Notícia
Madalena Victorino: Há muito racismo e muita xenofobia velada
Madalena Victorino foi distinguida como uma das “Mulheres Criadoras da Cultura” e recebeu, esta semana, o Prémio Universidade de Coimbra 2017, pelo seu trabalho inovador no tecido cultural. Em mãos, a coreógrafa e programadora tem o projecto Lavrar o Mar, que está a colocar em "turbulência" o território de Monchique e de Aljezur.
Abraçar o mar como se fosse terra e a terra como se fosse o mar. É assim que descreve o projecto Lavrar o Mar, que está a desenvolver em Aljezur e em Monchique.
Lavrar o Mar é um projecto com o Giacomo Scalisi, com quem trabalho e com quem vivo. Aljezur é um lugar ao qual voltamos sempre que queremos descansar e, em tempos mais distantes, íamos muito para a Carrapateira. São espaços de natureza fulgurante e até estonteante, são espaços muito fortes. O oceano Atlântico bate ali de uma forma muito extraordinária e muito intensa na sua relação com as praias desertas e com as grandes arribas, que dão lugar a uma vegetação baixa que depois vai subindo até à serra de Monchique. Este território tem sido um espaço de contemplação e mergulho do nosso próprio corpo naquela paisagem. Costumávamos alugar uma cabana e ficávamos ali, numa situação de contacto com a natureza bruta e em estado selvagem. Perdi-me várias vezes nas dunas da Carrapateira. Literalmente. Este espaço foi sempre, na história da nossa vida, um lugar de lazer e de encontro, e pensámos que seria muito bom construir um projecto naquele território. Assim surgiu o Lavrar o Mar, que se divide entre Aljezur e Monchique. Estamos na fase das residências artísticas e vamos estrear a residência Medronho, que envolve um percurso pelas várias destilarias distribuídas pela serra. Agregado àquele líquido maravilhoso, que é o medronho, está um saber ancestral, resultante de uma prática familiar passada de pai para filho ou de avô para neto e que é fonte de inspiração para alguns escritores que estão a criar uma dramaturgia teatral. As destilarias vão transformar-se em pequenos teatrinhos, onde se vai destilar uma natureza humana, uma história.
A ideia é criar também uma rota do medronho?
Sim. Neste caso, a relação com o território é feita através da cultura do medronho e da tradição familiar. As residências artísticas nas destilarias vão desaguar num espectáculo, a realizar durante o Festival do Medronho. No início do projecto Lavrar o Mar, apresentámos também a peça de teatro "Espreitar & Comer", da companhia belga Laika, durante o Festival da Batata-Doce. Queremos estar a par e em consonância com tudo aquilo que acontece no território, alargando essa experiência cultural e gastronómica ao campo artístico e à experiência estética. No fundo, os produtos locais são sujeitos a uma transformação qualquer, a uma outra dimensão – e é isso que o Lavrar o Mar oferece. O projecto tem uma preocupação permanente de introduzir no território as artes contemporâneas do domínio performativo, como o teatro, a dança, a música, o novo circo e outras disciplinas.
Com a intenção de mexer na terra, de agitar o território. Daí o nome Lavrar o Mar?
Lavrar o Mar é o nome que se dá a uma técnica da apanha da sardinha, em que a rede, em vez de ser lançada na vertical, penetrando no fundo do mar, é lançada num movimento horizontal para abraçar uma determinada superfície de água, trazendo e encerrando em si tudo aquilo que encontra. No fundo, essa ideia de podermos arar o mar e, de alguma forma, navegar na terra faz com que possamos unir o mar e a terra no mesmo território. Essa ideia de podermos trazer o mar ao alto da serra e o alto da serra à Costa Vicentina é o eixo que une o projecto.
Colocando o território em comunicação e em turbulência. Porquê?
