Notícia
Isabel Alçada: Sou solidária com os professores que ainda não têm o seu lugar
Isabel Alçada é uma das autoras de livros infanto-juvenis de maior sucesso em Portugal. Lançou, juntamente com Ana Maria Magalhães, a colecção “Uma aventura”, em 1982. Já foi ministra da Educação num Governo Sócrates. Agora tem gabinete no Palácio de Belém. É consultora para a Educação do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa.
Qual foi o livro que mais a marcou?
Na infância, foi o primeiro que consegui ler até ao fim. "Os desastres de Sofia", da Condessa de Ségur. Deram-me na escola como presente, no final do ano lectivo. Era um livro lindo com umas imagens coloridas. Quando ia para casa no carro, vi que conseguia ler aquele livro enorme e comecei a ler e fui lendo, lendo, lendo.
Mas marcou-a por ter sido o primeiro?
Foi por ter sido o primeiro que consegui ler até ao fim. Quando acabei, comecei logo a lê-lo outra vez. E, além disso, gostei muito do livro. Era a história de uma menina que se portava mal.
Identificou-se de alguma maneira com ela?
Identifiquei-me. Por um lado, era uma vida completamente diferente. Era a história de uma menina que vivia num castelo, com muitos criados, mas que tinha muita proximidade com as nossas regras de comportamento. Havia regras muito estritas, ela infringia-as, depois ficava de castigo. Isto passou-se em 1957. Quem ouve, hoje, pensa que é na pré-história. (Risos) Eu às vezes digo às crianças, quando as coisas a que me estou a referir aconteceram antes de elas terem nascido, "para vocês é a pré-história".
A leitura era incentivada em sua casa? Cresceu rodeada de livros?
Sim, e de jornais. O meu pai fazia uma coisa que me marcou muito. Chegava a casa sempre com um jornal debaixo do braço à tarde e lia-nos qualquer coisa do jornal. Havia uma espécie de tira de banda desenhada e ele tinha inventado um nome para a personagem. Nós dizíamos assim: ó pai, o que é que o Rufino hoje está a fazer? E ele abria o jornal procurava a banda desenhada e nós, as três meninas, víamos [a banda desenhada]. O meu pai era uma pessoa que adorava miúdos. Tinha muita intuição educativa. Os meus amigos e primos gostavam muito de ir lá para casa porque ele organizava jogos e brincadeiras. Contava-nos imensas histórias e fazia uma coisa que nós adorávamos e que a minha mãe detestava. Às vezes, à mesa ilustrava as histórias fazendo bonecos na toalha de pano. (Risos) Aquilo dava um trabalhão a sair.
Fugia muito ao padrão da figura do pai naquela altura.
Sim. O meu pai era ao mesmo tempo a autoridade e organizava tudo, planeava as coisas. Mesmo as brincadeiras. Nós, aos fins-de-semana, íamos muito ver coisas bonitas. Jardins, museus, igrejas, castelos. Fui ao Castelo de São Jorge e ao Museu de Arte Antiga não sei quantas vezes na minha vida. Era este tipo de coisas que ele planeava e, ao mesmo tempo, quando tinha uma ordem para dar não era imaginável que não a cumpríssemos. Era esta mistura de autoridade com proximidade.
É esse o segredo de um bom educador?
