, alguns pugilistas usam um chapéu mexicano. Há todo um lado histriónico como acontece em LA, só que em Portugal, isso acontece, na melhor das hipóteses, num "shopping"!

 

Este filme resulta de uma construção de cinco anos, de um trabalho de campo intenso. É sempre assim?

Os meus trabalhos com o Marco são quase sempre assim, pesquisamos muito. Começámos por saber quem eram as pessoas do boxe em Portugal, descobrimos muitos ginásios, encontrámos o Paulo Seco, o meu treinador no filme e na vida real, uma pessoa muito generosa que nos abriu as portas para este mundo dos indivíduos que combatem ou, melhor, das pessoas que jogam – os "boxeurs" não usam a expressão "combater", mas sim "jogar", algo que reflecte bastante aquilo que pensam. Há muitos pugilistas que saem do ringue com a cara desfeita, abraçam-se ao adversário e dizem: jogaste muito bem. A associação do boxe a um desporto violento é uma ideia completamente errada. O boxe é um desporto que tem que ver, sobretudo, com respeito.

 

E como chegaram depois ao mundo das cobranças presenciais?

A Mariana Fonseca, que nos ajudou a fazer a pesquisa, começou a entrevistar pugilistas e um deles confessou que fazia cobranças presenciais, cobranças que implicam uma presença física. A história interessou-nos de imediato – a história de uma pessoa com dívidas que, para conseguir pagá-las, cobra dívidas a pessoas que estão na mesma situação. Isto era um princípio de guião. Apercebemo-nos de que havia muitos casos de gente do boxe a fazer cobranças, sobretudo na altura em que a troika esteve em Portugal e, por isso, as cobranças passaram a interessar-nos quase mais do que o boxe. Depois começámos uma terceira fase de pesquisa, nos bairros sociais.

 

No bairro da Bela Vista, em Setúbal, e no bairro da Jamaica, no Seixal. Já os conheciam?

Não conhecia estes dois bairros especificamente, mas cresci nos subúrbios de Lisboa, conheci muitos bairros sociais da Amadora e andei na escola com os miúdos das Fontaínhas. Estes mundos não me eram estranhos mas, claro, as realidades mudam muito de bairro para bairro e há uma diferença abismal entre a Bela Vista e a Jamaica. Na minha opinião, o bairro da Bela Vista é uma experiência social falhada. Juntaram pessoas de várias origens, caucasianas, negras e ciganas, e obrigaram-nas a viver juntas, e elas não querem viver juntas e, portanto, há um conflito racial enorme e sente-se essa tensão no bairro. Não se vê gente a sorrir na Bela Vista.

 

As tentativas de inclusão e integração social de gentes de várias origens não funcionaram?  

Não funcionaram. Apesar de termos sido muito bem recebidos e apoiados pelas pessoas do bairro da Bela Vista, sente-se um ambiente muito pesado. Já o bairro da Jamaica foi quase todo ocupado por gente da mesma comunidade e há ali uma ideia de família, é um bairro onde nos sentimos muito bem, onde há uma alegria enorme, onde há festas todos os sábados. Isso está retratado no filme, o Jorge sente-se melhor na Jamaica, o coração dele está na Jamaica, não está na Bela Vista, onde ele vive num ambiente hostil. Quisemos mostrar isso no filme e decidimos usar muitos não actores em vez de actores. Aquelas caras reais contam histórias, há uma verdade naquelas pessoas e percebemos que os seus discursos eram bem mais interessantes do que qualquer coisa que escrevêssemos. Algumas pessoas têm discursos racistas, mas nós não queríamos fazer um filme em que os pobres eram os bonzinhos e os ricos eram os maus, queríamos mostrar pessoas reais, pois as pessoas reais aumentaram a verdade da crise, mostraram a verdade do que se passava naqueles anos.

 

Habituámo-nos à ideia de não futuro. Agora, pelo menos há uma esperança.

 

Naqueles anos em que o mundo das cobranças cresceu. O que presenciaram?

Expor esse mundo permitiu-nos também mostrar como vivia a classe média. Havia de facto várias empresas de cobranças, mas muitas, na verdade, estavam a tentar caçar burlões, ou seja, não eram necessariamente as más da fita. Normalmente, quando se contrata alguém para fazer cobranças presenciais é porque as pessoas com dívidas até têm dinheiro, mas não querem pagar. Há uma cena no filme em que entramos numa casa onde está tudo escarnado e percebe-se claramente que era uma empresa que tinha saído dali. Havia muitos casos destes.