Nesta altura do ano, há uma espécie de adormecimento da terra, como se o território fosse a Bela Adormecida. O espaço adormece no meio do frio e do nevoeiro e da chuva e das grandes marés. Adormece em termos de visitas e de actividades que extravasam o trabalho quotidiano da terra. Este até é um território muito procurado por estrangeiros, uns estão muito sedimentados, outros estão a chegar. Há uma vaga de pessoas menos ortodoxas ou talvez "personae non gratae" nos países de origem, que vêem a serra como um esconderijo, talvez um refúgio. Continua a chegar gente com uma filosofia de vida marginal. Há jovens a apostar na agricultura biológica, a fazer sabão e a criar modos de viver numa relação com o tempo mais retardada. Às vezes, olho para eles e alguns parecem-me tão velhos... Lembro-me de Albufeira dos anos 60, 70, aonde chegavam os estrangeiros com os seus bebés a dormir em caixotes. Olho para estes jovens e o cenário é igualzinho, e isso é estranho pois parece que recorrem a um modelo já muito datado. Alguns, mais radicais nas suas crenças, não sentem necessidade de enviar as crianças à escola, outros têm tendas e constroem uma autonomia de produção de electricidade e de busca de água, o que é muito interessante, mas também muito ancestral.
Outros, simplesmente, fartaram-se das cidades.
Outras pessoas, cansadas da vida urbana, vêm à procura de reduzir a velocidade. Conheci uma figurinista da Ópera de Bruxelas que estava exausta da competição e da forma não humana do quotidiano das cidades europeias. E há ainda as pessoas mais velhas, que procuram a natureza, que procuram a calma e que procuram, claro, países onde as suas reformas se multiplicam. Existem, de facto, muitas populações diferentes neste território, que funciona como uma espécie de arquipélago de situações e de ilhas humanas.
De ilhas que nem sempre comunicam entre si.
Nós queremos reunir estas orlas da sociedade. No território, há uma espécie de centro nuclear, que é a população autóctone muito envelhecida, rejuvenescida por alguns estrangeiros que começam a levar os seus filhos às escolas portuguesas. Mas essas crianças não deixam de ser filhas de pais estrangeiros. Depois, existem os reformados que chegam de França. E há uma população inglesa, holandesa e alemã, que está cá há mais tempo, mas que também vive em ilhas ou guetos. Os ingleses são os ingleses, os franceses são os franceses, os alemães são os alemães. Às vezes, cruzam-se. Eu conheci a figurinista belga através da senhora alemã a quem compro o pão que, por sua vez, é casada com um inglês. O pão alemão, o pão de Casais ou do Rogil estão na mesma prateleira na mercearia. Há uma multiculturalidade muito rica.
E existe ainda a população das estufas.
Sim, há uma outra população gigante, de milhares de pessoas que trabalham nas estufas da nova economia da agricultura intensiva. Chegam da Europa de Leste mas vêm, em especial, de países como Paquistão, Sri Lanka, Tailândia, Vietname, Nepal, Índia. São pessoas, sobretudo homens, à procura de uma vida melhor, tal como os europeus que aqui chegam, mas enquanto uns vêm para contemplar a natureza, outros intervêm sobre a própria natureza. Existem grandes contrastes na forma de tratar a terra neste território. Vemos o velhote, com as costas tortas e a sua enxada, a cavar, vemos os tais jovens a praticar agricultura biológica e temos estes homens nas estufas a produzir cachos de tomates, criados milimetricamente, com todos os adubos e as condições atmosféricas medidas pelos engenheiros agrónomos, também eles muito jovens.
