Notícia
Margarida Calafate Ribeiro: A Europa deu soluções coloniais para situações pós-coloniais
Margarida Calafate Ribeiro foi pioneira em Portugal dos estudos pós-coloniais e, sobretudo, dos estudos que olham para a pós-memória. Lançou o projecto “Memoirs: Filhos de Império e Pós-memórias europeias” e o livro “Geometrias da memória: configurações pós-coloniais”
No Centro de Estudos Sociais (CES), da Universidade de Coimbra, começou recentemente um projecto ambicioso, com financiamento europeu, o projecto "Memoirs: Filhos de Império e Pós-memórias europeias", que olha para a maneira como está a ser construída a pós-memória dos impérios e do seu fim. Debruça-se sobre o caso de Portugal mas também da França e da Bélgica. Acaba de publicar um primeiro livro no âmbito dessa investigação: "Geometrias da memória: configurações pós-coloniais" (Edições Afrontamento). Essas pós-memórias, de guerras coloniais, de processos de descolonização, de processos de migrações de ex-colónias, de questionamentos de nacionalidade, identidade, raça, parecem ser mais importantes do que nunca para a Europa. São essas memórias que estão na base da Europa multicultural, tão amada, tão incompreendida, tão confusa consigo mesma.
1. Na morte da última testemunha, o que fica é a pós-memória e a pós-memória, a memória das gerações seguintes, - tanto a nível artístico, como a nível historiográfico, como a um nível mais académico ou ensaístico, etc. - é uma recusa em pôr um ponto final na História e na interrogação sobre aquilo que de facto se passou.
A memória dos filhos é uma memória muito fragmentada e composta, por vezes, de memórias próprias, da infância; de memórias de narrativas contadas pelos adultos, pelos pais; de objectos; de fotografias; e, também, de narrativas públicas.
Ainda agora estive na Bélgica, porque este projecto no qual estou a trabalhar, "Memoirs: Filhos de Império e Pós-memórias europeias", tem uma dimensão comparativa e estuda também a Bélgica e a França. No caso da Bélgica e do Congo, há uma série de memórias muito semelhantes nos ex-colonizadores e nos ex-colonizados. Mas reparei que os ex-colonizadores têm muitos objectos em casa: mesas, estátuas, fotografias. Os ex-colonizados normalmente não têm. Isso foi uma coisa que me sensibilizou bastante. Porque mostra percursos muito diferentes, eventualmente ambos em fuga, ambos fora do paradigma narrativo principal da História, mas em situações de subalternidade muito diferentes. Isto quer dizer que os filhos de congoleses, que vivem na Bélgica, os belgo-congoleses, e os belgas filhos de ex-colonizadores têm instrumentos completamente diferentes para construir a sua memória.
Por exemplo, aqui em Portugal, como em França, a casa do ex-combatente costuma ter muitos objectos e as crianças crescem com esses objectos. A casa dos retornados ficou lá, em África. E, portanto, a casa é um espaço de imaginação total.
2. Eu vivi primeiro em França, porque sou de estudos franceses, e depois fui para Londres, para o King's College. Voltei de Inglaterra para vir para o CES (Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra) começar o primeiro doutoramento em Pós-Colonialismos e Cidadania Global. Isto foi em 2002. Na altura, era uma área bastante nova em Portugal e tinha uma dimensão um bocadinho importada. Os estudos pós-coloniais projectam-se com uma dimensão muito anglo-saxónica, esquecendo um pouco o lastro de outras Histórias. Mas o CES era um centro muito virado para o mundo de língua portuguesa e para a América Latina e era um lugar com um ambiente muito internacional. Havia ali uma mistura de influências muito grande.
Interessou-me logo abordar estes temas de um ponto de vista comparativo. Essa abordagem faz questionar, por exemplo, a questão do excepcionalismo. Todos os impérios se afirmaram pelo excepcionalismo. Os franceses são excepcionais. Os italianos são a "brava gente". Os portugueses, excepcionais com o seu luso-tropicalismo. Os ingleses, com a sua especificidade de colonialismo mundial. Na realidade, quando comparamos, há uma série de gramáticas comuns.
