Cedia o seu quarto a refugiados timorenses, deixava com eles as suas bonecas e ia dormir com a mãe - que não raras vezes adormecia a ouvir a BBC Radio. Joana desligava o aparelho, mas também ela foi ficando cada vez mais ligada à política internacional. Filha da diplomata Ana Gomes e do historiador António Monteiro Cardoso, Joana Gomes Cardoso viveu em Genebra, Tóquio, Londres, Nova Iorque e Nova Deli. Licenciou-se em Relações Internacionais, estudou Cultura e Antropologia. Começou por ser jornalista e foi vice-presidente da secção portuguesa da Amnistia Internacional. Hoje é presidente do conselho de administração da EGEAC e do Conselho da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
A cultura não lhe é um lugar estranho. Nem o mundo das siglas institucionais. Joana Gomes Cardoso foi diretora-geral do Gabinete de Planeamento, Estratégia, Avaliação e Relações Internacionais (GPEARI) do Ministério da Cultura e vice-presidente do Conselho Nacional para a Cultura entre 2010 e 2012. É presidente do conselho de administração da Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural (EGEAC) desde janeiro de 2015, e é sobretudo nesta qualidade que se apresenta. Um mandato que se mantém até à tomada de posse de um novo executivo da Câmara Municipal de Lisboa (CML). "É perfeitamente legítimo se houver vontade de mudança." A ideia de continuar agrada-lhe, mas antecipa um "período difícil, com a incerteza da pandemia e os danos que provocou no setor cultural".
Logo em 2020, a crise pandémica – e a queda do fluxo de turistas – gerou uma perda de 74% nas receitas próprias da estrutura a que preside. A autarquia lisboeta injetou um valor adicional de 12,1 milhões de euros. Só assim foi possível manter muita programação nos 17 espaços culturais geridos pela EGEAC. O Lisboa na Rua volta em setembro, mas até lá há cinema ao ar livre nos claustros do Museu da Marioneta e música no Castelo e também nos jardins do Museu de Lisboa.
A pandemia realçou a importância da cultura no bem-estar. São necessárias novas métricas para avaliar o seu impacto?
A cultura foi um dos grandes alentos durante o confinamento e existe hoje uma outra perceção da sua importância. Por outro lado, sendo um setor frágil do ponto de vista laboral, foi também dos mais afetados. Vivemos num paradigma economicista, e a cultura não escapa a isso. Medir o impacto pela receita que gera ou pelo público que traz insere-se numa dimensão normal e legítima – enquanto gestora de uma empresa, acho que devem existir indicadores. Mas esses não podem ser os únicos critérios para avaliar um serviço público cultural. Se utilizarmos apenas indicadores financeiros para medir o "sucesso" de uma peça de teatro, essa peça vai quase sempre falhar, sobretudo em Portugal, que tem dos índices mais baixos de participação cultural da Europa. Ao nível da União Europeia, há uma tentativa de medir as mais-valias da cultura em termos de bem-estar. Eu defenderia que, em último caso, a cultura deve existir por si, tentar medi-la é sempre artificial. Qualquer um de nós consegue, de forma simples e sem recorrer a fórmulas matemáticas, medir o impacto da cultura.
Como contornar os baixos índices de participação cultural?
Há um problema de participação cultural no país e cabe-nos a nós, pessoas que estão nesta área, trabalhar o desenvolvimento de públicos. Manter museus e teatros abertos, quando não há retorno financeiro, é um investimento na qualificação da cidade. A EGEAC gere 17 espaços e todos geram receita, mas apenas dois são rentáveis: o Castelo de S. Jorge e o Padrão dos Descobrimentos. Numa abordagem meramente economicista, os outros equipamentos seriam deficitários. O nosso orçamento ronda os 30 milhões de euros: em anos normais, aqueles dois espaços geram receitas de 18 milhões de euros, a restante fatia vem da Câmara de Lisboa. Com a pandemia, tivemos uma queda de 74% nas receitas próprias e a autarquia compensou a quebra, com um reforço de 12,1 milhões no subsídio à exploração (além dos 10,5 milhões previstos). É desta forma que se vê também a importância do serviço público. Se assim não fosse, vários sítios teriam fechado. Foi esse apoio que permitiu que se continuasse a fazer peças de teatro, exposições e concertos, ajudando a manter vivo todo um setor. Em geral, a cultura continua a ser maltratada em Portugal e ainda há a ideia de que é um gasto supérfluo, mas nesse aspeto a câmara teve uma grande visão, também durante a pandemia, e dificilmente pode ser criticada por falta de apoios.