Há clivagens enormes dentro desta interculturalidade, que é uma palavra bonita, mas…
Sim, pois é, o que é que ela quer dizer, não é? O que procuro, nestes encontros, é fazer com que se esbatam fronteiras e que as pessoas se interessem e se apaixonem umas pelas outras. Tenho um projecto artístico com a Câmara Municipal de Odemira que se chama "Alt Téo Bu". Fizemos um espectáculo em São Teotónio, que envolveu 90 participantes de várias nacionalidades. Havia um grupo de jovens turcos-búlgaros que fizeram duetos com bailarinas portuguesas e, para esses duetos, usei tapetes persa que encontrei na rua e música que veio do Nepal. É incrível, estamos em São Teotónio. Isto é a interculturalidade. Encontramos ali muitos nepaleses fantásticos, que formam uma comunidade mais aberta. Já os tailandeses falam pouco, escolhem os montes para viver, tiram a mobília das casas, dormem no chão. É uma realidade muito complicada.
É um lado bem dramático neste caldo da globalização. Visitou muitas estufas?
Algumas empresas tentam um equilíbrio, outras são mais duras e nem sequer me deixam entrar (nas estufas). Há uma preocupação por parte da Câmara de Odemira, que está envolvida no projecto europeu "Growing Together – Capacitação de Imigrantes como Cidadãos e Educadores Locais" e tenta encontrar estratégias conjuntas com outros países. Por iniciativa da vereação da cultura, a autarquia criou os "Dias da Interculturalidade", uma efeméride e um pretexto para a própria Câmara abordar o tema não no sentido romântico, mas no contexto puro e duro da economia mundial das migrações e da produção agrícola industrializada. A minha colaboração com a autarquia e o meu trabalho, na generalidade, pretende sempre responder à pergunta de como é que as artes, o discurso artístico e a sua prática podem relacionar-se com a sociedade no sentido construtivo. Acredito imenso que as artes são ferramentas muito fortes para a evolução das sociedades, só que, por vezes, no nosso contexto português, isso não é tão óbvio, não está tão desenvolvido ou não é tão trabalhado.
As artes têm mesmo esse poder?
Claro que têm. A ficção que a arte possibilita dá-nos espaço para rever a forma como olhamos a realidade, ou seja, os artistas têm o papel incrível de poder fazer uma revisitação do mundo e de virá-lo ao contrário, de poder olhá-lo de um outro prisma e transformar o impossível em possibilidade, aquilo que está errado em algo que também pode estar certo, aquilo que é mau em algo que tem bondade. A arte dá poder à pessoa, a arte dá alegria. Quando alguém entra num teatro, numa tenda de circo ou num cinema, o quotidiano fica parado à porta, o supermercado e a mãe doente desaparecem por um momento, a pessoa senta-se no escuro e a vida passa a localizar-se ali. É por isso que gostamos tanto de cinema. Porque o cinema está muito perto da realidade e, no entanto, é uma ficção absoluta.
Isso não é uma evasão, um escape?
Não, é uma separação, é um ir a outro lado para depois regressar com outras ferramentas, com outras forças, com outra energia para intervir na vida ou intervir em si mesmo. Ainda agora isso aconteceu com o espectáculo de novo circo "Maintenant ou Jamais". Convidei as pessoas da Academia Sénior de Monchique para serem frentes de sala. Têm entre 65 e 80 anos, estão um bocadinho arredadas da vida central e, de repente, passaram a ser o centro das atenções no início do espectáculo. Um dia, atribuí a três destas pessoas a responsabilidade de cortar os bilhetes e, numa primeira reacção, elas recuaram. As pessoas sentem-se frágeis, não estão habituadas a ser convocadas. Mas, de repente, aquelas que deram um passo em frente deixaram de ter 80 anos para ter 50, 60 ou 40 e essa transfiguração só se deu porque havia ali um espaço que proporcionava esse tipo de experiência-brincadeira, que é, ao mesmo tempo, um trabalho muito sério. Naquela noite, demos às pessoas o poder da responsabilidade e tenho a certeza de que isso teve impacto no seu autoconceito e até na coragem de fazerem outras coisas sozinhas.
Diz que as crianças e as pessoas mais velhas estão habituadas a não ser convocadas a participar na sociedade. A ideia é levar a arte às pessoas para lhes dar poder, é isso?