 

Ultimamente, há vários filmes com um lado não ficcional forte, como "As Mil e Uma Noites", de Miguel Gomes, que também trabalhou com não actores. Haverá necessidade de mostrar as coisas "tal como elas são"? A realidade dos últimos tempos "impôs-se" à ficção?

Não sei quais foram as razões do Miguel, mas, para nós, era óbvio que aquelas caras e aquelas histórias eram muito mais interessantes do que qualquer coisa que escrevêssemos. Ainda por cima, muitas pessoas não conheciam aquela realidade. Aquela realidade existe e está aqui ao lado. O bairro da Jamaica fica a 15 minutos de Lisboa! Seria muito fácil tornar o filme numa ficção completamente inventada, mas as palavras daquelas pessoas eram mais interessantes.

 

Como se a realidade gritasse.

Sim, e quando chegámos à Bela Vista, sentimos uma urgência por parte das pessoas em falar sobre a crise e sobre os seus problemas.

 

A voz dessas pessoas não chegava aos jornais?

Estávamos presos em números. Lembro-me de ir para a Bela Vista e de ouvir alguém na rádio a dizer que vivíamos acima das possibilidades. Quem dizia isso, claramente, nunca tinha visto as pessoas daqueles bairros. Com a exibição do filme no estrangeiro, muitas pessoas vieram ter connosco, surpreendidas, porque não faziam ideia de que esta realidade existia em Portugal, sabiam que tinha havido austeridade, que o nível de vida tinha baixado, mas não lhes passava pela cabeça que havia miséria, que havia pessoas com fome e que até havia suicídios por causa da crise. Esse lado do desespero em que muitos portugueses viveram passou ao lado de muitas pessoas fora de Portugal, muito por culpa do nosso Governo da altura, que fazia tudo o que Bruxelas mandava e ainda mais, e muito por culpa da comunicação social, que se limitava a falar em números. Houve poucas reportagens sobre este lado da crise. E o cinema também fez pouco.

 

O cinema fez pouco?

Sim, é surpreendente, para mim, que a arte tenha retratado tão pouco a crise. Durante este tempo, o teatro, a dança e o cinema quase não falaram da crise.

 

Não será necessário mais tempo para reflexão?

No teatro, por exemplo, não, o teatro pode ser uma coisa imediata. O teatro está sempre a falar do momento presente. Eu e o Marco estamos a desenvolver um projecto com não actores em Great Yarmouth, no Norte de Inglaterra, para onde emigraram muitos portugueses durante esta crise. É um projecto que vem no seguimento do "São Jorge" e dos "Estaleiros". Em Great Yarmouth, há uma fábrica gigante de desossadores de perus, em que boa parte dos trabalhadores são portugueses. E isto numa zona onde a maioria da população votou a favor do Brexit. Este conflito interessa-nos. Vamos fazer uma peça de teatro, em que os protagonistas serão as próprias pessoas e se eventualmente encontrarmos uma história, faremos um filme.

 

Há pouco dizia que não conhecemos o bairro da Jamaica, a 15 minutos de Lisboa, e que houve um lado da crise que passou ao lado de muitas pessoas. Falava na responsabilidade do Governo, da comunicação social, da arte. E a nossa responsabilidade enquanto cidadãos? Temos uma sociedade civil pouco activa?

Sim, acho que fomos pouco activos durante a crise, não foi só a arte, a arte é um reflexo da sociedade, a sociedade em geral acomodou-se e, na minha opinião, uma ideia que saiu vencedora: a ideia de não futuro. Habituámo-nos à ideia de não futuro, à ideia de que não havia outra maneira. Agora, há uma esperança, é algo que se sente. Não é que a situação tenha mudado muito, serão necessárias décadas para ultrapassar esta crise, mas é muito diferente tirarem-nos um euro do salário ou darem­-nos um euro, mesmo que seja apenas um euro. Pelo menos, há uma ideia de futuro, uma ideia de que vai ser possível, mesmo que ainda não o seja. Não há aquele medo que se sentia nas pessoas durante aqueles anos de crise e o medo constante leva à estagnação – ah, não vou ao cinema porque não sei se tenho emprego no próximo mês... Agora, há uma atitude diferente. Os teatros estão cheios e isso tem que ver com a ideia de esperança.

 

Falava nas histórias, nos rostos, da necessidade de humanizar. A arte deve ter esse papel?

