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João Onofre: "Não há inspiração divina. Há trabalho"

João Onofre, um dos artistas mais importantes e mais internacionais da sua geração, constrói situações, enquadramentos para se desenrolarem comportamentos, experiências nas quais se tenta isolar a essência do que somos. Criou para a Sala das Caldeiras do MAAT uma gigantesca e encantadora caixa de música.

Bruno Simão
01 de Setembro de 2017 às 14:00
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Se tivéssemos de escolher uma só palavra para falar do trabalho de João Onofre, talvez fosse acção. No caso da instalação "site-specific" que João Onofre criou para a antiga central eléctrica, agora Sala das Caldeiras do MAAT, a obra é feita com a matéria do próprio dia, todos os dias. Usando a luz de sol, o bem mais precioso, e um sistema de robótica, as máquinas foram transformadas em produtores de som e todo o edifício-máquina transformado numa gigantesca e encantadora caixa de música. A melodia é interessante porque não é repetível. Como a arte.

A experiência não torna mais fácil o trabalho seguinte. Num domínio mais prático, sim, a experiência ajuda: por exemplo, na gestão de equipas de filmagem quando faço vídeos. Mas o processo criativo é bastante complexo e nunca é fácil. Nunca há uma inspiração divina. Isso não existe. É trabalho. É investigar, experimentar, falhar, investigar outra vez, experimentar, falhar outra vez.

Na verdade, a arte ou é experimental ou não é arte. E vemos que, na História da Arte, as obras que ficam são normalmente exemplos de experiências que se manifestaram como disruptivas ou inovadoras em determinados períodos históricos e só mais tarde são aceites. A tão mal tratada ideia do "ready-made" do [Marcel] Duchamp, por exemplo, é uma ideia experimental do início do século XX que acaba por influenciar todo o século XX e ainda influencia o século XXI.

O início do processo criativo é muito difícil de explicar. No caso do trabalho aqui na Sala das Caldeiras do MAAT, percebi que a existência da máquina não podia passar despercebida. É um espaço extremamente carregado, com as caldeiras, que já têm o seu próprio percurso museológico.

Este tipo de edifícios são edifícios-máquina. Primeiro, montavam-se as máquinas e só depois é que se faziam os edifícios ao tamanho e ao ajuste das máquinas. Então, achei que tinha de usar a máquina como constituinte da obra, do meu trabalho.

Acho que a minha ideia sempre foi transformar aquele edifício, com dimensões industriais bastante generosas, num instrumento musical - e num instrumento regido pela luz [do Sol], que é uma questão que me interessa explorar -, mas daí até conseguir implementar a ideia, demorou largos meses e implicou muitos saberes distintos.

É uma exposição muito longa em termos de duração e os componentes tecnológicos tinham de se adaptar a essa duração: são cinco meses em que todo o sistema está a funcionar, todos os dias, sempre. Na realidade, o sistema que montámos só se desliga à noite. Quando está escuro, não funciona e não produz som. Assim que nasce o Sol, volta a música. E todos os dias a música é diferente.

O meu interesse pelo som vem talvez de tentar estudar e olhar para a cultura popular. A música é um elemento cultural que está muito presente no domínio público. Digamos que está no museu imaginário do público. Tenho tido diferentes abordagens em relação aos objectos sonoros, mas sempre nessa perspectiva de os analisar como objectos culturais que nos rodeiam e que rodeiam quase todos os espectadores.

Antes de 2000, interessava-me bastante o ritmo, e conseguia fazer tapetes rítmicos com a utilização do corpo, por exemplo, com performers que caíam e faziam movimentos corporais que produziam som. Depois em 2000, fiz um trabalho que se chamava "Instrumental Version", em que pus o Coro de Câmara da Universidade de Lisboa a cantar todos os sons de sintetizador do tema "The Robots", dos Kraftwerk. O coro, na altura, tinha um repertório muito sacro, e, quando cheguei com o projecto, ficou tudo a olhar para mim: mas agora vamos cantar máquinas? Mas era o que me interessava: ver como é que o corpo reagia à tecnologia.

Mais tarde fiz um trabalho composto por uma escultura e uma banda que actua dentro da escultura. Tem que ver com o som e a ausência de som; com o ar e a ausência de ar. A escultura é uma réplica de um cubo de um artista americano minimalista, o Tony Smith, só que por dentro tem as paredes isoladas acusticamente. As bandas são sempre de death metal, um género do heavy metal. A banda começa a tocar com uma das faces do cubo aberta e o som é muito alto. Quando se fecha o cubo, perde-se o som. Para não sair som, o ar é limitado, porque o som propaga-se pelo ar. Conforme o ritmo a que a música obriga os corpos a tocar, o ar começa a ficar rarefeito e quando já têm muito pouco ar, os músicos abrem a porta e saem. As durações das performances são sempre desconhecidas porque depende do corpo dos músicos. É uma peça sempre muito tensa, mas é muito interessante ver aquele mecanismo que encapsula os músicos e observar o choque perceptivo dos espectadores.

O vídeo transformou-se bastante desde que comecei a trabalhar com vídeo em 1997. Já estamos na época do ultra HD. Já estamos numa espécie de hiper-realismo da imagem de vídeo. O que coloca uma questão quase ontológica: quando nós vemos um vídeo em ultra HD, a imagem, por ser tão definida ao pormenor, quase perde o referente com a realidade. Ou seja, os poros da pele vêem-se e nós não os vemos. Os nossos olhos não vêem esses pormenores e as máquinas vêem. A publicidade, a televisão, o cinema, todo o panorama audiovisual à nossa volta é em ultradefinição: quase diria que é um panorama audiovisual das máquinas, já não é nosso.

Ao mesmo tempo, temos as imagens ultra lo-fi, gravadas com telemóvel, que também percepcionamos como verdade, porque é assim que sabemos dos protestos na Praça Tahrir. E é assim que sabemos da avioneta que aterrou de emergência na praia da Costa de Caparica, porque alguém filmou com o seu telemóvel.

Há um pólo estranho entre as imagens de vídeo com muito pouca definição e as imagens ultradefinidas - o que nos dá uma percepção da imagem quase esquizofrénica.

Não é que eu goste de trabalhar no limite, mas se não for desse modo não se manifesta a intensidade do real nos trabalhos. Porque o que têm muitas das minhas obras é uma relação muito concreta com algo muito real. Um exemplo claro é o vídeo com o abutre: o abutre dentro do ateliê. A manifestação do animal selvagem é única, não se pode representar. Acho que os meus filmes estão sempre no domínio da acção e não da representação: são coisas que aconteceram ou que estão a acontecer. Não há encenação. É quase como criar contentores para que algo aconteça lá dentro. Talvez essa seja uma boa definição do meu trabalho.

No caso do abutre, o contentor é o ateliê de um artista. O guião é simples: um abutre dentro de um ateliê de um artista. Mas o que é que ele vai fazer? 


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