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Juan Luis Arsuaga: “A Humanidade não vai melhorar com base em pandemias”

“Eu não estudo ossos, estudo seres vivos: interessa-me perceber a vida que os ossos contêm”, diz o paleontólogo espanhol Juan Luis Arsuaga, autor do livro “Vida, a grande história – Uma viagem pelo labirinto da evolução”.

Alexandre Azevedo
Lúcia Crespo lcrespo@negocios.pt 11 de Junho de 2021 às 11:00

Há uma expressão em inglês que encaixa literalmente na vida do paleontólogo espanhol: "put flesh on (the bones)". "Interessa-me perceber a vida que os ossos contêm". Juan Luis Arsuaga nasceu há 67 anos e acumula mais de quatro décadas de investigação. É um dos diretores da equipa que em 1992 descobriu um conjunto de fósseis humanos únicos – vestígios dos primeiros habitantes da Europa. Foi na Serra de Atapuerca, perto de Burgos, onde também dirige o Museu da Evolução Humana. O feito foi destacado pela revista Nature e distinguido com o Prémio Príncipe de Astúrias de Investigação Científica e Técnica. Catedrático na Universidade Complutense, escreveu vários livros, o último chama-se "Vida, a grande história – Uma viagem pelo labirinto da evolução" e foi o ponto de partida para uma conversa feita de muitos risos – e até de cócoras.




Muitas vezes lhe perguntam o que é que causa a extinção das espécies. Costuma dizer que a questão está mal formulada, que lhe deveriam perguntar o que é que faz com que as espécies não se extingam…

Todas as espécies estão constantemente à beira da extinção, e a dada altura podem mesmo desaparecer. Através da genética e do ADN antigo, observamos aquilo a que se chama o "efeito de gargalo" populacional ("the bottleneck effect"): uma diminuição abrupta da população e a consequente perda de diversidade genética. Restam poucos indivíduos, mas a sua população consegue depois voltar a reproduzir-se. Mais tarde, verifica-se uma nova contração demográfica... Concluímos recentemente um estudo sobre um "bottleneck effect" dos neandertais: eles eram muito numerosos, extinguiram-se quase na totalidade, mas voltaram a crescer. E é assim a vida secreta das espécies: a certa altura, sofrem um "efeito de gargalo" – e a extinção ocorre quando o "gargalo" é demasiado estreito.

E isso pode acontecer com o Homem?
Esperemos que não, creio que a espécie humana consegue adaptar-se e voltar a recuperar. Estaremos um pouco à margem das leis da natureza e isso acontece graças à ciência. Mas ocorrem mudanças civilizacionais, claro, sabemos que alguns impérios colapsaram ao longo da História. E o mesmo se passa até no mundo das empresas. A Kodak, tal como a conhecíamos, desapareceu, e quem iria pensar que um dia a Kodak se poderia extinguir? E desapareceu em muito pouco tempo, como o Titanic! Foi um setor inteiro da economia que se evaporou. Mas restam sempre fósseis vivos. Eu continuo até a tirar fotografias com rolo fotográfico, afinal, ninguém sabe o que vai acontecer às imagens digitais. A película é estável durante pelo menos 100 anos. Costumo retratar a minha mãe, e também os meus filhos. Gasto um rolo por ano, 35 fotografias. Não é necessário mais do que isso. Mando revelar, devolvem-me o filme revelado, enviam-me cópias em papel e em formato digital. Depois guardo o rolo numa caixa de metal e coloco essa caixa num armário escuro.

É quase um fóssil.
Um paleontólogo não pode confiar nas imagens digitais, necessita de algo físico, porque a única coisa verdadeiramente estável é um fóssil! Um fóssil é quase indestrutível. Assim, quando morrer, vou deixar aos meus filhos a tal caixa com os negativos. Não me imagino, no meu leito de morte, a oferecer à família uma "pen drive"…! Na verdade, a tecnologia não muda o ser humano, pode é facilitar ou potenciar algumas características. Por exemplo, hoje em dia, o ser humano consegue matar a uma grande distância, mas o instinto de matar é biológico, a pulsão já existia – e a culpa não é das bombas, somos nós que as lançamos… Não sou antitecnologia, é graças à tecnologia que os meus filhos podem viver pelo mundo inteiro, e continuo a estar sempre em contacto com eles, via WhatsApp. A tecnologia que separa as famílias também as põe em comunicação.

Nunca mudamos na nossa essência?
A tecnologia muda, a nossa natureza não. O ser humano permanece igual. Costuma ir ao ginásio? Agora toda a gente vai ao ginásio. As pessoas querem sentir-se bonitas e jovens, querem ter glúteos firmes! Como os gregos. Nada de novo. Só que antigamente corríamos num bosque e agora corremos numa passadeira. Muda a tecnologia, não o nosso desejo de estarmos bonitos – isto é comportamento humano. Dizemos estar preocupados com várias questões, mas cheguei à conclusão de que a única coisa que de facto nos preocupa são mesmo os glúteos.

