"O racismo esconde-se, transforma-se e adapta-se como um vírus em evolução." A imagem, bem conhecida em tempo de pandemia, é usada pelo psicólogo social Jorge Vala no seu livro "Racismo, Hoje: Portugal em contexto europeu", publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. O investigador-coordenador no Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, que se tem dedicado ao estudo do racismo e do preconceito, considera que Portugal tem tido dificuldade em olhar para o seu passado colonial porque instituiu a História "como o elemento fundamental da identidade e do orgulho nacional".
O racismo é uma questão moral ou política?
Tem as duas dimensões, mas é, antes de mais, uma questão de conhecimento. Por trás da criação da ideia de raça há um sentido de procura, de apropriação do nosso lugar no mundo e de dar sentido às diferenças entre os humanos. Foi assim que nasceu, nos séculos XVIII e XIX, a institucionalização e a difusão do conceito de raça. Desde o início desse movimento que lhe estão associadas as ideias de valor e de poder. O raciocínio é: existem diferentes grupos que não valem todos o mesmo e há uma hierarquia entre eles em que a uns é concedido o direito de dominar os outros. Este projeto de conhecimento, se assim lhe podemos chamar, acaba por envolver uma questão moral que é a ideia de que os humanos não são todos iguais. E também envolve uma questão política, porque a dimensão de poder associada à ideia de raça tem, necessariamente, significado político.
Um país colonizador, como foi Portugal, terá sempre de lidar com a questão do racismo?
A questão do racismo não é específica dos países que foram colonizadores. É intrínseca às sociedades ocidentais. Mas para nós, portugueses, este processo desenvolve-se, de facto, num contexto de colonização, de conhecimento de outros povos, e sustentou essa colonização. Mas, por exemplo, a Alemanha, que teve colónias durante um reduzido período de tempo, foi um país que desenvolveu e teorizou o racismo tornando-o com toda a sua força uma forma de organizar o Estado. Noutros países, do Leste por exemplo, há dificuldades em lidar com esta diversidade entre os humanos e aí a força das crenças racistas é bastante grande.
Temos de perceber o passado para entender o presente?
Se não resolvermos o problema da nossa memória, como país colonizador, teremos mais dificuldade em compreender o que se passa hoje na nossa sociedade e, de facto, temos tido muita dificuldade em olhar para o nosso passado. Isto porque, contrariamente ao que acontece noutros países, instituímos a História como o elemento fundamental da identidade e do orgulho nacional. Somos o país europeu que mais assenta na História o seu orgulho como povo e que mais associa a sua História ao passado colonial e ao movimento das Descobertas. Então, quando falamos em racismo ou em relações coloniais menos positivas, isso constitui um atentado à nossa autoestima e à nossa identidade como povo.
A secretária de Estado para a igualdade, Rosa Monteiro, disse recentemente que "é preciso reforçar o debate sobre o colonialismo e a escravatura". Concorda?
Penso que sim. Durante demasiado tempo ignorámos essas questões. Há colegas meus que analisaram o ensino da História nos manuais do ensino secundário e verificaram que esse problema não está efetivamente resolvido de forma equilibrada. Há outros países europeus que estão já num processo de mudança da sua visão sobre a História colonial ou do colonialismo como projeto europeu, porque o colonialismo fez parte de um projeto europeu. Isso tem tardado a ser feito em Portugal. Precisamos de convocar o trabalho dos nossos historiadores, porque temos de fazer um trabalho rigoroso. Temos de olhar para a nossa História como um processo complexo e com tudo o que teve de positivo e de negativo. Precisamos sobretudo de assumir o que houve de negativo na História colonial e no nosso envolvimento nos processos de escravatura. É com isso que temos de nos confrontar se quisermos construir um país diverso, heterogéneo e com futuro.
Olhando para a História, percebe-se que as maiores manifestações de racismo se verificam na sequência de crises económicas e sociais? Há uma ligação?
Essa relação entre as crises económicas e o racismo, nomeadamente o racismo mais violento, é uma interpretação que tem alguma tradição. Por exemplo, sabe-se que nos EUA [no tempo da escravatura], quando o preço do algodão baixava, havia um aumento do número de negros linchados nos estados do Sul. A ascensão do estado nazi tem sido apresentada como resultado da crise na Alemanha na sequência da I Guerra Mundial. Mas há bastantes estudos que - sem porem em causa o contributo que essa situação de frustração económica teve na aceitação do nazismo - colocam o acento tónico noutros aspetos do problema relacionados com o autoritarismo e a ideologia conservadora, de uma forma geral. Diagnósticos feitos na Alemanha e nos EUA verificaram que o autoritarismo envolve um conjunto de crenças que estão ligadas ao racismo, à homofobia, a um pensamento anticiência, assim como à aceitação da autoridade e da repressão. Isso significa que, provavelmente, não são apenas os fatores económicos que levam ao exacerbamento da discriminação com base na ideia de raça, em determinados momentos.
