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London is not calling

Destino cosmopolita e acolhedor, o Reino Unido parece viver com a sensação de que está a rebentar pelas costuras. A abertura de fronteiras a búlgaros e romenos foi um rastilho que incendiou os ânimos que estão a queimar sobretudo os polacos.

10 de Janeiro de 2014 às 14:01
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"Em Janeiro, a única coisa que fica é a cabra". Assim começava uma reportagem do "Daily Mail" que fez correr muito mais tinta do que a usada pelo tablóide londrino para antecipar o cenário terrível que, com o virar do ano, alegadamente se adivinhava em duas aldeias romenas - e também, ainda que pelos motivos inversos, num qualquer bairro britânico.


Escrevia o jornal em Novembro passado que Berini e Uliuc, duas povoações no Oeste da Roménia, numa região próxima da fronteira com a Sérvia, se preparavam para perder metade da população. Cerca de meio milhar estaria já a encaixotar os escassos haveres e a ultimar a mudança para o Reino Unido para aproveitar, desde o primeiro minuto, o levantamento das últimas restrições à livre circulação de cidadãos da Bulgária e da Roménia. No caso de algumas famílias, o êxodo seria total: só os animais permaneceriam em solo romeno.


"Impostura!", protestou o jornal romeno "Adevarul", que acusou os jornalistas do "Daily Mail" de terem chegado de Londres "já com um cenário traçado e destinado a denegrir a imagem do nosso país".


Mas o ambiente de quase histeria mediática prosseguiu. Os 140 passageiros de olhos turvos de sono que calharam chegar ao aeroporto de Lutton, no primeiro voo de 2014 oriundo da Roménia, foram recebidos com holofotes e flashes como sujeitos de uma política "irresponsável" de portas abertas aos imigrantes e na qualidade de suspeitos de se apossarem de mais um escasso posto de trabalho ou - pior - de benefícios sociais indevidos.


Esta é a narrativa da ancestral e crescente corrente eurocéptica que ganhou força no Reino Unido, sobretudo com a ascensão do UK Independence Party (Partido da Independência). Em vésperas de eleições europeias, marcadas para Maio deste ano, Nigel Farage, o seu líder, apontou ainda mais o dedo acusatório à União Europeia (UE), frequentemente encarada como causa dos piores males do país, pressionando o Partido Conservador do primeiro-ministro, David Cameron, a renegociar o contrato de adesão do Reino Unido e a prometer um referendo de resposta binária - ou dentro ou fora da Europa - na primeira metade de uma segunda legislatura, lá para 2017.


Exageros à parte, muitos britânicos - e desde logo o Governo - temem, ou foram levados a temer, uma invasão de romenos e búlgaros, designadamente da etnia cigana que continua a ser muitíssimo segregada nos próprios países de origem. A par de outros oito países (entre os quais França e Alemanha onde o debate sobre a imigração está também ao rubro) só agora, no prazo limite, o Reino Unido revogou os derradeiros mecanismos de entrave à entrada de trabalhadores oriundos da Roménia e da Bulgária, sete anos após a adesão dos dois mais pobres Estados da UE, onde os salários mínimos continuam a ser inferiores a 160 euros mensais.


A recente radicalização do discurso britânico relativamente à Europa tem raízes diversas e longínquas mas decorre, em boa medida, do fim anunciado destas restrições, que coincidiu com a mais profunda crise económica em meio século e com o surgimento de uma outra. Sendo um dos mais acolhedores e cosmopolitas países do mundo, o Reino Unido estará agora a ser assolado por uma nova crise, resultante do sentimento de que está a rebentar pelas costuras de gente que ameaça a identidade e viabilidade do modo de vida britânico.

 

 

Uma investigação publicada em Março concluía que sem um único visitante a mais, vindo de Sófia ou de Bucareste, o Reino Unido precisará de 400 novas escolas primárias por ano para dar educação aos filhos dos imigrantes que já acolhe.

 


Numa reportagem difundida em Maio, o Euronews noticiava que fechar as portas a mais estrangeiros "converteu-se num imperativo nacional". "Há quem afirme mesmo que é preciso fechar a torneira, sob a justificação de que os sistemas de saúde e de assistência social ameaçam colapsar".


Ainda no início de 2013, chegou a ser noticiado que o Governo tentara obter um prolongamento das restrições a búlgaros e romenos, mas, devido aos custos políticos de uma batalha que ficaria com grande probabilidade a travar isolado em Bruxelas, teria desistido. Passou a ponderar, em alternativa, alterações aos critérios de acesso a benefícios sociais e avançar com campanhas publicitárias negativas sobre o próprio país. Tudo para demover potenciais imigrantes vindos dos Cárpatos. O "The Guardian" deu gás à estória. Num misto de alarme e paródia, escrevia: "Por favor, não venha para o Reino Unido - chove muito e os empregos são escassos e mal remunerados", após um dos ministros do Executivo de Cameron ter alegadamente argumentado que era preciso "corrigir a impressão de que as ruas aqui são pavimentadas a ouro". O jornal chegou a desafiar os leitores para um concurso de "slogans" capazes de se encaixar no espírito e objectivos pretendidos pelo Governo. Passados alguns dias, publicou mesmo as melhores contribuições de "auto-sabotagem".