Costuma dizer que aquilo que realmente lhe interessa não são os ossos, mas a vida. Por vezes, até começa as suas aulas com uma imagem da atriz Uma Thurman.
Os meus alunos não sabem quem é…! Mostro-lhes uma fotografia e digo: vamos analisar esta senhora, que características tem? É bípede, o nariz é saliente, o cabelo grande. Definimos a espécie do ponto de vista morfológico. Mas uma parte da nossa morfologia tem que ver com o comportamento, não apenas com a nossa biomecânica – ninguém vai ao ginásio para melhorar a sua biomecânica. Na verdade, não me interessam os ossos em si mesmo, não me interessam os esqueletos, o que realmente me importa é a vida. E os ossos são úteis para entender a vida – têm essa função. Lembro-me de um cientista dizer que a paleontologia não estuda os animais que morreram há muito tempo, mas sim os animais que viveram há muito tempo. Interessa-me perceber a vida que os ossos contêm – em inglês, há uma expressão muito apropriada, "put flesh on (the bones)", pôr carne no osso.

Foi sempre a vida que o moveu?
Por exemplo, ao olhar agora para a Avenida da Liberdade, verifico que estão a plantar novas árvores, de uma espécie chamada Celtis, e isso muda a fisionomia da avenida. No futuro, as ruas serão diferentes… Todas estas mudanças me interessam, tudo me interessa – é a resposta à sua pergunta. Não sei como há pessoas que se aborrecem, é tudo tão interessante.

Nunca se aborreceu?
Nunca, todos os dias são uma aprendizagem.

Profissionalmente, poderia fazer qualquer outra coisa?
Poderia ser paisagista, por exemplo. Mas prefiro fazer aquilo que faço, é o que mais gosto de fazer. A evolução humana está muito relacionada com a ecologia, mas as pessoas que só estudam ossos, infelizmente, não estão interessadas na ecologia. Por vezes, quando estou em escavações arqueológicas, no meio do campo, aproximo-me de colegas e pergunto-lhes: sabes que árvore é esta? Não sabem, não se interessam… Os nossos antepassados viviam na floresta, como é que as árvores podem não importar? Eu não estudo ossos, estudo seres vivos, num contexto ecológico, o que é muito mais divertido.

Porque é que começou a estudar a vida do passado?
Porque gostava da natureza. Cresci no País Basco e senti-me desde sempre atraído pela pré-história e pelas cavernas – as cavernas têm muita magia e muito mistério –, fascina-me sobretudo a conexão entre o ser humano e a natureza, e a pré-história é a nossa conexão com a natureza. Nessa altura, éramos realmente parte integrante da natureza, agora vivemos numa dicotomia, a natureza de um lado, o ser humano do outro. Na pré-história, não havia separação entre o Homem e a natureza.

Poderíamos falar quase de uma involução humana?
Agora voltámos à pré-história – queremos glúteos! Muitas pessoas dizem que no futuro seremos seres híbridos, com implantes, e eu digo que no futuro teremos glúteos. Ninguém quer ter uma antena na cabeça. O que as pessoas querem ter na cabeça é cabelo, não antenas! Não queremos transplante de antenas, queremos transplante de cabelo.

Somos muito parecidos com os pré-históricos, na tal natureza essencial.
Somos os pré-históricos! O desafio passa por conciliar a nossa natureza pré-histórica com o estilo de vida moderno. Existe um choque, e muitas das nossas doenças derivam dessa falta de sintonia. Por exemplo, não é natural estarmos a conversar sentados em cadeiras, deveríamos estar de cócoras. Vários problemas de coluna se devem precisamente ao facto de nos sentarmos desta forma, com o peso do corpo sobre as vértebras lombares. Na história da Humanidade, a cadeira é uma exceção. Os árabes, por exemplo, estão sempre de cócoras. Assim como os chineses. É surpreendente ver mulheres chinesas de 70 anos, sentadas de pernas cruzadas, a levantar-se muito naturalmente, como se tivessem molas nas pernas. Nós costumamos obrigar as crianças a sentarem-se na sanita para fazer cocó, elas não querem, preferem estar de cócoras, que é uma posição muito mais natural! A mesma coisa acontece com o trabalho de parto… Não acredito que voltemos às cócoras, mas as cócoras funcionam como uma metáfora do nosso estilo de vida.

Vários movimentos ecológicos tentam hoje recuperar alguma ancestralidade.
Simpatizo com alguns movimentos, mas não sou fanático, aliás, o fanatismo preocupa-me bastante. Tal como as religiões, muitas dessas escolas partem de uma base correta, mas depois convertem-se numa lista de proibições – Não comerás isto. Não. Não e Não. Isto assusta-me. Mas é verdade que temos um estilo de vida muito stressante, deveríamos viver de uma forma mais relaxada, apostar numa dieta mais natural, falar mais com os amigos, estar com os netos. E não temos tempo. É importante recuperarmos da pré-história o tempo – o estar à volta de uma mesa a contar histórias, isso é bom.