Eu acho que é. Reconhecia-lhe a autoridade naturalmente porque sabia que ele não ia pedir nada que não fosse legítimo. E, mesmo quando eu não concordava, podia dizer: não concordo nada com isso. E ele dizia: pois, mas como neste momento sou eu que mando, vais fazer o que eu digo. Quando chegámos à adolescência, foi um pai um bocado tirano porque, como éramos todas raparigas, ele tinha receio das nossas saídas com rapazes, e era muito vigilante. Nessa altura, foi um bocado difícil ter de aturar a vigilância dele. Houve uma outra coisa que ele fez que eu acho que me marcou bastante, tanto a mim como às minhas irmãs. Treinou-nos para não ter medo. Ele era um nadador fantástico. Ensinou-nos a nadar. Eu adoro nadar. Quando estava no Ministério da Educação, ia dar um mergulho na praia ao fim da tarde, quando o tempo estava razoável. Para mim, é terapia. O mar tem a função terapêutica de nos descontrair, envolver. É alguma coisa que nos dá conforto e ao mesmo tempo é estimulante. Ia muitas vezes sozinha, no meu carro. Discretamente, com óculos escuros, para ninguém ver quem é que estava ali. Isto vem da infância. Como o meu pai gostava muito de nadar e íamos para uma praia que tinha ondas, ensinou-nos a ter cuidado com o mar e, ao mesmo tempo, a não ter medo de sermos enroladas pelas ondas.
Tem uma coisa em comum com o Presidente da República. Gosta de banhos de mar.
Sim, mas só soube isso muito mais tarde. (Risos)
Nunca se cruzou com ele na praia?
Sim, já cruzei. Eu já o conheço há muitos anos.
Como consultora para a Educação do Presidente da República, qual é a sua grande missão?
É, sobretudo, acompanhar discretamente tudo o que se passa na educação e informar o Presidente, para que ele tome em consideração os acontecimentos, se aperceba do panorama, como é que a educação está a progredir e se há problemas.
O que é que foi determinante para o seu gosto pela leitura? Foi "apenas" ver o seu pai a entrar em casa com o jornal?
Tive outra coisa muito importante que foi a escola. A minha professora do primeiro ciclo era escritora e levava livros para a aula. Lia-nos histórias. E depois, ao longo do sistema educativo, no segundo ciclo, tive uma professora de Português que nos lia à sexta-feira a vida da Madame Curie. Eu ansiava pela sexta-feira para ouvir a biografia da Madame Curie que eu conseguiria ler sozinha, mas que adorava ouvir ler pela voz da professora e ler bem. Ouvir ler bem é extraordinário. A pessoa ganha amor aos livros lendo bem. Eu estava no Liceu Francês e lia também em francês, livros muito variados. Acho que isso marcou muito o meu interesse pela leitura. E verifiquei, "a posteriori", quando me tornei professora, que a leitura é a base essencial do sucesso educativo. Uma criança que não aprenda a ler cedo, que não domine a leitura na primeira fase da aprendizagem, não consegue acompanhar o ensino. Vai aprendendo qualquer coisa mas não ao ritmo dos outros. E a investigação científica mostra que, se não se fizer nada, o fosso vai alargando. Isto tem uma classificação, que eu gosto muito e que é o "Efeito Mateus". Vem da parábola dos talentos do Evangelho de São Mateus, em que quem tem mais fica com mais e quem tem pouco fica com pouco ou nada.
Mas isso está directamente ligado à condição económica da criança?
Não, porque todas as crianças podem aprender a ler bem no primeiro ano. O meu lema [na educação] é: todos sem excepção. Porque a questão é esta: quando temos uma turma, temos de dar atenção a todos os meninos. E, se há algum que não está a acompanhar, tem de receber mais atenção.
Mas os professores têm tempo para isso? Com o número de alunos que têm por turma e a pressão dos programas por cumprir, é possível dar essa atenção?
Eu dava aulas a partir do 5.º ano. Punha-os todos a ler logo no início do ano lectivo para ver qual era a capacidade de leitura que tinham. Punha-os a ler em voz alta. Depois fazia actividades de registo e de escrita e sentava-me durante a aula com aqueles que tinham mais dificuldade, a trabalhar directamente com cada um deles. Os outros estavam a fazer trabalho individual ou dois a dois. Sentava-me com eles para perceber onde é que estava o problema. Se me perguntar se isso resolve todos os casos, tenho de lhe dizer que resolve muitos, mas não resolve tudo. Porque há casos em que é preciso de facto um recurso suplementar para apoiar aquela criança.
E a questão do prazer aliado à leitura?