Essa notícia coincidiu com a divulgação de que há actualmente 140 mil pessoas no Reino Unido que não falam inglês - a língua franca do mundo - e de que o primeiro idioma estrangeiro mais falado é hoje o polaco. Afinal, os "canalizadores polacos", que ficaram como símbolo da ameaça de invasão de mão-de-obra barata vinda do Leste que ajudou ao chumbo do referendo em França sobre a defunta Constituição Europeia, terão preferido a outra margem da Mancha. Segundo estatísticas oficiais de 2012, cerca de 640.000 polacos vivem no Reino Unido, mas a própria comunidade estima que o seu real universo seja mais próximo de um milhão.


Caldo entornado entre Londres e Varsóvia
O receio de uma invasão de romenos e búlgaros acabou, assim, por rebentar na mão dos polacos e tem provocado um intenso fogo-cruzado entre Londres e Varsóvia. Causa próxima: depois de ter endurecido as regras de acesso a diversos mecanismos de apoio social (subsídio de desemprego, de alojamento e apoios vários ao rendimento familiar) e de ter legislado no sentido de não permitir que, quem mendiga ou durma na rua, possa reentrar no país nos doze meses seguintes ao ter sido deportado, Cameron quer deixar de pagar subsídios aos filhos de cidadãos comunitários que, residindo no Reino Unido, tenham deixado a descendência no seu país de origem. A medida até nem é especialmente controversa, mas o primeiro-ministro cometeu a imprudência de, na mesma conversa em que se referiu a "turismo de benefícios", particularizar os polacos. Caldo entornado. Jan Bury, ex-secretário de Estado do Tesouro e alto dirigente do Partido dos Camponeses, que integra a coligação governamental em Varsóvia, chegou ao ponto de sugerir a "todos os polacos" que se indignem. Como? Deixando de fazer compras na britânica Tesco que, com 446 supermercados, é uma das principais concorrentes da Biedronka, detida pela Jerónimo Martins, líder do mercado polaco.


Pouco tempo antes, também António Guterres tinha entrado no "turbilhão". O alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados alertou para os impactos negativos da nova legislação sobre os requerentes de asilo e, na resposta, Bob Neill, deputado conservador, disse não aceitar "lições de um socialista português transformado em burocrata não eleito da ONU (...) mais conhecido por aumentar os benefícios em Portugal e por se demitir imediatamente antes de o seu partido ser vencido nas urnas".


A rebentar pelas costuras?
Segundo algumas sondagens, 70% dos britânicos quer restringir a entrada de imigrantes. "Não estamos a dizer: 'Não, não venham'. O que queremos é que o governo e as autoridades tenham uma ideia dos números em questão, e que se preparem para isso. Para não acontecer como em 2004, quando nos disseram que iam entrar 13 mil pessoas por ano, vindas dos oito países que tinham aderido à União Europeia (entre os quais a Polónia). O que aconteceu foi que vieram cerca de um milhão e isso tem consequências. E as escolas? E o alojamento? E os transportes?", resume Alp Mehmet, da Migration Watch, uma ONG.


Uma investigação publicada em Março concluía que sem um único visitante a mais, vindo de Sófia ou de Bucareste, o país precisará de 400 novas escolas primárias por ano para dar educação aos filhos dos imigrantes que acolhe. Frank Field, que chegou a ser ministro do trabalhista Tony Blair, e Nicholas Soames, deputado conservador, calculavam que se conseguisse restringir a imigração líquida a cerca de 40 mil por ano - o que colocaria a população no limite que consideram máximo de 70 milhões - continuaria a ser preciso construir "o equivalente a mais uma Birmingham, Manchester, Liverpool, Bradford, Leeds, Sheffield, Glasgow, Bristol e Oxford".


A Migration Watch, que tem apresentado os números mais alarmistas, calcula, por seu turno, que cerca de dois milhões de búlgaros e romenos rumarão ao Reino Unido nos próximos cinco anos, antecipando que o maior fluxo não nascerá nos seus países de origem, antes da transferência de Espanha e de Itália, países mais afectados pela crise e que, tal como Portugal, já haviam levantado as restrições à livre circulação dos dois países.


Mas nem tudo serão espinhos. Nas contas do instituto britânico CEBR, o Reino de Isabel II pode converter-se na maior economia da Europa, ultrapassando a França nos próximos cinco anos e a Alemanha até 2030. Porquê? Em larga medida, graças aos imigrantes que agora tanto o atormentam.

 

 

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