Sim, sim, é preciso empossar os mais velhos e as crianças. Olhamos para as crianças como se estivessem antes da humanidade, como se ainda não fossem pessoas, e olhamos para os mais velhos como se já não fossem pessoas. Dá a sensação de que só existe uma faixa etária interessante, a dos 16 aos 60, eu já estou na fronteira... E a beleza do corpo e no corpo é outra forma de, no fundo, dar às pessoas a noção exacta de que não são bem aquilo que elas pensam que são.
Como assim?
Nesse espectáculo, "Maintenant ou Jamais", eu pedi às pessoas mais velhas para se vestirem como se fossem para uma festa, com as coisas que elas mais gostavam e que achavam que lhes ficavam melhor. De dia para dia, elas estavam cada vez mais bonitas e mais seguras e sorridentes, e isto foi só através do acto de vestir. Quando trabalhamos mesmo sobre o corpo, então aí… O meu trabalho, enquanto coreógrafa, é preparar os corpos, quer tecnicamente quer artisticamente, para a dança, para o teatro, para a performance, mas também para vida.
Mas estamos cada vez mais afastados do corpo.
Sim, há uma cerebralização excessiva da pessoa, a escola está desenhada dessa maneira, os miúdos estão horas e horas à secretária, desejosos de saltar e de brincar. E as pessoas não sabem que saltar é também aprender, saltar é aprender com as pernas. Aprendemos com as pernas, com os braços, com o rabo, com o peito, e não apenas com a cabeça. Vivemos numa sociedade muito virada para o intelecto, mas o saber do corpo é tão ou mais importante que o do intelecto.
Trabalha muito com o corpo e a partir do corpo. Como começou a fazê-lo?
Sempre fui uma pessoa muito mexida, recentemente alguém me disse que achava que eu seria hiperactiva, nunca me tinha colocado esse rótulo, mas pode fazer sentido e, quando era criança e adolescente, essa inquietude era ainda mais forte, eu tinha de ir, eu não podia ficar em casa. Eu ainda tenho de ir, eu limpo a casa, eu faço projectos, eu tenho necessidade de fazer, de usar, de gastar-me. Tenho a noção de que a vida é curtíssima e, portanto, quero comer a vida, eu devoro a vida. Para mim, a calma está dentro da acção e por isso meto-me dentro de projectos enormes. Tenho uma trilogia sobre a solidão que se chama "Companhia Limitada". O espectáculo 1 centra-se sobre a solidão em casa e o espectáculo 2 é sobre a solidão na rua, chamei-lhe "Lis+Bú" e fala de um povo que vem das várias montanhas do mundo, onde não se sente bem, onde não respira e, por isso, vai descendo à procura de um sítio melhor. Estas pessoas vão-se encontrando nuns acasos da vida, numa paragem de autocarro, num café, numa bomba de gasolina. O espectáculo arranca com essa população que foi caminhando pelo mundo e que se foi juntando por ter em comum essa procura por uma vida melhor. O povo de Bú é um povo que anda à procura de um lugar para viver. Fiz o espectáculo em Lisboa e também em São Teotónio, sempre com povos diferentes, com pessoas diferentes, muito misturadas em termos de origens e estados de vida.
Portugal é um país realmente acolhedor para os imigrantes?
Acho que há algumas contradições nesse tema. Somos, de facto, uma cultura de pessoas afáveis e acolhedoras e, por isso, não rejeitamos as pessoas. Por outro lado, acho que há muito racismo e muita xenofobia velada. Falando de novo das estufas e do meu projecto "Alt Téo Bu", dos 90 participantes no espectáculo, apenas três eram portugueses.
Os portugueses não queriam misturar-se com os outros?