Estou a falar de modelos imperiais europeus ultramarinos. Mas há outros modelos imperiais europeus que vão da Alemanha até à Rússia, e que, de uma forma muito genérica, são modelos de anexação de território próximo. Mas a retórica em nome da qual se faz isso é a mesma. A Alemanha invade a Polónia porque eles eram selvagens. As gramáticas de ocupação são muito semelhantes. Há o modelo germânico, há o império russo que dá o império soviético, há o modelo austro-húngaro, há o modelo nórdico... Esta é uma questão que eventualmente une a Europa: de Portugal até à Rússia, a herança imperial, seja como colonizadores ou como ex-colonizados, compõe-nos.
3. Há um lastro histórico muito concreto nas migrações para França ou nas migrações para o Reino Unido ou nas migrações para Portugal que tem a ver com as dimensões imperiais destes países.
Normalmente, os impérios ultramarinos refluíam na Europa através de dinheiro, através de artefactos, de arquivos, de exposições, mas não desta forma tão clara que é o ser humano. O ser humano que transporta a sua família, que transporta a sua cultura, as suas outras línguas, outras crenças, outras formas de olhar. Isso modificou o terreno europeu. E a ideia do que é ser europeu.
As segundas gerações dessas migrações pós-coloniais são gerações europeias. O [pensador] Tariq Ramadan deu uma vez uma definição muito interessante; disse que se definia como um "europeu de memória egípcia".
Acho absolutamente legítimo que um jovem luso-angolano se defina assim: como um europeu de memória angolana. Tal como acho absolutamente legítimo que um filho de um retornado se defina assim.
O trabalho sobre a pós-memória, sobre a construção da memória pelas segundas gerações, parece-me um trabalho importante, politicamente, na Europa, neste momento. A política é a vida das pessoas: a maneira como interagimos uns com os outros.
A Europa, durante muitos anos, deu soluções coloniais para situações pós-coloniais. E isso tem o seu preço.
4. A descolonização foi traumática. Penso que uma grande parte dos retornados esteve de luto. Há essa dimensão do silêncio: é um silêncio que fala.
Esse silêncio, durante muito tempo, ultrapassava-se apenas em grupos, comunidades de memória: grupos de ex-combatentes, grupos de ex-retornados, e não perpassava para a sociedade, porque ninguém queria saber. Foi um pouco como o que aconteceu na Europa após a Segunda Guerra Mundial: alguém queria saber o que é que tinha acontecido nos campos de concentração nazis?
Há, de facto, um momento de luto, de silêncio. Depois, a geração do testemunho envelhece e fazem-se os balanços. E há o recordar de um período que acaba também por ser muito imaginativo, porque a memória tem essa dimensão, felizmente para nós, que nos faz esquecer as coisas piores e recordar as coisas melhores: que, normalmente, têm a ver com os momentos de juventude. E não é por a pessoa ter estado, digamos, do lado errado da História, que deixa de ter direito a esse trauma.
A segunda geração, em Portugal, como noutros países da Europa, é já um pouco descomprometida. E depois é interessante ver um certo conflito de memórias inter-familiares. No outro dia, na Bélgica, entrevistando uma filha de uma ex-colonizadora, ela dizia-me: "Mas já viu: a minha mãe tinha um 'boy!' Acha normal ter um 'boy'? É uma coisa que eu não consigo imaginar."
1. Na morte da última testemunha, o que fica é a pós-memória e a pós-memória, a memória das gerações seguintes, - tanto a nível artístico, como a nível historiográfico, como a um nível mais académico ou ensaístico, etc. - é uma recusa em pôr um ponto final na História e na interrogação sobre aquilo que de facto se passou.
A memória dos filhos é uma memória muito fragmentada e composta, por vezes, de memórias próprias, da infância; de memórias de narrativas contadas pelos adultos, pelos pais; de objectos; de fotografias; e, também, de narrativas públicas.
Ainda agora estive na Bélgica, porque este projecto no qual estou a trabalhar, "Memoirs: Filhos de Império e Pós-memórias europeias", tem uma dimensão comparativa e estuda também a Bélgica e a França. No caso da Bélgica e do Congo, há uma série de memórias muito semelhantes nos ex-colonizadores e nos ex-colonizados. Mas reparei que os ex-colonizadores têm muitos objectos em casa: mesas, estátuas, fotografias. Os ex-colonizados normalmente não têm. Isso foi uma coisa que me sensibilizou bastante. Porque mostra percursos muito diferentes, eventualmente ambos em fuga, ambos fora do paradigma narrativo principal da História, mas em situações de subalternidade muito diferentes. Isto quer dizer que os filhos de congoleses, que vivem na Bélgica, os belgo-congoleses, e os belgas filhos de ex-colonizadores têm instrumentos completamente diferentes para construir a sua memória.