Em 2019, a estabilização do fluxo turístico levou ao abrandamento dos rendimentos globais da EGEAC, demonstrando o quão dependente estava das receitas do Castelo e do Padrão dos Descobrimentos – e do próprio turismo.
É verdade que há uma dependência grande em relação a estes equipamentos, alertei algumas vezes para isso. Não pensava tanto na quebra de turismo, mas em questões como o terrorismo, por exemplo, ou tão-somente na eventualidade de um cano rebentar no Castelo... Mas a ideia da EGEAC nunca foi a de obter lucro, e sim a de cumprir um serviço público. Nasceu da cabeça de pessoas como Ruben de Carvalho e Miguel Portas, inspirados num programa em França, chamado Quartiers en Crise, que defendia a ideia de cultura como dinamizadora de bairros deprimidos... A perda de receitas é preocupante, mas no limite poderíamos funcionar sem o Castelo e sem o Padrão. Valeria a pena repensar alguns aspetos do "modelo de negócios" da EGEAC, que não pode ser facilmente equiparada a uma estrutura privada, dada a sua dimensão de serviço público.
O artigo "Outsourcing na Cultura: precariedade permanente, um negócio organizado pelo Estado", publicado no portal Esquerda.net e citando um relatório do BE, refere que também a EGEAC promove vínculos precários. Dos 400 trabalhadores da estrutura, quantos são precários?
Desconheço o relatório, ninguém falou com a EGEAC, mas posso afirmar que não temos um único trabalhador precário. As situações de prestação de serviços ou de contratos a termo (os reforços sazonais, por exemplo) são as previstas na lei para situações específicas e justificadas e, mesmo estas, estamos a tentar encontrar soluções para as reduzir.
O mesmo artigo refere que, em dezembro de 2020, a EGEAC lançou um concurso público para contratação de serviços de frente de sala durante 24 meses, para várias das estruturas geridas pela empresa municipal.
Achei curioso o Bloco, numa audição com a ministra da Cultura, apontar como exemplo uma empresa municipal que não é tutelada pela ministra. A lei contempla a possibilidade de contratar externamente. Fazemo-lo, para situações como os serviços de frentes de sala, por exemplo, uma atividade regular mas não permanente, que varia consoante os espetáculos e os horários. Não disputo que existe uma tremenda precariedade no meio cultural, é um setor extremamente frágil, e as instituições, mais do que ninguém, sobretudo se forem públicas, têm uma obrigação total de ter tudo regularizado, como é o caso na EGEAC. Mas acho contraproducente este tipo de abordagem, que não distingue o que é legal e o que realmente constitui a precariedade.
A ideia original da EGEAC – que começou por se chamar EBAHL (Equipamentos dos Bairros Históricos de Lisboa) – foi desvirtuada?
Não, a prova é toda a programação tradicional e popular que continua a existir, e que esteve em risco de acabar. Por exemplo, as marchas populares eram consideradas como uma coisa menor. A EGEAC não tem esses preconceitos, é uma estrutura que aposta na coexistência de uma cultura mais experimentalista com uma cultura mais popular, sobretudo na sua programação de rua. Um dos meus "bebés" é a programação no Vale do Silêncio, nos Olivais. A ideia era criar outro fluxo: em vez de a dita periferia ir para o centro, o centro ia para a dita periferia. Houve inicialmente alguma resistência interna, depois fomos para lá com os mesmos meios e com a mesma dignidade com que iríamos para o Terreiro do Paço. Outra das dificuldades foi suspender o protocolo, a zona VIP! Parecendo anedótico, e sendo algo natural hoje em dia, na altura não foi nada evidente, foi preciso desconstruir barreiras. E correu muito bem... Na primeira edição, esperávamos cinco mil pessoas, apareceram 17 mil, a última edição foi uma loucura e o problema agora é como conter a multidão.
