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Lar, doce trabalho

Trabalhar em casa é o sonho de muita gente. Parece a situação ideal para conciliar a vida familiar e profissional. Mas, se não forem tomadas algumas medidas, pode correr mal.

28 de Julho de 2017 às 13:00
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Robert Kelly, professor associado da Pusan National University, na Coreia do Sul, estava em directo do seu escritório em casa, via Skype, para a BBC. Falava sobre o processo de destituição da então Presidente daquele país asiático, Park Geun-Hye. O tema não era para brincadeiras mas, de repente, tudo se tornou cómico quando Marion, a filha de quatro anos do académico norte-americano, irrompeu pela porta a dançar alegremente em direcção à câmara. O embaraço do especialista em ciência política era evidente. Tentava afastar a pequena sem deixar de falar para a televisão. Mas não contava que o filho de nove meses entrasse logo de seguida sentado numa aranha. A "cena" tornou-se ainda mais hilariante quando a mulher de Robert Kelly, Jung-a Kim, entrou desesperada no escritório para retirar as crianças. O vídeo tornou-se viral na internet e a família ficou conhecida em todo o mundo. Não tardaram os pedidos de entrevistas. De início, o casal temeu o impacto que este vídeo de 54 segundos poderia ter na carreira do professor, enquanto comentador televisivo na BBC. Mas, depois de terem recebido tantas mensagens de apoio, acabaram por achar graça à situação.

Comédia à parte, este "momento", tão partilhado na internet, levantou questões sobre o lado menos positivo de trabalhar em casa. Naquele dia, Robert esqueceu-se de trancar a porta do escritório, como faz habitualmente sempre que é solicitado para comentar algum tema para a BBC. E, quem trabalha em casa, sabe bem que tem de manter bem separado o espaço familiar do profissional.

É o caso da fotógrafa Alexandra Carvalho, que mudou radicalmente de vida há três anos. Deixou para trás o emprego de administrativa numa empresa de limpezas químicas, onde se sentia infeliz, para se dedicar a um sonho - fotografar bebés recém-nascidos. Foi preciso ganhar coragem e, quando deu o passo, sentiu uma espécie de "libertação". "Eu vivia em stress, estava sempre à pressa para ir buscar a minha filha à creche, sentia remorsos por muitas vezes não poder acompanhá-la às consultas, porque o meu chefe não gostava e eu tinha medo de perder o lugar", conta. Estava a viver "com o coração pequenino e apertado". Por isso, "quando percebi que era possível, decidi abandonar o meu trabalho".

Foi em Dezembro de 2013, em plena crise. "Falava-se muito sobre empreendedorismo. Comecei a estudar e a frequentar cursos", explica. Primeiro, fotografou amigas grávidas, depois montou um estúdio em casa e começou a fotografar recém-nascidos. Investiu em material fotográfico e acessórios. O passo seguinte foi abrir uma página no Facebook, onde partilha as suas imagens. Hoje tem um negócio montado e trabalho não lhe falta. Mas, sobretudo, está feliz. "É uma coisa que faço com gosto", diz.

Ainda assim, este sonho tem um lado menos bom. Alexandra admite que não tem sido fácil gerir uma casa, a família e o trabalho. "É preciso ter disciplina. Tento organizar o meu trabalho de maneira a ter tempo. Tenho de conciliar a agenda profissional com a pessoal. Se vou a uma consulta com a Sara [a filha de sete anos], não marco nada." É difícil ter "tempo de qualidade com a família", porque o trabalho está em casa. "Quando temos um emprego fora, saímos e quando regressamos o trabalho acabou. Aqui não. Está sempre cá. É difícil desligar."

O próprio tempo da deslocação de e para o local de trabalho acaba por "ajudar a desligar", diz a fotógrafa. "Podemos ler uma revista ou um livro nos transportes." Alexandra diz ainda que, por vezes, sente falta do contacto com as pessoas, sente falta de uma equipa, da troca de ideias. "E, num trabalho como o meu, criativo, isso é algo que faz falta." Na realidade, estar sempre em casa também pode prejudicar o desempenho, considera a fotógrafa. Por isso, é importante ter algumas experiências fora de casa, como ir a uma exposição ou ao cinema. Mas nem sempre isso é possível. "Às vezes sinto-me 'seca'", desabafa.

Por outro lado, quem trabalha em casa tem, desde logo, de confrontar-se com distracções: o carteiro, uma reparação em casa, a confecção das refeições. Todas estas pequenas coisas, juntas, "roubam" tempo ao trabalho. E há quem não consiga manter a produtividade nestas condições.

No entanto, são muitos os aspectos positivos de trabalhar em casa. Um artigo na Harvard Business Review, em 2014, descrevia a experiência a que foi sujeito um grupo de trabalhadores de um "call center" de viagens chinês, o Ctrip. A empresa deu a oportunidade aos funcionários de se oferecerem voluntariamente para, durante nove meses, trabalharem a partir de casa. Metade dos colaboradores entrou no regime de teletrabalho e a outra metade ficou no escritório, como grupo de controlo. Findo aquele prazo, a empresa chegou à conclusão de que os funcionários que foram trabalhar a partir de casa não só estavam mais felizes como obtiveram melhores resultados do que aqueles que ficaram a trabalhar no "call center".

Nicholas Bloom, professor no departamento de Economia na Universidade de Stanford, responsável pelo estudo na empresa chinesa, contou à revista científica que uma das explicações para o resultado obtido era o ambiente mais tranquilo em casa, algo que facilita o processo das chamadas telefónicas. Além disso, as pessoas em casa trabalham mais horas. "Começam mais cedo, fazem pausas mais curtas e trabalham até ao fim do dia", disse o académico. Por outro lado, continuou o investigador, os trabalhadores não perdem tempo nos transportes e faltam muito menos por doença. O professor admite que ainda é necessário realizar mais investigações no que diz respeito às actividades profissionais criativas e ao trabalho em equipa. Ainda assim, parece haver benefícios também nestes casos, nomeadamente quando se segue "a regra de ouro": dar aos trabalhadores a opção de trabalharem um ou dois dias por semana em casa. "É muito benéfico para o seu bem-estar, ajuda a atrair novos talentos e reduz o desgaste profissional."

Esta opção mista é muito apreciada por trabalhadores mais velhos e pessoas casadas ou colaboradores com filhos. "Os mais novos, cuja vida social está mais ligada ao escritório, tendem a não querer tanto trabalhar em casa", diz. Ainda assim, sublinha o investigador, nem todas as pessoas são "suficientemente disciplinadas" para trabalhar em casa. Nem todos os trabalhadores remotos do Ctrip se adaptaram e alguns tiveram de voltar ao escritório. Uma outra pesquisa da Universidade do Arizona, que envolveu 514 pessoas, mostrou que 40% dos trabalhadores que estavam a trabalhar em casa sentiam-se desligados da empresa e queixavam-se de falta de apoio por parte chefias.

Certo é que muitas companhias, um pouco por todo o mundo, estão cada vez mais a oferecer a possibilidade de trabalhar a partir de casa como atracção para captar e reter talentos. Assim, quem está a pensar nessa possibilidade deve ponderar os prós e os contras desta mudança de vida. Para Alexandra Carvalho, pesando as vantagens e as desvantagens, o saldo é positivo. "Não estou nada arrependida da decisão que tomei." 


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