Teme que a pandemia reacenda alguns sentimentos racistas na sociedade portuguesa que, eventualmente, estavam recalcados?
Há um determinado tipo de forças ideológicas conservadoras e autoritárias que podem mobilizar os sentimentos de insatisfação das pessoas. Mas não são as pessoas que, por si mesmas, fazem uma associação entre o seu mal-estar e o eventual privilégio dos grupos minoritários, nomeadamente dos grupos a que chamamos hoje de racializados, que são as pessoas negras, ciganas, os imigrantes da Ásia ou de países do Leste europeu. A análise desta situação tem de nos levar a uma reflexão sobre como o pensamento autoritário e conservador é capaz de mobilizar os sentimentos de frustração para levar a uma maior infra-humanização dos grupos minoritários, nomeadamente os racializados.
Estão criadas as condições para os movimentos de extrema-direita ganharem força em Portugal?
Depende da qualidade desses movimentos de extrema-direita. Por isso, precisamos de ter atenção à sua ação. E as instituições, desde logo as instituições políticas e os partidos, têm de olhar para esses movimentos, que nunca desapareceram da sociedade portuguesa. Há 20 ou 30 anos que têm estado continuamente presentes e conseguiram eleger um deputado. É necessário não legitimar o discurso que tem sido produzido a partir desse lugar pela extrema-direita.
Escreve no ensaio que "o racismo esconde-se, transforma-se e adapta-se como um vírus em evolução". De que forma?
As democracias perceberam que só se podem desenvolver a partir da igualdade entre todos os grupos sociais, a partir de uma neutralidade entre as pessoas. Daí a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Este espírito antirracista desenvolveu-se e, a pouco e pouco, tornou não aceitável, do ponto de vista social, o racismo mais tradicional, baseado numa suposta hierarquia com base em fatores biológicos, que organizaria as diferenças entre os grupos humanos. Mas, progressivamente, o experimento deixado pelas ideologias racistas continuou a alimentar as nossas representações sobre a sociedade, só que não se podia expressar como até aí, de forma brutal e com base em crenças associadas à biologia, todas postas em causa pela ciência. Quer nas nossas instituições, quer na nossa vida quotidiana, o racismo continua a estar presente, mas agora de uma forma subtil e escondida para não pôr em causa a norma do antirracismo e um princípio fundamental da democracia. Mas também para não pôr em causa a nossa autoestima.
Como assim?
A maioria das pessoas quer hoje definir-se como não preconceituosa, como igualitária, como defendendo o princípio de que a lei deve ser aplicada para todos da mesma forma e que os direitos devem ser iguais para todos. Isso é um princípio que alimenta a nossa autorrepresentação e a nossa autoestima. Quando os nossos comportamentos põem em causa essa nossa autodefinição como igualitários, o que fazemos é legitimar esses comportamentos, transformando-os em comportamentos normais. Por exemplo, na escola, as crianças negras podem ser discriminadas, mas dir-se-á que não estão a ser discriminadas, que os resultados escolares destas crianças apenas refletem a sua situação socioeconómica. Ora, hoje sabemos que os resultados escolares dessas crianças refletem com certeza a sua situação socioeconómica, mas também algumas práticas e crenças racistas por parte da instituição escolar.
Por parte dos professores?
Não há dados que possam dizer isso dessa forma. Mas a instituição, como tal, é geradora de discriminação. Há pouco tempo, foi divulgado um estudo que mostrava que, na constituição das turmas, em cerca de 90 concelhos analisados, havia segregação. As crianças negras, brasileiras, não portuguesas de uma forma geral, eram muitas vezes reunidas numa única turma. Isto vai contra os princípios de constituição das turmas. Não podemos falar aqui no papel dos professores mas no funcionamento da instituição escolar, que necessita de ser repensado. A instituição escolar não tem pensado na forma como indiretamente promove a discriminação, na forma como separa as crianças negras ou ciganas ou imigrantes da carreira regular do ensino secundário e as reenvia desde cedo para as carreiras profissionais. É uma escola que não olha para o baixo número de crianças negras que conclui o secundário, que não olha para o reduzido número de crianças negras que é capaz de chegar à universidade. Não porque não sejam capazes, mas porque estão envolvidos numa teia de dificuldades que tornam o seu progresso difícil. E a escola é uma instituição fundamental no funcionamento da democracia.