Falávamos no ADN da empresa e da proteção dos bairros históricos. Mas muitas pessoas foram arredadas desses territórios. Não receia esta exclusão, até dos artistas?
É uma preocupação que tenho. Esse ADN não se perdeu de todo, e não se pode perder, no dia em que a EGEAC for uma empresa igual às outras, e pensar apenas no lucro, morre. Queremos continuar a desbravar caminhos e ir para sítios improváveis. Mantemos um contacto próximo com as juntas de freguesia, que são os nossos aliados naturais, com elas percebemos melhor o terreno. Por exemplo, estávamos a apostar muito na programação digital, mas percebemos que há uma fatia enorme de pessoas que não está digitalizada – a Casa Fernando Pessoa até criou um projeto de poesia ao telefone, Poesia ao Ouvido. A nossa estrutura mantém relações privilegiadas com a comunidade – essa ideia de proximidade e solidariedade faz parte dos nossos eixos estratégicos. Por exemplo, o Padrão dos Descobrimentos poderia ser apenas um miradouro: bastava abrir a porta para gerar receitas. Mas é o sítio onde mais temos apostado na programação, com exposições sobre racismo e pós-colonialismo, até muito direcionadas aos portugueses. O Padrão tem uma carga simbólica especial, queremos que seja também um local de reflexão e questionamento.
Porque ainda existem muitas questões mal resolvidas?
Absolutamente, mas vivemos um momento de rutura interessante, que é recente na Europa, nisso não estamos atrasados, estamos até a fazer bastante – o que é visível em iniciativas que saem para a sociedade civil, como o Memorial da Escravatura. Se nos compararmos com Inglaterra ou com os Estados Unidos, estamos atrasadíssimos, mas estaremos no mesmo patamar de França ou Itália: gostamos de falar sobre o pós-colonialismo dos outros, já falar do nosso é um pouco mais difícil.
Há quem defenda a demolição do Padrão dos Descobrimentos, por exemplo. Esse debate é válido?
Discutir estes temas é do mais saudável que há. Questão diferente é saber se os pressupostos do debate são os melhores. Continuamos a ter, na sociedade portuguesa em geral – nas universidades, no jornalismo e em várias entidades –, uma falta de representatividade gritante. Somos sempre os mesmos a falar sobre estes temas. É preciso dialogar com outras pessoas também, temos tentado fazê-lo e até criámos internamente um grupo de trabalho para a diversidade e inclusão. Em termos de representatividade étnica, a EGEAC não é nada representativa da cidade, isso preocupa-me. Temos um setor cultural extremamente vibrante, também do ponto de vista multicultural, e o país não está espelhado nas nossas instituições.
Como avalia a polémica em torno do Museu das Descobertas?
Foi uma discussão que nasceu enviesada por causa da escolha da palavra… O que me parece grave (nos manuais de História por exemplo) é aquilo que não se conta. Fala-se de algo que efetivamente existiu – navegadores portugueses que chegaram a pontos extraordinários do mundo –, mas não se fala muito sobre a escravatura e o colonialismo. O nosso principal problema é a omissão. Há um défice entre aquilo que se conta e aquilo que não se conta.
A própria cidade de Lisboa não estará menos representativa, menos autêntica? Com excesso de turistas – até à pandemia – e fenómenos de gentrificação?
