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Mazgani: “Temos pavor do silêncio”

Shahryar Mazgani, escritor de canções, cantor e guitarrista, nasceu em Teerão e cresceu em Setúbal. Os pais, pertencentes à minoria bahá’í, refugiram-se em Portugal após a revolução islâmica no Irão. O músico, apontado pela revista Les Inrockuptibles como um dos 20 melhores novos artistas musicais da Europa, vai lançar o seu novo álbum, “The Poet’s Death”.

Miguel Baltazar
22 de Setembro de 2017 às 14:00
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A escrita das letras é, para mim, uma coisa lenta, tenho de conviver algum tempo com as canções para confiar naquilo que estou a dizer. A canção é um organismo autónomo, emancipa-se, é ela que dita as suas próprias leis e é ela que diz como deve ser manuseada. A construção das letras é por isso um processo lento que implica passar algum tempo com as canções até sentir que as posso libertar e que elas viverão por si.

Na verdade, acho que escrevemos sempre a mesma canção. O fio condutor de uma canção passa por quem as escreve, pela sua infância, pela sua adolescência, pela sua história, e não se pode inventar muito, não se pode fugir muito daquilo que se é.

Nasci em Teerão, de onde saí por altura da revolução iraniana.

Felizmente, os meus pais deram-me a conhecer uma história que tem pouco que ver com o Irão de hoje, com o qual não me identifico absolutamente nada. Há uma cultura soterrada por baixo desta loucura instalada. O Irão que os meus pais me deram a conhecer é um país com uma cultura milenar riquíssima, com grandes poetas e músicos extraordinários. O regime que reinou nos últimos 40 anos provocou muitos danos ao país, mas ainda há pessoas que resistem e isso dá-me alguma esperança.

A canção ideal é aquela que sentimos que foi escrita para nós.

Toda a minha família é bahá’í, uma minoria perseguida no Irão. É uma religião monoteísta que surge na antiga Pérsia. O seu mensageiro chama-se Bahá’u’lláh e, em termos sucintos, traz sobretudo uma mensagem de unidade das religiões. Os bahá’í acreditam que os mensageiros de Deus, seja Jesus, Maomé ou outros, são portadores de uma única mensagem de um deus uno, e a mensagem que ele nos traz é de unidade da humanidade, ele diz que a terra é um só país.

Ainda hoje, a minoria bahá’í continua a ser completamente abafada no Irão, as pessoas têm vidas muito difíceis e são perseguidas de várias formas, algumas delas evidentes, outras nem tanto. Por exemplo, um jovem bahá’í não pode frequentar o ensino superior.

Até à revolução iraniana, eu levava uma vida normal em Teerão, onde morei cinco anos. A minha mãe era assistente social e professora de sociologia na universidade e o meu pai era um dos donos de uma empresa de publicidade. O Irão, na altura, era muito à frente, não tem nada que ver com o que se vê agora, era um país próspero e aberto. Mas a minha memória mais funda e formativa é talvez o convívio que tive com a mãe da minha mãe. Foi uma mulher fundamental na minha vida, ela era uma matriarca muito forte. O que me custou mesmo, quando vim para Portugal, foi a separação dessa minha maravilhosa avó.

Lembro-me da chegada a Portugal, mas não me lembro da partida do Irão. Como costumava viajar muito com os meus pais, devo ter achado que aquela seria mais uma viagem. Primeiro, estivemos uns meses na Holanda, em Amesterdão, onde temos família, e depois viemos para Setúbal. Para mim, não foi um grande problema, os putos adaptam-se, são esponjas. Fui logo para a escola e aprendi português muito rapidamente.

A minha vivência em Setúbal foi maravilhosa, passava o tempo na rua a jogar à bola, a esfolar os joelhos ou então estava no cinema. Via tudo e gostava de tudo, chegava o ver mesmo filme cinco ou seis vezes. Lembro-me de um Verão em que todas as noites, quando chegava a casa, via o "Amadeus". Sempre. Gostava de ter sido cineasta, agora já não tenho tanta esperança de vir a sê-lo, mas tenho um grande amor pelo cinema.

A actividade musical começa muito tarde na minha vida, tarde demais se calhar, por volta dos 30 anos. Mas sempre me interessei por música, os meus pais ouviam muita música clássica persa, algo que eu continuo a adorar. Depois, quando fui para o ciclo, lembro-me de andar com a cassete do "Born in the U.S.A", do Bruce Springsteen. Quando comecei a ganhar algum espírito crítico, ouvia muito The Go-Betweens, The Smiths, The Clash e, um bocadinho mais tarde, descobri Nick Cave and the Bad Seeds. E o Leonard Cohen…

Cohen tem profundidade. Quando o descobri, não sabia que as canções podiam ser "isto" que ele faz, a poesia dele, a voz dele, a sua autoridade. Tinha a sensação de que aquelas suas canções existiam quase desde sempre e que Cohen era uma espécie de um profeta que estava a sussurrar-me salmos milenares ao ouvido. Quando o Cohen está a cantar, sentimos que ele canta para nós. E a canção ideal é aquela que sentimos que foi escrita para nós.

Em Setúbal, encontrei alguns amigos que estavam a fazer música, eu tinha feito umas coisinhas, eles gostaram e comecei a tocar com eles. Um dos meus colegas estava a estudar engenharia de som e, como exercício para a escola, tinha de gravar uma banda, então gravámos uma ou duas músicas e eu enviei uma delas para (a revista francesa) Les Inrockuptibles e, de repente, aquela publicação, na qual eu confiava, estava a dizer que Mazgani era fixe, e isso foi muito importante. Mais tarde, deixamos de olhar para fora à procura de aprovação, e se calhar até passamos a ser os nossos críticos mais severos, mas no início foi muito importante.

Actualmente, moro em Lisboa e tento tocar todos os dias, tento ler e escrever todos os dias. A repetição é absolutamente fundamental até porque, como sou um bocadinho indisciplinado, preciso dessa ordem. Mas procuro também espaços de calma, frequento muito este jardim (da Estrela), venho para aqui como os velhinhos, dou uma voltinha.

E, para conseguir escrever, preciso de estar sozinho, nem sequer consigo ir para um quarto de hotel escrever uma canção, preciso de um certo tempo, e vou devagarinho nessa coisa, vou confiando, porque é preciso cavar um pouco mais fundo para fugir do ruído a que estamos sujeitos, é preciso fazer uma apneia para estarmos um bocadinho sozinhos. Todos precisamos desse espaço de recolhimento porque vivemos num tempo em que somos tão bombardeados com vozes e com ruído que não sabemos que posição tomar em relação às coisas.

Cada um tem a sua luta, mas sinto que é preciso resistir a esta velocidade. O que me preocupa no meu tempo é reparar no pavor que se tem ao silêncio. Estamos a desenhar uma sociedade onde não há espaços de silêncio, e isso é uma coisa perigosa, estamos desconectados de nós próprios, estamos sempre com as mãos ocupadas, a olhar para o telefone, ou queremos ser estimulados por um "feed" de notícias que nunca acaba. Enquanto indivíduos e enquanto sociedade, estamos a pagar uma factura muito alta.

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