É essencial. A pessoa, mesmo quando está a aprender, tem de ter prazer. E é difícil. É um sacrifício estar ali a aprender. As crianças, quando estão nessa fase, ficam estoiradas com o esforço cognitivo que isso implica. Então, de onde é que vem o prazer? Da relação com o adulto. Do verificar que está a evoluir, a conseguir, que está a ir bem. E se a pessoa lhe disser: "Já consegues ler uma sílaba com cinco letras. Conta-as lá!", melhor. Este tipo de reforço afectivo, de proximidade, de alegria na forma como se trabalha leva a que eles dêem o salto. Depois é muito importante que gostem dos textos que estão a ler. Foi por isso que eu me tornei, com a Ana Maria Magalhães, escritora.
Começaram com pequenos textos.
Sim, que dávamos aos nossos alunos e não dizíamos que eram escritos por nós.
Assinavam-nos com um nome estranho.
Sim. Anel Alfães [a fusão dos nomes das duas autoras].
Eles nunca descobriram?
Não. (Risos) Não ligavam nenhuma ao nome do autor. Às vezes, estou no café e está uma senhora ao lado com uns meninos. Ela reconhece-me e diz aos filhos: sabem quem é esta senhora? E eles ficam assim com um ar… E depois a mãe diz: é uma das autoras da colecção "Uma Aventura". "Ah!" Os livros, eles sabem quais são. Mas não decoram o nome das autoras.
Conheceu a Ana Maria Magalhães, sua parceira de escrita, na escola.
Sim. Comecei a trabalhar como professora em 1976. Estávamos as duas no mesmo estágio. Preparávamos as aulas em conjunto. Tínhamos as mesmas turmas.
Mas davam disciplinas diferentes?
Dávamos as mesmas disciplinas, mas trocávamos. Eu dava Português numa turma em que a Ana dava História e eu dava História na turma em que ela dava Português. Sabíamos quem eram os meninos e, portanto, podíamos ajustar. É muito importante o professor ajustar o trabalho à turma que tem. A escolha de um livro para uma turma tem de ser necessariamente diferente para outra turma no mesmo ano.
Considera que existe hoje uma menor instabilidade profissional dos professores?
As coisas estão muito mais organizadas. Houve concurso geral. E o facto de ser só de quatro em quatro anos é muito importante. Significa que os professores ficam colocados durante quatro anos. Isso dá-lhes uma certa estabilidade. Embora eu, evidentemente, seja solidária com os professores que ainda não estão contratados, que estão fora da sua residência. E ainda são muitos. Quando são colocados longe da família, quando têm filhos, é muito complicado. Nós, na Presidência da República, recebemos cartas de pessoas que estão aflitas. Quando estão muito aflitas, escrevem ao Presidente da República. Sou solidária com as pessoas que estão há muitos anos como professores e ainda não têm o seu lugar.
O Presidente lê as cartas todas que lhe mandam?
Lê aquilo que eu e o professor João Mata, o assessor para a Educação, achamos que é importante ele ler. Mas nós fazemos uma triagem. Há coisas que tentamos resolver com o Ministério da Educação, mas há outras que sabemos que não é possível.
Mas este problema da colocação de professores pode ter uma solução? Já foi ministra da Educação e não conseguiu resolvê-lo.
Este é um problema de recursos financeiros. O país tem de viver com contenção orçamental. As pessoas às vezes não sabem, mas no meu governo fizemos um enorme esforço de contenção orçamental. Cada pessoa que está a sofrer um problema que gostaria de ver resolvido diz: há tantas outras coisas, porque é que eu é que tenho de ser a vítima da contenção orçamental? Isto afecta muita gente... Imaginemos que nós colocávamos nos quadros todos aqueles que são professores há vários anos, isso iria levar a um aumento de custos que o Orçamento do Estado não comporta.
Mas essas pessoas fazem falta ao sistema educativo, ou não?