Honestamente, não consigo avaliar se há uma excessiva dependência do turismo na cidade, é verdade que o turismo veio dar um balão de oxigénio em termos orçamentais e foi também graças a isso que várias entidades se puderam reabilitar e ter uma atividade mais saudável. Agora, poder-se-á discutir a densidade turística em certas zonas. Antes da pandemia, estávamos a criar roteiros turísticos alternativos. Existe o velho projeto da linha amarela do metro de Lisboa, que liga o Rato a Odivelas, e passa por três museus (Fundação Vieira da Silva, Museu Bordalo Pinheiro, Museu de Lisboa – Palácio Pimenta), entre outros espaços culturais. Pessoas como Simonetta Luz Afonso têm defendido que a dinamização de roteiros deste género ajudaria a criar eixos alternativos. Faz todo o sentido. A outra dimensão, da gentrificação, tem que ver com vários fatores, desde logo a lei das rendas, algo que extravasa a câmara.
Ambiciona outros cargos políticos? Se bem que este já o é.
Este já é um cargo político, não partidário, mas político. Trabalhei em direitos humanos e noutras áreas, não escondo um interesse especial por tudo o que sejam políticas públicas, mas não tenho a ambição de ter cargos políticos nem mais elevados nem mais políticos. Não é algo que procure. Tenho até mais curiosidade por uma dimensão local – foi para mim uma descoberta o trabalho das juntas de freguesia, e com isto não estou a dizer que gostaria de estar numa junta de freguesia. Mas cargos partidários, à partida, não. Não excluo redondamente, não excluo nada e há contextos que às vezes o podem proporcionar, e para tal é preciso haver também uma partilha de visão com os responsáveis políticos. Mas acho que posso contribuir mais a partir da sociedade civil do que integrada num aparelho partidário, pelas limitações que os aparelhos partidários têm. Não se trata de um preconceito ideológico contra partidos, acredito vivamente nos partidos.
Ainda está zangada com o PS…? Recordo a sua partilha no Facebook após as presidenciais, em que se manifestava desagradada com o partido.
Refere-se ao meu desabafo de filha? Mais depressa estou zangada com a minha mãe por se ter candidatado... Falando então do tema Ana Gomes: eu e a minha mãe temos alguns aspetos em comum, revejo-me muito em tudo o que tem que ver com as causas de direitos humanos, com todo o percurso que ela fez e que eu de alguma forma fiz também. Mas diria que as semelhanças acabam aí. Eu nunca quis um percurso partidário, nunca me filiei em nenhum partido, nunca senti essa vontade. Quando, a seguir à independência de Timor, a minha mãe se juntou ao Partido Socialista, eu estranhei, pois achava que ela era nessa altura uma das poucas vozes da sociedade civil – e Portugal tem uma sociedade civil extremamente pobre e pouca organizada. Por isso, imagino-me mais a trabalhar a partir da sociedade civil do que propriamente dentro dos partidos. Já a minha mãe acha que é através dos partidos políticos que se muda a sociedade.
Portanto, não está zangada com o PS?
Na altura, achei que era um erro avançar, sem meios e nem apoio político expressivo, foi tudo fruto do voluntarismo típico da minha mãe. Retrospetivamente, acho que foi até um ato de serviço público e que ela fez bem em se candidatar. Mas tenho pena – não estou zangada, mas tenho pena – de que não tenha havido um outro apoio à sua candidatura.
No "post", foi bastante contundente: "Quando precisávamos de um PS forte e inequívoco na defesa dos valores que importam, assistimos a um partido decadente e sem princípios."