Eu acho que a arte pertence aos artistas e os artistas devem falar daquilo que lhes é vital, sem preocupações necessariamente políticas, mas faz-me confusão que, naquela altura, a situação que vivemos não tenha tocado muitos artistas como nos tocou a nós. Eu e o Marco sentimos necessidade de contar esta história, e começámos pelo boxe, mas a crise entrou-nos de tal forma no filme que seria impossível falar sobre outra coisa que não a crise. Tornou-se uma coisa muito urgente e não se tratava de uma responsabilidade social, era uma constatação. O filme não tem uma cartilha ideológica, existe sim uma exposição de como a crise afectou verdadeiramente as pessoas.

 

As pessoas dos bairros sentiram-se retratadas no filme?

Sim, e isso alegrou-nos muito. A nossa antestreia foi um dia épico, que recordarei para sempre porque juntámos na mesma sala da Cinemateca, amigos, gente do cinema, o primeiro-ministro, o ministro da Cultura, o presidente da Assembleia da República e habitantes da Bela Vista e da Jamaica. Foi extraordinário ver estas pessoas juntas, o poder e o antipoder, e recebemos muitas mensagens gratificantes das pessoas dos bairros. Já na altura em que recebi o prémio disseram-me: é a primeira vez que ouço falar na Bela Vista ou na Jamaica por uma boa razão. De facto, estes bairros são visitados pelos media sempre pelas piores razões e, por isso, há uma visão exterior do bairro que tem sempre que ver com droga ou com assassinato.

 

O filme não pretende ter uma visão ideológica, mas quando recebeu o prémio teve um discurso bastante político contra a "Europa de smoking".

Para mim, era muito chocante apresentar este filme em Veneza numa cerimónia com gente de "smoking" a fingir que estava tudo bem. Ainda por cima foi na altura de uma grande vaga de refugiados e havia uma desilusão pessoal com a Europa, com a ideia de Europa. Era impossível, para mim, não fazer esse discurso, até porque o filme fala de um problema europeu. A Europa era uma cobradora de dívidas e a troika era a cobrança presencial. Na minha opinião, há um desrespeito da Europa pela própria ideia da Europa enquanto centro de cooperação entre países e, sobretudo com a crise dos refugiados, essa máscara caiu completamente.

 

O cinema português está na moda. Sempre fizemos obras extraordinárias, a diferença é que agora passaram a ser reconhecidas. 

 

Em 2016, o "São Jorge" foi premiado, assim como outros filmes nacionais. O cinema português está finalmente a ser reconhecido internacionalmente? 

Começa a existir um novo reconhecimento do cinema português. Por vezes, choca-me um bocadinho a ideia de que só agora é que apareceram uns cineastas extraordinários quando sempre tivemos cineastas extraordinários, sempre tivemos pessoas reconhecidas lá fora. Acho é que de repente o cinema português ficou na moda, passou a ser olhado de outra forma. Não é que tenhamos passado a fazer obras extraordinárias nos últimos anos – são extraordinárias, sim, mas já o são há muitos anos, agora passaram a ser reconhecidas, essa é a diferença. Mas, sim, 2016 foi um grande ano para o cinema português, tivemos filmes como o "Cartas da Guerra", do Ivo M. Ferreira, e o "Posto Avançado do Progresso", do Hugo Vieira da Silva, em Berlim, ou "O Ornitólogo", de José Pedro Rodrigues, considerado o melhor realizador no Festival de Locarno. Temos uma cinematografia com 11, 12 filmes por ano e estamos quase sempre nos três grandes festivais internacionais, isto é um milagre. França faz 110 filmes por ano e tem menos ou a mesma presença que nós. É mesmo extraordinário.

 

Mas esse reconhecimento internacional muitas vezes não se traduz em público.

Isso é um demérito nosso, estou muito contente com os resultados do "São Jorge", (com mais de 38 mil espectadores desde a sua estreia, a 9 de Março), mas acho que há um hiato entre o público português e o cinema português que não é merecido. É um hiato histórico, não sei porquê, não consigo percebê-lo.

 

O desespero em que muitos portugueses viveram passou ao lado de muitas pessoas.

 

Há a ideia de que o cinema português é aborrecido. É um preconceito?

Falta bom cinema comercial de autor em Portugal, falta-nos um James Cameron, ou seja, temos cinema comercial, mas não é cinema de autor comercial, temos cinema comercial feito a pensar apenas no público, e é sempre um erro fazer uma coisa a achar que se sabe o que é que as pessoas vão gostar, normalmente, nivela-se por baixo. Temos alguns filmes comerciais que até fizeram sucesso comercial, mas que muita gente não reconhece a sua qualidade. Falta-nos cinema comercial de qualidade.

 

E quem paga o cinema de autor não comercial continua a ser o Estado.