É um comportamento velado. Diziam que estavam muito ocupados. Existe ali, de facto, um problema. Aquelas aldeias estão realmente transfiguradas, hoje vamos pelas ruas e sentimos o cheiro a caril. Os trabalhadores estrangeiros alugaram muitas casinhas, há ali uma economia interessante, mas não se estabelece uma verdadeira integração. Há vidas paralelas. Há uma não integração das pessoas estrangeiras na vida quotidiana portuguesa e uma não integração dos portugueses numa relação de descoberta com as culturas destas pessoas que vêm de fora.
Vidas paralelas, margens, exclusão. Leva-nos ao drama dos refugiados pelo mundo fora.
No Festival Todos, trabalhei com 30 pessoas do Centro de Acolhimento Temporário para Refugiados, em Lisboa, que vêm de países como Serra Leoa, Cuba, Sri Lanka e Irão. Ali, as pessoas estão suspensas, não podem fazer nada, estão numa espécie de espera, à espera dos papéis, à espera de uma oportunidade de trabalho. No festival, estas pessoas integraram a equipa de produção e tiveram a possibilidade de abrir um parêntesis no seu compasso de espera.
Mas ficaram pelo parêntesis.
Isso, em si, pode ser uma experiência forte e transformadora. Um homem iraniano, que era professor de Inglês, foi obrigado a sair do Irão e a deixar a sua família. O pai dele tinha um restaurante. Como havia uma componente gastronómica no festival, este professor recuperou a memória do estabelecimento do pai e fez umas espetadinhas de frango maravilhosas. Estavam tão boas que esgotaram logo, tive de ir comprar frangos e mais frangos, e este homem, de repente, sentiu-se outra vez jovem naquela situação do grelhar e do marinar… O meu papel não é resolver os problemas da sociedade, mas produzir momentos de experiência, que podem alterar qualquer coisa na vida das pessoas e na relação que elas têm com múltiplos aspectos.
Como interpreta os discursos cada vez mais inflamados contra o Outro e contra os outros, a que assistimos, por exemplo, nas redes sociais?
É estranho e é natural ao mesmo tempo, as sociedades tiveram estes ciclos. Para mim, estamos num ciclo de passagem. Há um novo paradigma que tem de surgir, não será, claramente, no tempo da minha vida, mas espero que seja no tempo dos nossos filhos. Estamos num grande cruzamento de focos e de modelos que já não funcionam e de outros que pretendem furar. O actual modelo do capitalismo veio tiranizar o equilíbrio das sociedades. O futuro é uma nebulosa para as camadas jovens, há um nevoeiro permanente e, por isso, há tanta depressão, apatia e letargia na juventude. Só furam aqueles que têm uma motivação extra ou que, por sorte do "environment" onde crescem ou da sua própria genética, conseguem reagir. Costumo estar com muitos jovens artistas na Escola Superior de Dança e percebe-se que muitos deles acabam os cursos e ficam sem chão. Quando estão a estudar, ainda há uma esperança qualquer. Depois, só sendo muito bons é que podem saltar lá para fora, e nem toda a gente é muito boa, as pessoas também são normais.
Não há lugar para as pessoas normais?
Não há lugar para os normais, não é?
Que modelos de sociedade vêm aí?
Pois, não sabemos, percebe-se que o actual modelo, assente num desenvolvimento artificial que não é sustentável, é uma ficção e terá de explodir a determinado momento, mas ainda não temos as soluções, por isso é que estamos numa zona de turbulência, de inquietação ou de apatia. Quem não quer ou não é capaz de entrar na inquietação pára, bloqueia, fica a ver. Fico muito triste com a situação dos jovens e percebo a apatia deles. Como não podem avançar, recuam.
Considera que a sociedade civil portuguesa é pouco empenhada?