Então…, isso foi escrito no dia a seguir às eleições e fi-lo sem mostrar a ninguém. Sentei-me, escrevi o texto do princípio ao fim e publiquei. Não reli, não enviei a ninguém. O que foi estranho, eu nem sequer utilizo muito as redes sociais e não costumo ter este tipo de desabafos, mas não é todos os dias que a nossa mãe se candidata às eleições. E não é todos os dias que o país está como está, com movimentos de extrema-direita a crescer – tenho muito receio pelo que vai acontecer nas eleições municipais, acho que vamos assistir a uma transfiguração política inédita… Hoje não utilizaria algumas das palavras que usei naquele "post", mas acho que o PS, como todos os partidos políticos democráticos, não está a levar suficientemente a sério o que está a acontecer no país; os partidos desligaram-se das pessoas, e estamos agora a pagar as consequências. Há uma grande falta de estratégia no país em geral – nos partidos, no jornalismo. Não quero estar com um discurso populista a apontar para todo o lado…
Aliás, considera que o pior insulto que fizeram a Ana Gomes foi chamar-lhe populista.
Foi. Naquele momento estava-se a equiparar a minha mãe, uma lutadora antifascista que esteve presa, a uma pessoa como a que está à frente daquele movimento. Não, não digo o nome, é mesmo estratégico. Houve um erro da parte de muitas pessoas, designadamente da minha mãe, de lhe darem o protagonismo que ele quis, basta ver o que aconteceu nos Estados Unidos, a forma como estes movimentos se alimentam de polémica e de ruído. Alguma coisa está a falhar no sistema e, nesta questão, os partidos políticos têm uma importância muito grande.
O sentido de dever público, presente nas gerações anteriores, está a desaparecer?
A geração dos meus pais não tinha a preocupação da popularidade. Faziam o que achavam que tinham de fazer sem se preocuparem se ficavam bem vistos e se determinada forma de agir, falar, ou pensar seria popular. Eles viram-se numa situação inédita. E arriscaram literalmente tudo, arriscaram as vidas. Foram expulsos da faculdade e ninguém sabia. Agora é muito fácil, sobretudo em relação ao MRPP, caricaturar os "meninos", etc., mas nem o meu pai nem a minha mãe eram meninos de famílias que andavam a brincar à política, eles literalmente poderiam ter hipotecado o seu futuro naquele momento. É fácil retrospetivamente dizer: ah, mas o 25 de Abril foi logo a seguir. Eles não sabiam isso… Grande parte das pessoas da geração dos meus pais tinha uma visão de serviço público. Felizmente há muitas pessoas nos partidos que ainda têm esse sentido de dever, mas, não generalizando demasiado, sabemos que os partidos são também uma forma de ascender na sociedade, sem haver necessariamente essa outra dimensão de serviço público.
Nunca foi militante, não pretende ser, e tem quase aversão a sê-lo?
Não tenho aversão, tenho muitos amigos de partidos políticos diferentes e admiro o seu trabalho. Ainda pensei em filiar-me a seguir às últimas eleições presidenciais, houve um momento em que ponderei: não posso estar a queixar-me e depois não dar o corpo ao manifesto; se quero ter um PS ou um PSD diferente, se calhar, a minha mãe tem razão, se calhar é a partir dos partidos políticos que se muda uma sociedade... Mas não. O meu pai costumava usar aquela frase muito engraçada do Groucho Marx: "Eu nunca faria parte de um clube que me aceitasse como sócio", eu tenho esse lado.
Cresceu em casas altamente politizadas, viveu em várias cidades, mas voltou a Portugal.
Os meus pais separaram-se quando eu tinha dois anos, ficaram sempre muito amigos, e essa foi uma lição de vida muito importante. Cresci muito com os meus avós transmontanos, eles viviam em Lisboa, ainda hoje tenho uma ligação forte a Trás-os-Montes, em concreto a Freixo de Espada à Cinta. Aliás, cresci a achar muito estranho as pessoas dizerem: isso é lá para Freixo de Espada à Cinta! Eu dizia: mas não conheces? Aos 11 anos, saí de Portugal, a minha mãe tornou-se diplomata, eu acompanhei-a. Vivi em países e cidades muito diferentes, como Genebra, Tóquio e Londres. Em adulta, continuei fora e já não me imaginava em Portugal, estive em Nova Iorque e em Nova Deli, era jornalista da CNN. Entretanto, vim cá durante umas férias de Natal, estava então a ser criada a SIC Notícias, e venderam-me a ideia de que iria ser o primeiro canal realmente internacional. Por isso, e também por questões pessoais, resolvi voltar, abracei o projeto, estive lá uns sete, oito anos. Mas aquele entusiasmo de querer fazer uma coisa de facto diferente acabou por desaparecer um bocadinho com as guerras de audiência. Ainda cheguei a ser correspondente em Bruxelas, mas depois fiz a transição para o universo das ONG e dos direitos humanos.