A pandemia trouxe-nos alguns desses ensinamentos?
Não acredito nisso, é como se a pandemia fosse um castigo de Deus. Isso é a Bíblia, basta substituirmos Deus pela natureza: Deus castigou a nossa má conduta, merecemos este castigo; Deus pede que nos arrependamos. Se nos arrependermos, Deus irá dar-nos uma nova oportunidade… Ninguém aprende com a morte de um filho, não se aprende nada com as desgraças.

Não se aprende nada com o sofrimento?
Espero que não, a Humanidade não vai melhorar à base de pandemias. As pandemias não são a solução para nos tornarmos melhores pessoas, temos de ser melhores pessoas sem pandemias. A questão dos "ensinamentos" soa-me demasiado judaico-cristã, não gosto da ideia de sentimento de culpa, e há um sentimento de culpa constante, e por tudo – tiveste um enfarte porque estavas gordo. Não deverias estar gordo, a culpa é tua!

Durante o confinamento, muitas pessoas foram obrigadas a desacelerar o ritmo de vida. Há a sensação de que o pé está de novo no acelerador, e a alta velocidade. 
A nossa economia assenta no consumo, esse é o problema. Mas qual a solução? Ainda ninguém a encontrou. Esta semana, por exemplo, aprendi uma grande lição. Faço parte do conselho consultivo de uma fundação governamental para a biodiversidade. Há uns dias, tentámos elaborar um texto com várias recomendações destinadas a alterar hábitos de vida. Um dos proponentes disse que deveríamos comprar menos roupa por ano, mas logo a seguir um representante do setor de vestuário alertou que tal seria insustentável para uma indústria que emprega milhares de pessoas – a sugestão não foi então incluída no documento; outro consultor sugeriu reduzirmos o consumo de carne, mas de imediato foi contestado por um representante de uma província que depende muito da pecuária – a recomendação foi assim excluída do texto. A seguir, olhei para a minha garrafa de água e disse: esta água vem da Corunha, a empresa está sediada na Catalunha, e estamos a vendê-la em Madrid, isto não é sustentável. Responderam-me logo que a indústria de água engarrafada dá trabalho a muita gente… – proposta rejeitada. Por fim, alguém sublinhou que, sempre que lavamos os dentes, devemos ter o cuidado de fechar a torneira – sugestão aprovada por unanimidade!

É uma história demonstrativa do enredo da economia.
Não podemos reduzir o consumo, porque a economia e o emprego assentam neste modelo. Como saímos deste ciclo? Ninguém tem a resposta final. Existem é muitos falsos profetas. Uma vez, durante um ato público, estava a falar precisamente sobre este assunto e ao meu lado estava um guru – ele tinha um apartamento enorme em Madrid e uma quinta no campo e dizia que era agricultor. Esse guru garantia então que tinha a solução para os problemas, e que essa solução estava… no budismo! Seguiu-se uma grande ovação na sala. Nesse dia percebi que as pessoas não querem receber más notícias, não querem cientistas como eu, que lhes diga que há problemas, não querem um médico lhes diga que têm um cancro, querem alguém que lhes diga para beberem sumo de cenoura todas as manhãs. As pessoas não querem um diagnóstico, querem um guru; as pessoas não querem ciência, querem religião, porque a religião é mais cómoda.

Há pouco, dizia-me também que está à espera que apareça um génio da economia.
De um génio ou de um revolucionário. Não há nenhuma ideia nova desde Marx. Não que eu seja ou deixe de ser simpatizante do marxismo, mas trata-se de uma ideologia do passado. É possível que no século XIX eu apoiasse o marxismo, como antes disso poderia ser simpatizante de Adam Smith ou na Idade Média simpatizaria com Tomás de Aquino… não sei, mas no ano 2021, tudo isso é história. A solução dos problemas do presente não está no passado, nem nunca esteve. Terá de haver uma solução nova. O futuro será diferente, não sei como. Algo tem de acontecer.

Consegue estar em sintonia com o que sente? Como vive o dia a dia?
Como se fosse o último.

Como um homem pré-histórico?
Sim. O homem pré-histórico sabia que cada dia podia ser o último dia. Quando se vive com cobras venenosas, leões e mamutes, existe a noção de que cada dia pode ser mesmo o último. Eu gosto da vida, desfruto-a ao máximo, aprendendo e continuando a aprender. Por vezes, pedem-me um conselho, já que sou tão "sábio", e eu costumo responder: o esparguete não deve ferver mais de dez minutos. Gosto da "pasta al dente"! – é o único conselho que posso dar. Mas, se for obrigado a dar uma outra recomendação, diria apenas: aprendam. Aprender é maravilhoso, devemos aprender todos os dias.
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