Há pessoas que fazem permanentemente falta no sistema. São contratadas porque a sua entrada no quadro representa um acréscimo de custos. Podem é não fazer falta sempre na mesma escola. O problema também está na redução demográfica, há menos necessidade de professores. Esse ajustamento é difícil e, para quem está à frente da pasta da Educação, é muito delicado dizer a alguém: "Fazes falta, mas não posso resolver o teu problema." Também temos de perceber que se o nosso país aumentar os custos dos vários sistemas nas áreas da educação e da saúde, não podemos ter a redução do défice e da dívida. É uma questão também de dever patriótico.
Tinha a noção, quando entrou no Ministério da Educação, de que iria ter esse espartilho? Era professora, conhecia bem o sistema e as necessidades das escolas…
Só se tem a noção profunda e plena das questões financeiras quando somos nós que temos a responsabilidade. Como professores, pensamos: estes meninos aprenderiam se tivessem um professor só para eles, porque é que não se colocam mais professores? Temos um sistema educativo com 120 mil docentes. Aumentá-los em todas as escolas, para termos mais professores de apoio, representa um custo brutal. Para resolver um problema que existe, para dar maior eficiência ao sistema, teríamos de aumentar em muito o número de professores. Isso, o nosso país, neste momento, não comporta. Tem de haver ajustamentos sucessivos. Tem de se ver o que é possível fazer hoje, o que é possível fazer amanhã.
E sentiu a pressão dos lóbis?
Para nós, a palavra lóbi é um bocado forte. Embora nos Estados Unidos não seja. Dá logo o ar de pessoas que estão a conspirar porque há algum interesse oculto. Claro que há interesses. Senti a pressão de interesses. Mas sempre tive a preocupação de ter o interesse nacional muito claro e as metas que precisamos de ter com clareza na Educação. Temos de ter um sistema que tenha todos lá dentro. Precisamos de reduzir o abandono escolar na população dos 18 aos 24 anos. Temos uma meta traçada de, até ao ano 2020, ter o abandono no máximo de 10%. Neste momento ainda temos cerca de 14%. Fizemos um esforço enorme, mas neste momento estamos um bocado a estagnar no abandono escolar.
Mas ainda há muitos licenciados desempregados. Muitas vezes, as pessoas pensam se ainda vale a pena estudar.
Vale a pena estudar. Os licenciados são as pessoas que mais depressa encontram emprego. Há sempre crises e ajustamentos. Temos muitos licenciados a trabalhar noutros países. É verdade. O nosso país tem de evoluir, a economia tem de evoluir para que consigamos absorver a fantástica capacidade de formação que temos conseguido. Como não conseguimos ter uma economia a integrar todos os licenciados, vamos desistir da educação? Não pode ser. Isso seria voltar à Idade Média. Se virmos os licenciados que temos comparativamente com os dos países da OCDE, ainda estamos aquém. É uma das metas do programa 20/20. O que é mais importante, para já, é que todos estejam na escola. E nós sabemos, por exemplo, que o pré-escolar tem um efeito muito positivo. Já temos uma taxa de pré-escolarização bastante alta aos cinco anos, aos quatro anos também, aos três estamos a caminhar. Precisamos também de uma oferta de qualidade educativa antes dos três anos. Precisamos de creches com qualidade.
Os pais queixam-se muito disso. Da falta de creches.
Porque precisam de ter um sítio onde deixar os filhos e saber que eles estão bem protegidos e tratados. Mas não é só isso. As creches podem e devem ser estimulantes. Os primeiros anos de vida são cruciais no estímulo cognitivo. As neurociências têm demonstrado isso. Há aqui muito que fazer.
Recentemente, houve uma polémica com uns livros de fichas da Porto Editora que tinham versões diferentes para meninos e meninas. Qual é a sua posição?
Acho que as pessoas devem educar sem discriminação de género. Evidentemente, na primeira infância, se as meninas estão num ambiente cor-de-rosa, identificam-se mais com cor-de-rosa. Se os meninos estão num ambiente azul, identificam-se mais com azul.