Por exemplo, aqui em Portugal, como em França, a casa do ex-combatente costuma ter muitos objectos e as crianças crescem com esses objectos. A casa dos retornados ficou lá, em África. E, portanto, a casa é um espaço de imaginação total.
Interessou-me logo abordar estes temas de um ponto de vista comparativo. Essa abordagem faz questionar, por exemplo, a questão do excepcionalismo. Todos os impérios se afirmaram pelo excepcionalismo. Os franceses são excepcionais. Os italianos são a "brava gente". Os portugueses, excepcionais com o seu luso-tropicalismo. Os ingleses, com a sua especificidade de colonialismo mundial. Na realidade, quando comparamos, há uma série de gramáticas comuns.
Estou a falar de modelos imperiais europeus ultramarinos. Mas há outros modelos imperiais europeus que vão da Alemanha até à Rússia, e que, de uma forma muito genérica, são modelos de anexação de território próximo. Mas a retórica em nome da qual se faz isso é a mesma. A Alemanha invade a Polónia porque eles eram selvagens. As gramáticas de ocupação são muito semelhantes. Há o modelo germânico, há o império russo que dá o império soviético, há o modelo austro-húngaro, há o modelo nórdico... Esta é uma questão que eventualmente une a Europa: de Portugal até à Rússia, a herança imperial, seja como colonizadores ou como ex-colonizados, compõe-nos.
3. Há um lastro histórico muito concreto nas migrações para França ou nas migrações para o Reino Unido ou nas migrações para Portugal que tem a ver com as dimensões imperiais destes países.
Normalmente, os impérios ultramarinos refluíam na Europa através de dinheiro, através de artefactos, de arquivos, de exposições, mas não desta forma tão clara que é o ser humano. O ser humano que transporta a sua família, que transporta a sua cultura, as suas outras línguas, outras crenças, outras formas de olhar. Isso modificou o terreno europeu. E a ideia do que é ser europeu.
As segundas gerações dessas migrações pós-coloniais são gerações europeias. O [pensador] Tariq Ramadan deu uma vez uma definição muito interessante; disse que se definia como um "europeu de memória egípcia".
Acho absolutamente legítimo que um jovem luso-angolano se defina assim: como um europeu de memória angolana. Tal como acho absolutamente legítimo que um filho de um retornado se defina assim.
O trabalho sobre a pós-memória, sobre a construção da memória pelas segundas gerações, parece-me um trabalho importante, politicamente, na Europa, neste momento. A política é a vida das pessoas: a maneira como interagimos uns com os outros.
A Europa, durante muitos anos, deu soluções coloniais para situações pós-coloniais. E isso tem o seu preço.
4. A descolonização foi traumática. Penso que uma grande parte dos retornados esteve de luto. Há essa dimensão do silêncio: é um silêncio que fala.
Esse silêncio, durante muito tempo, ultrapassava-se apenas em grupos, comunidades de memória: grupos de ex-combatentes, grupos de ex-retornados, e não perpassava para a sociedade, porque ninguém queria saber. Foi um pouco como o que aconteceu na Europa após a Segunda Guerra Mundial: alguém queria saber o que é que tinha acontecido nos campos de concentração nazis?
Há, de facto, um momento de luto, de silêncio. Depois, a geração do testemunho envelhece e fazem-se os balanços. E há o recordar de um período que acaba também por ser muito imaginativo, porque a memória tem essa dimensão, felizmente para nós, que nos faz esquecer as coisas piores e recordar as coisas melhores: que, normalmente, têm a ver com os momentos de juventude. E não é por a pessoa ter estado, digamos, do lado errado da História, que deixa de ter direito a esse trauma.
A segunda geração, em Portugal, como noutros países da Europa, é já um pouco descomprometida. E depois é interessante ver um certo conflito de memórias inter-familiares. No outro dia, na Bélgica, entrevistando uma filha de uma ex-colonizadora, ela dizia-me: "Mas já viu: a minha mãe tinha um 'boy!' Acha normal ter um 'boy'? É uma coisa que eu não consigo imaginar."