Se não for assim, como será? Não se pode pedir a alguém que comece por ouvir Beethoven ou por ver quadros abstractos, tal como acho errado que, na escola, as crianças comecem por "Os Lusíadas". Ou acharia errado que começassem por um filme de Manoel de Oliveira. Se mostrarem o Chaplin a um miúdo de sete anos, vai correr bem. Tem que ver com educação.

 

Os subsídios estatais não podem levar a uma espécie de ditadura do gosto? O realizador António-Pedro Vasconcelos disse numa entrevista ao Negócios: "Não consigo perceber como é que os portugueses, e os meus colegas cineastas, aceitam que seja o Estado a decidir quem deve filmar. É a política do António Ferro, de outra maneira."

Se o júri foi idóneo, se não for corrompido, isso não acontece. Acho que pode acontecer quando se quer que as televisões façam parte do júri, tal como acontece com a nova proposta – relativa às regras de selecção de júris para concursos de financiamento promovidos pelo ICA. Como é óbvio, as televisões vão votar em filmes para dar na televisão, o processo está pervertido à partida. Nesta proposta, que o António-Pedro defende e que sou contra, as próprias produtoras colocam pessoas da sua confiança no júri. Ora, se eu colocar um amigo meu no júri, em quem é que ele vai votar? E isto, não é ditadura do gosto? Não sei se o que tínhamos no ICA era o ideal, mas é melhor do que aquilo que está a ser proposto. Mas, sim, não é possível fazer-se cinema de autor em Portugal sem apoio do Estado, nunca teremos o retorno financeiro necessário porque somos apenas dez milhões e o cinema de autor será sempre cinema para uma minoria. Sem o apoio do Estado, não há cinema de autor em Portugal.


 

E ser actor apenas em Portugal é suficiente em termos de subsistência?

É difícil. Felizmente, faço publicidade, que é aquilo que me paga as contas. Sem a publicidade já teria desistido de ser actor ou estaria como muitos colegas meus, a fazer aquilo que não gostam, e isso eu não quero fazer, prefiro não ser actor. E por isso faço publicidade e locuções. Tenho sido "salvo" pela publicidade e por projectos no estrangeiro. Fiz agora um filme do Marcelo Gomes, o "Joaquim", que esteve no festival de Berlim e vai estrear no Brasil. Conta a história do Tiradentes, uma figura mítica do Brasil – é conhecido como mártir da Inconfidência Mineira, patrono cívico do Brasil. Eu faço de um português que vai com ele numa exploração mineira à procura de ouro, e toda esta história desconstrói muito a figura do Tiradentes. Além do Brasil, tenho feito algumas coisas em França e na Suíça, mas não tenho uma visão de carreira, quero fazer coisas que me agradam, se forem estrangeiras são estrangeiras, se forem portuguesas, melhor, é a minha língua e é mais fácil representarmos na própria língua.

 

2016 também foi um grande ano para o Nuno, com papéis fortes como o pugilista Jorge ou um antigo pastor em "A Noite da Iguana", de Tennessee Williams. Há sempre um grande trabalho de construção de personagens, um bocadinho à semelhança de Daniel Day-Lewis…?

Não me comparo com Daniel Day­-Lewis, claro, mas faço sempre uma pesquisa exaustiva. O João Canijo fala no processo de ser actor por osmose. Se vivermos seis meses no Porto ficamos com o sotaque do Porto agarrado e eu acredito muito nesse método. Passei dois anos com o meu treinador e com os "boxeurs", a ouvi-los, a perceber sobre o que é que falavam, como agiam. Far-me-ia muita confusão representar um "boxeur" não sabendo praticar boxe, far-me-ia muita confusão representar uma pessoa da Bela Vista se não soubesse o que era viver na Bela Vista. Acredito nesta pesquisa exaustiva de falar com as pessoas e até de viver nos sítios delas – já me aconteceu para o filme "Efeitos Secundários", vivi na Costa de Caparica com os pescadores.

 

Como foi para o filme "Alice", também dirigido por Marco Martins?

Houve um trabalho de pesquisa enorme, falei com a Filomena Teixeira, a mãe do Rui Pedro, ela foi muito importante para a construção da minha personagem e é uma pessoa muito importante para a minha vida, mas no filme "Alice" o processo foi ligeiramente diferente porque era mais abstracto, felizmente não há tantos casos assim e, além disso, eu não quero ser intrusivo. Tenho esse limite. Na peça "A Noite da Iguana", eu representava um alcoólico, estive para ir a uma reunião de alcoólicos anónimos, mas achei que a minha intrusão poderia prejudicar o processo deles. Então, não fui, mas falei com pessoas que tiveram esse problema, vi muitos filmes e documentários sobre o assunto. A ficção é um lado fundamental na minha pesquisa.