Mas teve justificação toda aquela polémica em volta do assunto?
Foi um bocado exagerada. É importante que as mulheres se afirmem e assumam as suas responsabilidades no campo profissional, social, político, na família, enfim, em todos os domínios. E a educação, evidentemente, passa valores e formação que leva a que as mulheres, muitas vezes, possam imaginar que não têm o mesmo papel [que os homens]. É importante que a educação escolar não passe essas mensagens.
De que há coisas que não são para as meninas?
Exactamente. É muito importante que a educação escolar passe a mensagem de que somos todos diferentes como seres humanos e que cada um tem o seu papel, que não há profissões diferentes. Eu gostava de ter sido aviadora e o meu pai, que era muito evoluído em muitas coisas, na altura não me deixou tirar a carta de avião porque dizia que não era para meninas.
Ficou frustrada?
Fiquei com pena. Se tivesse tido a possibilidade de tirar a carta de avião, ou o "brevet", como se chama, tinha tirado e depois logo se via se teria seguido essa carreira. Mas, na verdade, eu tinha muito desgosto. E ainda tenho. Gosto de tanta coisa que não imagina.
Começou a dar aulas logo a seguir ao 25 de Abril. Havia um ambiente diferente no país nessa altura.
Os professores pensavam que se podia resolver tudo votando. Existia uma anedota que se contava, evidentemente que é uma blague, que havia uns meninos que diziam que quem tinha chegado primeiro à Índia era o Bartolomeu Dias e outros diziam que era o Vasco da Gama, e a professora resolveu tudo votando na aula quem é que tinha sido. (Risos) Isto era uma brincadeira que se dizia entre os professores de História. Eu tive muita noção desde o primeiro minuto de que a autoridade na aula é do professor.
E não tem vindo a perder-se?
Acho que não. Houve um período em que havia mais equívocos. Neste momento, a situação está bastante melhor. A autoridade do professor constrói-se mostrando às crianças que não é permitido fazer determinadas coisas, senão não conseguem aprender nada. Evidentemente há miúdos que vêm já com hábitos de infracção. Por exemplo, de famílias desestruturadas, onde a regra não é nítida. Uma das coisas que a investigação tem demonstrado é que, quando os professores trabalham em equipa, dois a dois, conseguem melhores resultados. Isto é muito interessante. A OCDE tem dado essa informação. Eu e a minha colega Ana Maria Magalhães tivemos essa experiência. Íamos ver as aulas uma da outra. E às vezes dávamos palpites e sugestões. Isso deu-me uma força enorme porque, no fundo, funcionava como um espelho que nos devolvia uma imagem, mas sem ser para avaliação. Se a pessoa sente que está a ser avaliada, fica um bocado enervada.
Os professores não gostam de ser avaliados?
Ninguém gosta.
Teve essa experiência como ministra da Educação, houve muita contestação na questão da avaliação dos professores.
É uma situação que vai marcar a carreira. E a pessoa percebe que aquilo é difícil. Mas todas as profissões devem ser avaliadas. E os professores que têm melhor resultado devem ser beneficiados. Isso deve ser um incentivo para a melhoria do sistema. Mas ninguém gosta. Esta interacção entre pares é muito benéfica para a melhoria do trabalho do professor.
A sua relação com a Ana Maria Magalhães vai muito além da parte profissional.
Claro. São muitos anos. Estamos a trabalhar juntas desde 1976.
É uma das suas melhores amigas?
É. Sem dúvida. Temos uma relação muito profunda, muito forte, de cumplicidade e de amizade.
Tinham noção do que estavam a começar a fazer em 1982, quando lançaram o primeiro livro "Uma aventura na cidade"?
Não. Pensámos que íamos escrever um livro. Mas a nossa editora quis logo publicar dois.
Mas não foi fácil conseguir publicar. Andaram a bater a várias portas.