Uma jovem voluntária da Cruz Vermelha espanhola, que abraçou um migrante senegalês em Ceuta, foi atacada nas redes sociais. São reações de ódio ou de medo?
Em primeiro lugar, são reações racistas que têm por base um pensamento racista. Se as emoções têm primazia sobre as cognições ou se são as cognições que têm primazia sobre as emoções, essa é uma questão complexa. O que podemos dizer é que as crenças e as emoções jogam paralelamente para produzirem um determinado comportamento. Neste caso, é uma avaliação negativa do comportamento da voluntária da Cruz Vermelha. Que emoções estarão aqui presentes? Medo? Ódio? Penso que as duas. O medo e o ódio aparecem muitas vezes associados. E, neste caso concreto, a situação foi apresentada como uma invasão. Oito mil pessoas passaram para Ceuta. Esta crença racista da inferioridade do senegalês relativamente aos europeus, ao espaço onde ele desejaria estar e viver, é acompanhada provavelmente pela ideia de medo. E o medo pode desencadear o ódio. Mas, fora deste episódio concreto, a forma como a Europa tem reagido relativamente aos migrantes subsarianos que tentam atravessar o Mediterrâneo é completamente desajustada, porque sabemos que a Europa necessita de vários milhões de imigrantes.
Os casos, divulgados em Odemira, de imigrantes que trabalhavam em explorações agrícolas e viviam em situações desumanas devem envergonhar-nos como país?
Para nos envergonharmos, temos de ter consciência de que alguma coisa de errado se está a passar.
E não temos?
Penso que não. Estamos suficientemente protegidos relativamente a imagens daquele tipo para que possamos sentir que alguma coisa de errado se passa naquela situação. Repare, um mês antes, um membro do Governo tinha estado em Odemira dizendo que era um espaço exemplar de integração de imigrantes. Ou seja, não só negamos que haja discriminação como não vemos que há. São dois movimentos paralelos – negar e tornar invisível a discriminação. O raciocínio é: eles estão em más condições de habitação, mas mesmo assim têm melhores condições do que tinham nos seus países. Estão 20 numa casa, mas nos seus países provavelmente eram 40. Têm má alimentação, mas nos seus países ainda tinham pior. Não têm direitos laborais, mas nos seus países ainda teriam menos. Então, o que é que há de errado naquela situação?
Há uma tendência para relativizar, é isso?
Temos a tendência para não ver aquele facto como uma situação que questiona os direitos humanos e a legislação portuguesa. É evidente que muitos de nós sentimos vergonha. Mas penso que nunca conseguiremos entender estes fenómenos se pensarmos em termos de pessoas. Temos de pensar em termos de instituições. O que devemos pensar é que as nossas instituições – o SEF, a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), os responsáveis pelas questões de imigração, o poder local – tornam esse fenómeno invisível e acabam por encontrar fatores que o legitimam. Há neste momento um movimento de reposição dos direitos humanos. Vamos ver até onde é que essa reposição é levada.
O título do seu livro contextualiza o racismo em Portugal enquanto país europeu. Esta é uma luta nacional ou tem de ter um perímetro mais alargado?
O racismo efetivamente tem de ser pensado localmente, a nível de cada um dos países. Mas tem também de ser pensado a nível europeu. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, por boas razões ou por estratégia, sentiu que tinha de fazer um "statement" sobre a questão do racismo. A Europa tem neste momento um plano de combate ao racismo e em Portugal está em discussão um Plano Nacional de Luta Contra o Racismo, com medidas extremamente interessantes. Mas esse plano não tem uma priorização das medidas, não tem procedimentos de avaliação da sua execução, nem um plano de avaliação de impactos dessas medidas.
Na sua opinião, que medidas devem constar neste plano?
Há uma (medida) à qual sou extremamente sensível, a construção de contingentes, ao lado do contingente geral, no acesso ao ensino superior. Não se trata de pôr em causa os "numerus clausus". A ideia seria criar um contingente para jovens que vêm dos Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP). É uma medida que não obriga a quotas, não tira lugar a outros. É um número que é definido, mas que está ao lado do contingente geral. Associado a isso, ter bolsas de apoio a esses jovens seria uma medida extraordinariamente interessante.