Foi muito marcada pela questão de Timor-Leste?
Foi estranho, acho que fui das pessoas que menos acompanharam. Na altura, eu vivia em Nova Deli, o único sítio onde não se falava em Timor. Mas eu conversava regularmente com a minha mãe, e um dia aconteceu uma coisa que nela é raro, ela desabou a chorar, tinha sido morto o filho do Manuel Carrascalão. Desliguei o telefone, falei com o meu chefe, meti-me no avião e fui ter com ela. Os jornalistas estavam todos em cima da minha mãe, ela nunca dizia que não, não dormia, não comia, estive lá uma semana e fiz um bocadinho o papel de "baby-sitter", os jornalistas até ficaram chateados comigo, porque eu impunha horários – "só se fala destas horas a estas horas".
Sempre se discutiu política à mesa?
Respirava-se sobretudo política internacional. O clássico da minha infância é a CNN ligada. E a minha mãe adormecia a ouvir a BBC Radio, às vezes era eu que ia lá desligar. Com 13 anos, já sofria com o conflito israelo-palestiniano, as discussões eram frequentemente à volta da Eritreia, e muitas vezes os refugiados timorenses ficavam no meu quarto com as minhas bonecas. Eu ia dormir com a minha mãe. Nesse sentido, tive uma vivência muito rica e privilegiada. Por outro lado, há aqui uma certa questão de falta de identidade que às vezes também se sente. E acho que o meu regresso a Portugal teve que ver com isso.
A meritocracia existe de facto em Portugal? Ou "ser filho de" ainda conta muito?
Tenho encontrado muitas pessoas que fizeram o seu percurso por si, sem as questões habituais das cunhas. Acho que a meritocracia existe, e existe bem mais hoje em dia do que no passado, fizemos um percurso importante – basta olhar para as taxas de acesso à faculdade. Sobre a questão dos filhos..., não sei muito bem o que diga, sempre me esforcei por fazer um percurso diferente e, segundo os meus amigos, até estupidamente e demasiadamente. Por isso fico algo estupefacta quando me associam desse ponto de vista. Mas vivo muito bem com a minha consciência, tenho plena noção de que todos os sítios onde estou e estive resultaram da minha iniciativa. Pela minha mãe, eu ainda era jornalista! (Ela até queria ter sido jornalista. Inicialmente, queria ser advogada por causa do Perry Mason, caso contrário, seria jornalista.) Quando transitei para as ONG, ela foi a minha maior crítica. Nem sempre tive o apoio dos meus pais nas decisões que tomei. Quando resolvi ir para a Índia, aos 23 anos, nenhum deles achou muito bem. Eu trabalhava na CNN em Nova Iorque, o meu visto profissional estava a expirar, e como a CNN tinha muitos escritórios pelo mundo, perguntaram-me para onde é que queria ir, eu disse: Teerão, Havana ou Nova Deli. A pessoa que me fez a pergunta olhou e disse: "are your parents aware of this?" Não estavam…
Sentia necessidade de se descolar dos seus pais?
Por vezes sinto que as pessoas também estão à espera de que eu tenha o mesmo estilo da minha mãe, até nisso… Ela tem um estilo muito próprio (na verdade, há um lado dela pouco conhecido, um imenso sentido de humor). Percebo que isto seja um tema, mas tenho 45 anos e um percurso autónomo, que em alguns momentos pode ter sido inspirado pelos meus pais, mas que é um percurso fundamentalmente meu.