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João Mourão: A imaginação pode ser usada como uma ferramenta institucional

João Mourão é um dos fundadores da Kunsthalle Lissabon, um espaço cultural para mostrar trabalhos de artistas portugueses e estrangeiros. A partir de dia 25 de Janeiro, apresentam a obra da francesa Nathalie du Pasquier.

Miguel Baltazar
20 de Janeiro de 2017 às 16:00
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João Mourão começou, com Luís Silva, um projecto que tinha tudo para dar errado. Um espaço cultural sem fins lucrativos para mostrar arte. Uma instituição - mas sem os meios que normalmente uma instituição tem. Começaram num pequeno espaço decrépito com um nome ambicioso: Kunsthalle, como os museus da Europa Central. Não só sobreviveram aos anos de crise como se afirmaram no mapa da cidade. Colaboram constantemente com instituições estrangeiras. Na Kunsthalle Lissabon, tanto se estreiam artistas portugueses como passam artistas estrangeiros estabelecidos, como é o caso de Nathalie du Pasquier, que vai expor a partir de dia 25. O espaço da Kunsthalle é hoje menos decrépito, mas ainda informal, um pouco escondido, num bairro periférico para onde começaram a mudar-se galerias. Um espaço bom para receber artistas e trabalhar como gostam, com proximidade, com a ideia de que estar junto pode simplesmente ser a melhor ferramenta de trabalho.


1. Começámos isto quase como um embuste. Ou um teste. Vamos criar uma instituição: não lhe chamamos uma galeria, não lhe chamamos um espaço não convencional. Chamamos-lhe Kunsthalle Lissabon, que é um nome já carregado de sentido para as pessoas habituadas a ir a museus. A Kunsthalle é um modelo de museu germânico. Actualmente, uma Kunsthalle é quase sempre uma instituição com um grande orçamento, com um grande número de funcionários, e é um dos principais museus de uma cidade. Portanto, criar um espaço chamado Kunsthalle era uma forma de brincar com as expectativas das pessoas.
O primeiro espaço onde estivemos era num pequeno escritório de rua. Era realmente um espaço decrépito. Confundia as expectativas, criava um embuste. Era quase um exercício e não sabíamos no que é que esse exercício iria dar.
O que aconteceu é que o projecto foi muito bem recebido e, no final do primeiro ano, apercebemo-nos de que a ideia do embuste já não colava porque as pessoas já nos levavam a sério.
Um dia, numa conversa com uns alunos de um mestrado em Belfast, que estavam numa visita de estudo a Lisboa, falámos do modelo que queríamos para o espaço e referimos a ideia do embuste. E eles disseram: mas vocês parecem tanto uma instituição quanto os sítios em Lisboa onde estivemos antes. Vocês têm aqui uma exposição, podem não ter o orçamento e o pessoal, mas o vosso resultado final é o mesmo que as outras instituições dão à cidade.
Nesse momento, decidimos começar a pensar o que é que nós, enquanto instituição, podíamos então trazer de diferente para a cidade.

2. Uma das coisas de que normalmente os artistas se queixam é que se sentem um pouco como carne para canhão. A passagem pela instituição é isso mesmo: uma passagem. Tu vais, fazes a exposição, não há muita relação, vais embora, vem outro. As máquinas são tão grandes nos museus que a relação é apenas de trabalho: tens de cumprir aquele prazo ou o outro prazo, e perde-se um lado mais pessoal e mais emocional.
Para nós, as exposições que apresentamos são um resultado de uma relação, de uma amizade que se constrói com o artista. A Kunsthalle, para nós, é também isso: um processo, uma possibilidade de criar comunidade.
O resultado final de uma relação com um artista pode ser uma exposição individual, mas o propósito é que a relação continue para lá de uma exposição. Tanto no trabalho que fazemos em Lisboa como no trabalho que somos convidados a fazer fora de Portugal, os projectos partem muitas vezes de anteriores relações com artistas e partem desse lado de querer estar junto. Trata-se de pensar como é que podemos usar a imaginação como uma ferramenta institucional e como é que esta ideia de estarmos juntos e esta forma de amizade pode ser recuperada como uma ferramenta política e crítica. Acreditamos muito que é nessa ideia de estar junto que ainda se podem construir modos diferentes de fazer. Já percebemos que tudo o resto está a falhar. Tens o capitalismo a dar cabo disto, mas ainda há pequenas coisas que se podem fazer e que podem fazer a diferença.

3. Começámos com a crise. Foram anos muito complicados para as instituições [culturais] portuguesas. Iniciámos o projecto a pensar: não vamos ter dinheiro para fazer isto, mas como é que ainda podemos criar qualquer coisa? Como é que nos podemos não render a não fazer?
Houve um contexto que o permitiu, porque encontrámos um espaço no Avenida 211, um prédio na Avenida da Liberdade, que pertencia ao BES, que estava vazio e foi cedido a artistas.
O primeiro ano da Kunsthalle foi feito com artistas que, de algum modo, nos eram mais próximos, até localmente, porque não havia qualquer orçamento e tudo era feito com dinheiro do nosso bolso.
Criar uma instituição num momento assim faz com que seja preciso ter uma ginástica diferente e reduzir tudo ao essencial. Mas nunca deixámos de ser éticos. Foi desde logo uma das diferenças que quisemos marcar. Desde o primeiro ano que pagamos um "fee" aos artistas. Quase nenhuma instituição em Portugal o faz. O que também nos interessava neste projecto era pensar em modelos de instituir, de ser uma instituição, que ajudem a criar o mundo em que queremos viver.

4. Às vezes, estando numa pequena instituição, é mais fácil responder às mudanças do que estando numa instituição grande, num megamuseu, em que para mudar qualquer coisa, a estrutura é tão grande e pesada que o esforço tem de ser gigante. A possibilidade de responder, de mudar, de alterar o nosso funcionamento faz parte do nosso ADN.
Todos os anos editamos um livro que reúne as exposições que fizemos e faz um apanhado do que é que nós somos naquele momento. E de como fomos mudando.
Todos os anos, mudamos o logótipo da Kunsthalle. A ideia é reflectir graficamente que não somos uma instituição estanque, uma instituição parada, que somos uma instituição que está a ser repensada.
Construir modelos de instituição não é reproduzir modelos. É olhar em redor e colocar questões. Por exemplo: porque é que a maior parte das instituições em Portugal - e no mundo - mostram tão poucas artistas mulheres?
Agora parece que muitas pessoas estão finalmente a acordar para esta questão e começa a haver um debate [sobre a presença das mulheres no espaço público].
Como programamos muitas artistas mulheres, já vieram pedir-nos para falar sobre o assunto mas, para nós, não é um assunto. Nós queremos é que [a ideia de] incluir mulheres na programação não seja uma reivindicação, não seja um assunto para darmos entrevistas - queremos que seja o normal.
Venho da área da comunicação e o que me fez mudar para as artes foi acreditar que, nas instituições culturais, havia essa abertura para pensar sobre o mundo e agir perante as questões que nos preocupam - e continuo a acreditar que ainda é o campo que mais dá essa possibilidade.


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