Tanto eu como a Ana achámos que iríamos conseguir. Somos ambas muito persistentes. E não desanimamos à primeira, nem à segunda, nem à décima. Se não tivéssemos conseguido, teríamos continuado a tentar. Em último caso, se calhar, arranjávamos um estratagema para publicar o nosso livro, nem que fosse publicado por nós próprias.
Era um conceito diferente dos livros infanto-juvenis da altura em Portugal.
Era. Não havia livros daquele tipo com personagens portuguesas, com histórias de aventuras e de mistério passadas no nosso país.
Inspiraram-se na autora inglesa dos livros "Os Cinco", Enid Blyton?
Gostávamos muito dos livros dela. A estrutura é idêntica.
Mas as vossas personagens foram inspiradas em pessoas reais.
Sim, nos nossos alunos. Escolhemos alguns daquele e de outros anos lectivos. Queríamos que fossem diferentes uns dos outros, mas que se entendessem bem.
Os alunos nos quais se inspiraram chegaram a saber disso?
Souberam. Adoraram. Continuamos a ver as gémeas! Quando há feira do livro, vão lá com os filhos e maridos.
A colecção foi passando de geração em geração. Tem noção de que colocaram muitos portugueses a ler?
Tenho a alegria de ouvir esse testemunho muitas vezes. Pessoas a dizer: "Comecei a ler com os seus livros e agora já são os meus filhos que os estão a ler." Ainda no outro dia fui tomar um café e alguém disse: "Li os seus livros, gostava muito, sabe porquê? Eram claros. Parecia que a história estava a passar na nossa cabeça." Isso é muito importante. A investigação diz isso. As crianças, quando lêem, devem ter a possibilidade de visualizar mentalmente o enredo para poderem ter prazer na leitura e quererem ler mais. Isso, para nós, era uma intuição quando começámos a escrever e hoje há muita investigação que o demonstra. Imagine a alegria de uma pessoa ter trabalhado dessa maneira e depois, de repente, ver que estava certa. O gosto pela leitura é absolutamente nuclear para tornar as pessoas leitoras, interessadas no estudo, abertas à cultura.
Tem noção de quantos livros já vendeu até hoje?
Alguns milhões. Milhões é um palavra que, em livros, é óptima (risos).
O mercado do livro infanto-juvenil está muito diferente desde que começaram. Neste momento, quase todas as editoras apostam neste público.
No nosso tempo, foi só o nosso editor, o Zeferino Coelho [da Editorial Caminho]. Ele quis publicar os nossos livros quando nós já tínhamos ouvido dizer: aventuras em Portugal? Não. Tinham receio de investir numa coisa sem tradição em Portugal. Ele teve visão.
O digital não é uma ameaça?
Não. Há estudos que demonstram que o digital, sobretudo nos primeiros anos da leitura, é estimulante para a aprendizagem e para o gosto pela leitura.
Foi a primeira coordenadora do Plano Nacional de Leitura (PNL), de 2006 a 2009. Foi importante também para as editoras?
As editoras deram uma ajuda ao Plano, ao valorizarem o selo do PNL [Ler +]. Estou-lhes grata porque isso permitiu que a opinião pública conhecesse melhor o PNL, como aliás outros parceiros que também se associaram. Esse selo de qualidade foi importante e também ajudou a que as editoras pudessem oferecer, de uma forma mais visível, aquilo que tinham. Todos os anos são acrescentados livros às listas.
O que é que está a ler agora?
Um livro de espionagem de um autor que é de origem portuguesa, chama-se Daniel Silva. É uma espécie de um "thriller" de espionagem. Não conhecia o autor e estou a achar fascinante. É um livro com uma narrativa muito rápida. Estive há muito pouco tempo também a escrever um prefácio de "Memórias de Adriano", que é o meu livro eleito da Marguerite Yourcenar. Já o tinha lido há muito tempo, quando tinha 30 anos. Se me perguntar que livro gostava de recomendar, respondo "Memórias de Adriano".