 

Sem a publicidade,  já teria desistido de ser actor. 

 

"O Touro Enraivecido" terá sido outro filme inspirador.

Sim, mas o "Taxi Driver", por exemplo, foi muito mais importante para o Jorge. Fala de um tipo solitário numa cidade hostil, também é uma personagem-testemunha. Os filmes neo-realistas italianos foram igualmente muito importantes. E, curiosamente, o "Groundhog Day" ("O Feitiço do Tempo") com o Bill Murray, em que a personagem acorda todos os dias no mesmo dia, serviu de inspiração para o "Alice". Passa-se de uma comédia para um drama absoluto, mas interessava-me aquela ideia de repetição. Apoio-me muito na ficção e é por isso que faço ficção, até acho que a ficção é uma verdade mais profunda, às vezes conta mais verdade do que a própria verdade, porque é um ponto de vista sobre a verdade, a verdade torna-se mais clara.

 

O que se segue agora?

Estou a preparar uma série para a RTP. O Marco Martins vai fazer uma série escrita pelo Bruno Nogueira sobre o mundo dos actores, com a Beatriz Batarda no papel principal, é uma série cómico-trágica.

 

Tinha saudades da comédia?

Adoro e tinha saudades. Há muita gente na rua que continua a associar-me à comédia. Quando alguém vem ter comigo é sempre por uma razão diferente, o que me deixa muito feliz. Às vezes, vêm ter comigo como DJ. Há pessoas que só me conhecem mesmo como DJ.

 

Sim, e quando sabem que é actor perguntam: "Mas agora fazes filmes?"

Há miúdos que me dizem isso, são miúdos de 14 anos que começam agora a sair à noite, não conhecem o que fiz antes e isso é mesmo muito engraçado.

 

Porquê ser DJ?

É um momento de libertação total. Adoro o que faço, adoro trabalhar e adoro ser actor, mas precisava de descansar de ser actor porque ser actor ocupa-me… a vida. E eu não consigo descansar estando parado, sou um bocadinho compulsivo, e então a música surgiu como uma fuga ao trabalho, é um trabalho para fugir do trabalho. Estive sempre ligado à música, antes de ser actor, era guitarrista e vocalista. Tocava em festas de anos e, quando era pequeno, punha música naquelas festas de "slows" antigos dos anos 80, punha Phil Collins, Bryan Adams, basicamente coisas pirosas para as pessoas dançarem agarradas. Ainda hoje gosto de acabar o set com um "slow" em memória desses tempos... Tive sempre uma relação forte com a música e, quando morava na Bica, abriu o Funicular onde comecei a pôr música. Agora tenho uma residência no Plano B, no Porto, e em Lisboa costumo tocar no Music Box e no 49, na ZDB. Já passei por vários estilos musicais, pop, funk, electro, maximal e agora estou na música electrónica, house, base house. Não há mês que não toque. Adoro a minha profissão, mas implica uma responsabilidade muito grande: enquanto actores, temos a responsabilidade de representar uma pessoa, temos a responsabilidade da visão de um encenador, temos a responsabilidade da visão do texto. Como DJ, não tenho responsabilidade nenhuma a não ser pôr as pessoas a dançar.

 

Antes da música, experimentou a pintura.

Experimentei, mas não tinha jeito nenhum. Eu era muito introvertido e precisava de me exprimir de alguma maneira. A representação acabou por ser a melhor forma. Costumo dizer que as personagens são máscaras que falam de nós próprios. O facto de estar a representar uma pessoa é o meu ponto de vista sobre essa pessoa e, em última análise, estou a falar de mim, da minha visão do mundo.

 

A realização e a encenação não estão nos planos de futuro?

Encenei os "Estaleiros" com o Marco, gostei muito da experiência e é algo que quero voltar a fazer. Tenho a ideia de, no futuro, poder eventualmente realizar, não tenho uma ideia de o fazer no imediato até porque tenho muito medo.

 

Medo?

Tenho, tenho, sou muito cobarde. Eu sei o quão difícil é para um actor lidar com um mau director de actores, sei a responsabilidade que um realizador ou um encenador tem para a vida de um actor e, portanto, custa-me dar esse passo sem ter a certeza de que vou fazer algo de bom para os outros. Sim, tenho medo dessa responsabilidade, até porque acho que os actores são seres frágeis e, como eu como conheço essa fragilidade, tenho mais dificuldade em lidar com ela. Acho que seria mais fácil dirigir ou encenar se não fosse actor. 


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