Somos uma sociedade civil pouco empenhada, sim. Mas enquanto países como Inglaterra têm a democracia como História, nós temos o fascismo. Ainda hoje não conseguimos livrar-nos desse "pathos". Vejo que as pessoas mais velhas do campo não sabem ler nem escrever, e isso é muito triste. Estas pessoas têm um saber incrível sobre a terra e sobre o tempo, mas ficaram apanhadas num sistema, foram "trapped" numa ratoeira chamada fascismo, que não as deixou desenvolver.
Depois do 25 de Abril, a Madalena decidiu ir para Londres estudar dança. Porquê?
Sempre fui muito física. Andei na Escola Alemã de Lisboa, uma escola que nos dá oportunidade para descobrir muitas coisas, eu gostava imenso de fazer ginástica e tive contacto com a dança através de professoras magníficas que achavam que eu deveria experimentar outras coisas. Percebi que a dança era uma linguagem, que o corpo falava, que o corpo dizia, e isso foi uma revelação para mim.
E depois viveu seis anos em Londres, onde dançava em jardins e em "squares"...
Pois, eram os meus estúdios de dança. Isso fez com que desenvolvesse um trabalho, enquanto coreógrafa, de "site specific". Fiz muitas peças, e continuo a fazer, em fábricas, comboios, em todos os sítios. Estão aí os vales, as praias, a natureza, e eu gosto muito.
Também foi mulher-a-dias, viveu num hotel, onde arrumava quartos e servia pequenos-almoços.
Sim, porque eu não tinha dinheiro e os meus pais não conseguiam abarcar toda aquela despesa.
Quando chegou de Londres, foi para Viseu dar a conhecer Pina Bausch às mulheres do campo. Teve sempre uma visão pedagógica da dança?
Estudei dança em vários sítios, comecei na escola da Martha Graham e depois fui para o Laban Centre for Movement and Dance, do Goldsmith’s College da Universidade de Londres, que divulgava a escola expressionista alemã, e é dentro dessa escola que me revejo. Rudolf von Laban, um estudioso do movimento e também criador, introduziu a ideia de que a dança é o movimento humano transfigurado ou processado para um outro plano, e é essa dança criativa e humana que vai abarcar a questão da educação, uma visão que inclui todos e não apenas aqueles que são tecnicamente capazes. Esta foi, na altura, uma atitude muito revolucionária, colocando o poder do corpo ou o poder da dança na mão de todos.
E é isso que a Madalena tem vindo a fazer toda a vida, não é?
Sou uma mistura das várias coisas, porque eu trabalho com bailarinos muito capazes também, mas aquilo de que mais gosto é de cruzar o que poderia ser, numa terminologia mais antiga, uma dança mais alta de sociedade com uma dança baixa do povo, gosto de perceber como é que se cruzam as coisas num tal ponto ómega qualquer. Quando regressei de Londres, levei Pina Bausch às senhoras da Casa do Povo como agora levo Rebecca Horn ao jardim-de-infância de Monchique. Estou a fazer um programa para as escolas daquele território, em que a ideia é ir buscar fragmentos a obras de um conjunto de artistas e levá-los até às mãos das crianças para que, através do meu olhar e experiência, esses materiais possam ser desconstruídos.
Como é que olha para a escola portuguesa? Alguns especialistas em educação defendem que temos uma escola do século XIX, com professores do século XX e crianças do século XXI. É assim?
Sim, é verdade. Estou cada vez mais interessada na educação não formal, tenho imensa sorte, convidam-me para coordenar vários projectos e, neles, eu posso introduzir a minha, não diria selvajaria, liberdade de pensamento, que está um pouco fora dos limites das regras da academia. A escola está, de facto, difícil, mas também há professores maravilhosos. Por outro lado, existem espaços à margem da escola pública que parecem perfeitos, mas isso enerva-me um pouco porque, por vezes, funcionam como uma espécie de gueto de meninos privilegiados e felizes, e eu gosto mais de pensar em projectos diferentes dentro da escola pública. Todos os meus projectos andam à volta da ideia de trazer a arte para dentro. Para dentro do tecido social, para dentro da sociedade.